Tudo começou quando alguém
resolveu escrever que eu era o fruto proibido. Depois disso, passei a ser o
principal símbolo da transgressão. Pobre de mim. Por que não a laranja, o
abacaxi, a pêra? Pensando bem, nenhuma outra fruta é tão bela quanto eu. Minhas
curvas são uniformes, minha cor já provoca salivação e, para piorar, ou
melhorar, sou carnuda e molhada.
Não bastasse esse fardo, agora
serei a narradora de uma história em que eu já aparecia sem me orgulhar, por
conta justamente desse símbolo que me tornei. Novamente, pergunto: por que não
escolheram uma borboleta, uma flor ou um dos veados da floresta para esse
papel? Ou o guarda do castelo, que tudo vê? Sobrou para mim. Esse deve ser o
preço que se paga por ser bela e desejada.
É o mesmo preço que essa pobre
Branca de Neve vai pagar. Tão lindinha, com uma pele alva e uma boquinha que
lembra a mim. Essa bruxa que está aqui me envenenando também é belíssima. Está
certo que já é uma senhora, mas não deixa de ser linda: porte altivo, seios
fartos e firmes, pele lisa. Mas não basta: ela não aguenta ver a juventude em
outro corpo, vai matar a pequena Branca de Neve. E pior: vai me usar para isso.
Sinto uma dor profunda só de
imaginar Branquinha de Neve me mordendo com apetite, depois de tanto tempo
comendo aquela comida de anões que deve ser, além de pouca, insossa. A pequena
nem pode imaginar que vai me comer e se envenenar. E eu não posso fazer nada
para salvá-la. E se eu me jogasse das mãos dela e saísse rolando pelo chão?
Essa bruxa viria atrás de mim, nunca vi alguém tão obstinada. Quiçá eu pudesse
me atirar direto para a boca de um urso, ou de um coelho, pobrezinho. Antes eles
do que a dócil Branca.
Quisera Branca de Neve não fosse
tão ingênua. O que eu poderia fazer para impedi-la de abrir a porta para essa
malévola? Que infelicidade a minha. Ganho a narração da história, mas nenhum
poder para mudá-la. Se ao invés de narradora eu ganhasse o papel de autora, Branca
de Neve estaria mais esperta depois de morar com os anões, desmascaria a
madrasta perante o reino e tomaria o poder, sem príncipe algum ao seu lado. E
ainda entraria com uma reclamação trabalhista contra esses anões.
No entanto, como não recebi essa
incumbência, resumo esse conto para dizer que Branca de Neve me comeu e foi
dada como morta até que um príncipe encantado ressuscitou-a com um beijo.
Por conta desse final, as meninas
passarão os séculos vindouros procurando príncipes e encontrando apenas homens,
as mulheres maduras farão coisas inimagináveis em nome da juventude e da beleza
e as madrastas serão sempre as vilãs da história. Algumas, inclusive, farão com
que essa aqui pareça aprendiz.