Os enjôos vinham
em ondas tsunâmicas, trazendo dejetos que se recusavam a atravessar os dentes
de sua boca pintada de vermelho. Sob o sol do meio-dia quase desmaiou na
calçada ao lado de um mendigo, receosa de sujar o único bem daquele homem: um
cobertor mijado e translúcido. Não vomitou no cobertor. Nem no mendigo. Nem em
lugar nenhum. A calçada continuou suja de outros homens, outras mulheres e
alguns cachorros. Não poderia continuar trabalhando, nem as paredes a
escoravam. Cinco quarteirões até seu apartamento. Dez passos até sua cama,
dessa vez sem olhar para o espelho da penteadeira. Não viu que a flor amarela havia caído dos seus cabelos. Foi só à noite, quando já
dormia, que uma gorda e peluda ratazana escapou de suas entranhas.
quarta-feira, 31 de julho de 2013
sexta-feira, 26 de julho de 2013
Aline
A Aline trabalha
como garçonete em Aparecida, mas mora em Guaratinguetá. É pertinho, quinze
minutos. No dia da visita do Papa a Aparecida, ela não se aguentou e deixou uma
mesa esperando. Valeu a pena, deu pra ver um pedacinho da cabeça dele daqui da
calçada. E nesse dia ela atendeu muitos padres, bispos, diáconos, freiras, sei
lá, tanta gente, a cozinha já nem sabia mais o que preparar. Sai um filé de
frango com calabresa e mignon! As freiras não bebem nem refrigerante, mas os
padres bebem até whisky. O estoque de vinho tinto do restaurante acabou. Antes
de comer, eles rezavam. E a Aline junto. Rezou até em espanhol. Aí eu me
entrego de corpo e alma mesmo, é só alegria. E foi uma loucura porque depois da
visita do Papa o Galo ganhou a Libertadores 2013. Eram religiosos e mineiros ou
tudo numa pessoa só que não acabava mais. O patrão fechou as portas e esse povo
só saiu daqui às duas da manhã. Ela me aconselhou a pedir uma pizza em vez do bauru
que cogitei. Sugestão aceita. Gostei de você, Aline, da alegria com que você me
serviu. E, baixinho, ela me disse pra voltar com Deus pra São Paulo. A noite
estava muito fria, mas voltei tão aquecida, Aline. Obrigada.
terça-feira, 23 de julho de 2013
Possibilidade
Tá na hora de
dormir, pro dragão não comer os teus sapatos. Viu, meu filho, viu, como a vida
é mais recheada quando há poesia? E não te esqueça da minha dedicatória: sempre
há a possibilidade da poesia. Aquele moço, de quem te falei, escreveu sobre a
possibilidade de amor. Sim, essa também vale. Essa também recheia. Sabe, meu
filho, acho que estamos falando da mesma coisa.
segunda-feira, 22 de julho de 2013
Razões
O cérebro se
choca contra o crânio a cada passo. O chão é duro. Ela pisa mais forte. O chão
não racha, não amolece, não cede. Seus pés não afundam. E se parasse de andar e
procurasse borboletas? Não, não há cores no céu cinza. Vê? Nem sons. Só ruído, como
o do seu cérebro se atirando contra o crânio. Escuta? Quanta estupidez no mundo, meudeus. Meudeus, um colorido no céu que seja! Ela não pára para um sorvete de
morango. As notícias nos jornais são feias. Não tem para onde olhar. Pisa mais
forte, mais forte até sentir o crânio quebrando. Mas ele não quebra, ao
contrário do coração.
sexta-feira, 19 de julho de 2013
Escolhas estrangeiras
- Soup or
salad?
- Wow, I´d love
a super salad right now.
- Okay, but…soup
or salad?
- Super
salad. Perfect for me.
- It´s
perfect, but you have to choose: soup or salad.
- Yes, I
choose super salad. Thank you, baby. Thank you so much.
quinta-feira, 18 de julho de 2013
Feliz aniversário, Leticia
Há uns 32 anos
uma menina mestiça de carinha redonda entrou na sala de aula, vinda da capital
para o interior do estado. Na hora do lanche, a professora me chamou: Luciana, pode
fazer companhia pra ela? Ah, que saco, pensei, mas fiz. Descobri que na capital
ela morava no mesmo bairro em que minha mãe cresceu. E na hora da saída,
descobrimos que nossas mães foram amigas na juventude. Eu e essa menina nos
encontramos na emoção de um reencontro.
Tive uma escova
de dentes durante anos na casa dela, a casa onde a gente não tinha hora pra
dormir e ouvia um violão sendo tocado todas as noites. Devo ter acordado mais
na casa dela do que na minha durante a infância e a adolescência. Ela não aguentava
me ouvir todas as manhãs: adivinha o que eu sonhei? (e, sim, querida, essa
ainda é a minha primeira frase ao acordar)
Uma vez ela me
deixou pra fora de casa porque eu não segurei direito a corda no cabo de guerra
e ela rolou ladeira (ladeirão pra uma criança) abaixo. Soltou a tampa de um
freezer na minha mão. Não tinha paciência pra me ensinar matemática: como você
não entende ISSO? Um dia me apaixonei pelo ex-namorado dela. A gente não olhava
mais direito uma pra outra, mas não perdia a oportunidade de se abraçar e
dizer: tô com raiva, mas te amo. E seguia cada uma pro seu lado.
Ladeira,
freezer, matemática, namorados, distância, seja o que for, não houve jeito
desse amor diminuir. Minha amiga de carinha redonda e canelas finas cobertas
por meias coloridas. Se há um autor da nossa história, penso que no dia em que
a professora me pediu aquela gentileza ele pensou assim: hoje a Luciana ganhará
um presente pra toda a vida.
Coragem é a
atitude humana que eu mais admiro. Coragem de viver de acordo com quem se é,
então...minha amiga tem essa coragem, nem deve saber o quanto me ensina, o
quanto me inspira. Se você soubesse, minha amiga, como é grande, genuíno e
puro o que eu sinto por você...dizem que é amor. Pode ser. Mas eu ainda acho
que vai um pouco além.
quarta-feira, 17 de julho de 2013
Que coisa
E que coisa essa de se ter o estômago cheio
de gelo que se recusa a derreter? Como beber com um enxame de abelhas preso na
garganta? Que coisa essa, que coisa? Como dormir com formigas nas veias? E
andar com os pés na cabeça? Que coisa essa de viver um amor que não aconteceu? Como
um amor não acontece? Um livro sem final conhecido. Páginas escritas e
arrancadas, amassadas, picotadas. Queimadas. Que coisa essa de reescrever uma
história com fuligem? Que coisa essa, hein?
terça-feira, 16 de julho de 2013
Sede
Eu bebo pouca
água (em alguns dias nem uma gota) e tenho os pés gelados, mesmo guardando-os
dentro de meias de lã. Assim, desculpe-me se te assusto durante a madrugada,
mas você é quentinho e eu nunca resisto a esse meu egoísmo. É que às vezes eu
acordo assim, com sede, e fico com preguiça de ir até a cozinha, tão gelada, e
você ali, tão oposto. É quando você murmura um xingamento carinhoso, um huummhuuumm,
e me abraça pra tentar afastar os meus pés dos teus, e eu me
esqueço da sede, por algumas horas, justo eu, que bebo tão pouca água.
segunda-feira, 15 de julho de 2013
Patifes
Não é mentira
meu peito esgarçado. Nem a pressão no meu crânio, essa mão áspera de enxada que
teima em me apertar. A luz do sol que meus olhos tão escuros não conseguem
enfrentar. Sou mole. E patife, no sentido de medrosa, covarde, insegura. Mentira
é esse asfalto que destrói meus sapatos. Mentira é escrever Vossa Eminência,
Sua Excelência, Prezado Senhor...as putas que nos pariram. Mentira é meu olhar
pra você. E o seu pra mim. Mentira é o espelho que construímos diariamente. Vou te
contar um segredo: a gente não existe.
sexta-feira, 12 de julho de 2013
E, se, tivéssemos coragem?
Ele e ela chegam
com as mãos entrelaçadas na ponta da areia, de onde se vê um pedacinho do mar.
Olhe, ele diz
enquanto tira uns fios de cabelo do rosto dela, pense que é um grande lago, mas
com sal.
E com fedor, ela
responde ao recolocar os óculos escuros.
quinta-feira, 11 de julho de 2013
O terço de mim
Ah, criança, minha criança, às vezes vai doer tanto, mas tanto,no limite do insuportável; mas lembre-se desse momento, desse exato momento, em que a gente sente a brisa e o calor do sol no alto de um escorregador.
Sessão das cinco
Você não sabe que estou aqui,
por isso não entrará por aquela porta, para a qual eu olho a cada minuto na
esperança de que você entre: assim, por acaso. Não: não gosto de pensar que
você também não entraria por aquela porta se soubesse que estou aqui. O desejo
é meu: me deixe em paz.
quarta-feira, 10 de julho de 2013
Perdidos
Meu casaco branco fugiu. Não
sei se pela janela, pela área de serviço ou se pela porta da frente mesmo, sem
fazer barulho, numa madrugada qualquer. Sem explicação, de amor ou de ódio.
Penso nele nesses dias frios. Ele, que era mais quente que os outros e me deixava
mergulhada em claras em neve e marshmallow. Mas ele fugiu.
terça-feira, 9 de julho de 2013
Todas as cartas de amor são mesmo ridículas
Eu me apaixonei por você,
desculpe-me. Desculpe-me? Não! Sou eu quem devo te perdoar. Eu não estava
disposta, nem mesmo me lembrava que paixão é vírus (justo eu, que lavo as mãos
incontáveis vezes ao dia e carrego na bolsa pelo menos dois frasquinhos de um
gel capaz de matar 99% dos germes). É você quem me deve desculpas por ter
esburacado as minhas madrugadas. Por ter colocado tantos chios na minha corrente sanguínea.
Pelo formigamento na sola dos meus pés e na palma das minhas mãos. Pela gota de
suor que desce pelas minhas costas em dias invernais. Se eu conseguisse voltar
no momento exato da paixão, mas é difuso...não sei se foi a prata escura do
anel no teu dedão da mão esquerda, teus olhos vermelhos antes de espirrar, o
molho que você tirou do canto da boca com a língua, tua leitura lenta, tua
letra apressada, o samba que você batucou desafinado no joelho direito. Mas eu não
acredito no perdão, nem em Deus, nem em reza. No esquecimento, talvez, eu
acredite. E nas cartas ridículas, sim, nas cartas ridículas eu acredito.
sábado, 6 de julho de 2013
Refúgio
Na madrugada ela acorda
engasgada. Um novelo de lã engolido no jantar. Dizem que é possível andar sobre
aquele pedaço de mar. Ela levanta de calcinha e camiseta e caminha, mas só na
areia. Molha as pontas dos pés, puxa o ar dos pulmões com os olhos fechados, e
recua. E se for fundo? E se não tiver volta? E se não for amor?
sexta-feira, 5 de julho de 2013
Lua
Quem me socorre dessa luz branca contra as paredes? Um braço
que encostasse no meu e não me pedisse desculpa. Uma luz amarela, por favor.
Uma sombra projetada pela luz do abajur. Nossos braços. Pernas, se pudéssemos,
se estivéssemos. A luz branca piora o rímel escorrido. Derretido. Doído. Foi
Pessoa. Foi ela. Foi ele. Foi você. Vou morrer. Você também. Mas não hoje.
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