O carro
abalroado dói. O choro da criança dói. A birra da criança dói. A imagem dos
reféns no Quênia dói. A notícia que chega da Síria dói. A criança dormindo na
rua dói. O lucro dos bancos dói. O preço do metro quadrado dói. O Iphone grudado nos nossos ouvidos e olhos dói. A existência da
Segunda Guerra dói. A Iugoslávia despedaçada dói. O esquecimento da Armênia
dói. A ganância das grandes corporações dói. O sumiço do silêncio dói. O som da televisão dói. O andamento do
Judiciário dói. A falta de educação no trânsito dói. Não ser um camaleão sem
consciência da própria camuflagem dói. Não poder tirar o dia pra ler Lobo
Antunes dói. Ler Lobo Antunes dói. Tomar suco embalado que dura vinte meses
dói. Falta de empatia dói. Fila no hospital dói. Mais um shopping na cidade
dói. A fome na África dói. A AIDS na África dói. Mais um carro nas ruas dói. Atendimento de call center dói. Propaganda de celular dói. Ter uma hora de almoço dói. Ter cartão de ponto na
empresa dói. Dar um tapa no bumbum do filho dói. Criança espancada dói. Velho
abandonado dói. Bicho maltratado dói. O preço da comida dói. Falta de comida
dói. A lista dos mais lidos dói. Minha cabeça, minha coluna, meus pés, minhas
pernas, meus braços, minhas mãos, meus olhos, meu estômago...salve-me, Lobo Antunes, salve-me.
segunda-feira, 23 de setembro de 2013
sexta-feira, 20 de setembro de 2013
Nana, nenê
É como se você colocasse seu coração,
seus pulmões, seu estômago, seus rins, seus braços, suas pernas, seus pés e
suas mãos na cama, os cobrisse e dissesse boa noite. Mas como se isso não
bastasse é como se fosse preciso passar a noite ao lado deles para ver se não
deixam de se mexer. Porque não há, agora, maior pavor no mundo, além do mundo,
do que vê-los sem se mexer. É preciso um sopro dos pulmões ao menos. É preciso
que o coração dê um pulinho e que os rins filtrem uma gota que seja. Porque o medo
é maior que o mundo. Porque o amor é maior que o mundo. Porque não é amor. É
isso, algo para o qual não foi inventada uma palavra. Sinto muito. E não é nada
disso porque se fossem seus esse coração, esses pulmões, esse estômago, esses
rins, esses braços, essas pernas, esses pés e essas mãos, você não se queixaria
se endurecessem. É como se fossem o coração, os pulmões, o estômago, os rins,
os braços, as pernas, os pés e as mãos do mundo. Nada antes. Nada mais depois.
O Aleph. Ali, hoje, naquela cama, dormindo, depois de você ter lido uma
história para ele.
sábado, 14 de setembro de 2013
Jethro Tull
No meu primeiro ano como estudante universitária e moradora
de São Paulo, numa das minhas muitas viagens de ônibus pela cidade, sentei-me
ao lado de um menino então com cinco ou seis anos de idade, acompanhado de um
homem não tão jovem quanto eu. Enquanto eu me distraía pela janela (não
tínhamos as cabeças voltadas só para os celulares, nem mesmo havia os
celulares), o garoto esticou um walkman ou um discman (não me lembro exatamente
o que usávamos para ouvir música naqueles anos) para o homem: pai, coloca Jethro
Tull pra mim? Aqui a gente ouve música boa, foi a resposta do homem para o meu
sorriso arregalado.
Desde então a imagem daquele menino me invade quando estou
parada no trânsito, ou caminhando, ou ouvindo música que não é mais Jethro
Tull, ou tomando sorvete, ou trabalhando, ou vendo meus filhos brincarem, ou
jogando Candy Crush. E hoje, numa dessas invasões, eu descobri, não sem susto,
que aquele menino não é mais um menino. Aquele menino nem é mais um
adolescente. Aquele menino deve ter a idade que o pai dele tinha quando sorriu
para mim e as perguntas e inquietações que me rondavam naquele ônibus continuam
aqui.
quarta-feira, 11 de setembro de 2013
Eu e ela ou ela e eu
Nossas diferenças:
A calça que eu visto deve custar umas dez vezes a dela. O
xampu que eu uso deixa o meu cabelo sedoso. O dela não. Meu celular tem um
computador dentro dele. O dela só faz e recebe ligações. Eu estou no metrô por
opção. Ela por necessidade.
Nossas semelhanças:
Nossas calças, xampus e celulares foram feitos nos mesmos
lugares. E ela segura a mãozinha de seu filho para com ela acariciar o próprio
rosto, pouco antes de encher seu bebê de beijos.
segunda-feira, 9 de setembro de 2013
A maçã
De longe, as coisas
pareciam simples, sem razão para se preocupar com o liquidificador quebrado, os
dentes da criança não escovados, a porta do carro amassada, a conta de luz
atrasada, a lâmpada do banheiro queimada, a geladeira vazia de alimentos não
vencidos, as noites de uma semana não dormidas, os abraços e os beijos não
dados, os amigos não visitados. De longe, a vida era grande e livre como ondas
do mar. De longe, os pulmões e os corações eram fortes e corajosos. Mas doía
quando chegava perto. Doía muito.
Banco imobiliário
Câncer. Terremoto.
Gripe. Difteria. Aids. Enfarte. Derrame. Acidente de carro. Ebola. Amor não
correspondido. Depressão. Enfisema. Cólera. Alzheimer. Avalanche. Síndrome do
pânico. Parkinson. Quedas. Malária. Sopro. Úlcera. Pneumonia. Ciclone.
Afogamento. Queimadura. Bronquite. Esclerose múltipla. Dengue. Raiva. Tornado. Febre
amarela. Convulsão. Epilepsia. Peste bubônica. Alcoolismo. Cardiopatia
isquêmica. Diarreia. Desnutrição. Mudez. Ansiedade generalizada. Tuberculose.
Diabete. Pancreatite. Inundações. Hemofilia. Esquizofrenia. Surdez. Furacão. Bipolaridade.
Tsunami. Seca. Cegueira. Anencefalia. E ainda inventamos a guerra.
sábado, 7 de setembro de 2013
Detalhes
A escova de dentes e a de cabelo. O xampu. O creme de barbear
e a loção. As toalhas. O cortador de unha. O perfume e os desodorantes. O
espelho portátil. Os comprimidos para dor de cabeça. O roupão. Os sapatos. As
meias. As roupas. As camisetas para dormir. As gravatas. As cuecas. As sungas.
Os cintos. As mochilas. As malas. O computador. Os livros. Os documentos. A bicicleta. As
fotografias. O capacete. Os óculos. Os gibis. Os quadros. Os selos. O travesseiro. Pela
primeira vez, em dezessete anos, ela iria dormir com a casa vazia dele, se não
fosse o casaco vermelho que ele usava para correr no frio, esquecido em cima da
cama.
quinta-feira, 5 de setembro de 2013
Preservações
Em todos os
encontros que tiveram, ele chegou atrasado. Porque estava jogando futebol, ou
andando de moto, ou jogando bilhar com os amigos, ou no bar com conhecidos de
bar, ou vendo novela. Mas sempre foi. E sempre foi com os olhos alegres, a boca
úmida e as mãos quentes. Nas noites frias, ele a envolvia, nua e friolenta, num
cobertor extra. Nas tardes quentes, ele a deitava, nua e calorenta, nas pedras
molhadas de uma cachoeira. Ele gostava de pés femininos e ela, sem precisar
implorar, nem mesmo pedir, ganhava massagens infinitas durante todo um filme ou
um capítulo de novela. Ela gostava do seu reflexo nele. Nenhum outro espelho mostrou-a
tão bonita. Foram incontáveis pedidos de casamento, até ajoelhado, até com
lágrimas. Ela sempre disse não. Ninguém sabe o porquê.
quarta-feira, 4 de setembro de 2013
Amanhã...talvez.
Ricardo saiu da
cama depois de uma noite de sono picotado pela preocupação com a prova de
estatística. Não conseguiria a nota mínima, perderia uma parte das férias,
talvez pagaria por uma dependência, aguentaria o discurso dos pais, a
reclamação da namorada e as piadas do chefe. Depois da prova ainda teria que
pedir dilação de prazo para a entrega do trabalho de planejamento e assinar a
lista da última aula a tempo de chegar na agência para uma reunião de
fechamento, sem almoço. Se soubesse que um ônibus atravessaria o seu presente e
roubaria o seu futuro, talvez Ricardo tivesse tido uma última noite bem
dormida.
segunda-feira, 2 de setembro de 2013
Pães e sonhos
Três pãezinhos, por favor. Dois para ela: um com molho de tomate em
lata e outro com creme de chocolate metade branco e metade preto. O terceiro
ficava ali, no canto da mesa, mas não tão no canto que ela não pudesse vê-lo,
martelando a presença de uma falta a cada dia mais irreparável, mesmo depois de
oito anos, três meses e cinco dias.
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