segunda-feira, 30 de junho de 2014

Camomila ou hortelã?


Os sons de uma casa em silêncio não me deixam dormir. Uma pomba resolveu fazer seu ninho no buraco do ar condicionado. O aparelho se foi, não gosto de nada condicionado, e o buraco ficou, tapado com gesso, serviço mal feito que não arrumo, assim como a porta quebrada do armário: é que há tanta coisa mais urgente, como minha necessidade de dormir oito horas ininterruptas, por exemplo. Mas o silêncio da noite é barulhento, como a pomba-mãe. Eu sei o que é arrumar o ninho para os filhotes que vão chegar, dona pomba, eu também arrastava minhas patinhas para lá e para cá até encontrar o melhor ângulo para o berço. E depois ficava sentada olhando o berço vazio, imaginando a carinha de quem viria habitá-lo. A senhora também suspira, eu escuto.  Mas é que depois da chegada deles, dona pomba, escute-me bem, muito bem, a senhora vai precisar dormir, assim como eu. E serão tantos os sons e os ruídos para nos atrapalhar, que eu sugiro que a senhora descanse um pouco agora. E me deixe descansar também. Podemos dividir uma xícara de chá, se a senhora quiser. 

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Lição do dia


Deitei no chão da sala (não me lembro há quanto tempo não fazia isso), um brinco em cada orelha. Ajeitei a almofada sob a cabeça e o cobertor sobre o corpo. Era assim que fazia na casa dos meus pais, quando não sabia que a vida adulta se resume ao pagamento de contas  – e estava longe, tão longe, de saber. Melhor tirar os brincos, pensei. Tirei o da orelha direita. E descobri que o da esquerda já não estava lá. Durou pouco minha deitada no chão! De um pulo procuro o brinco caído na almofada, lugar óbvio, mas não estava ali. Os brincos são joias, presente da minha mãe, não quero perder o par. Começo a tatear o tapete: nada. Reviro todas as almofadas: nada. Embaixo do tapete: nada. Tiro os assentos do sofá: nada. Então eu não deitei com o brinco? Perdi na rua? Que tristeza, o brinco que ganhei de minha mãe sendo pisoteado com a violência típica desta cidade. Mas já perdi tantas pessoas e quando me lembro delas já não sinto mais nada pelo brinco. Fujo para uma xícara de chá quente, que resolvo tomar na varanda. Passo os olhos pelas flores que estão coloridas, as folhas tão verdinhas me alegram e ali, perto de um vaso, brilhando, encontro o brinco.

domingo, 22 de junho de 2014

Amo tanto ...


Ela não entendia tudo, mas intuía um amor que queria para si. Amar tanto e de tanto amar achar uma mulher bonita. Ela não era bonita, sabia, mas essa moça com um olho a boiar e outro a agitar, o que era isso? Feia demais, ela pensava, mesmo sem conseguir visualizá-los. Pernas enroscadas, balé esquisito, casar em Porto Rico, isso ela entendia e queria, sonhava com um vestido branco e uma maquiagem que disfarçasse os buracos do seu rosto e trouxesse seus olhos para a superfície. Se a mulher da música era tão mais esquisita, um olho arregalando uma pepita, outro madrugando na bodeguita (onde?), e conseguiu um homem para cantar uma música assim para ela, só para ela, por que ela não conseguiria? Onde está meu homem, ela pensava enquanto sonhava com o vestido e depois com um bebê e depois com uma canção feita para ela, mesmo que ela quase nada compreendesse. Bastaria haver alguma soma de olhar para se conhecer inteiro, mas isso nem precisaria estar na letra. Podia estar só no olhar mesmo.

terça-feira, 17 de junho de 2014

O engano

Ela apertou o botão do elevador, precisava sair daquele prédio, havia um engano. Ela não estava louca como o rapaz do quarto à esquerda, que dava bom dia, boa tarde e boa noite para as paredes com uma voz derretida. Ela sabia seu nome e sua data de nascimento, ao contrário da mulher do quarto em frente. Nem tinha passado uma lâmina nos pulsos como a garota do quarto à direita. Ela só queria dormir, descansar, parece que até deus descansou no sétimo dia. Dizem. Só que uma pílula não lhe trouxe o sono, nem duas, nem três, nem quatro, nem a perda da conta. Mas era só isso: descansar, como quem deita à beira do mar com os pés para cima, o olhar relaxado no horizonte. Por isso ela precisava deixar aquele prédio. Por isso ela apertou o botão. Porque havia um engano. Mas os homens de branco que a rodearam não entenderam assim. Nem quando ela gritou. Nem quando ela esperneou. Nem quando a trancaram de volta no quarto. Nem quando ela passou mais uma noite em claro, pensando nos filhos e dizendo baixinho, como quem reza, que era apenas um engano. 

segunda-feira, 16 de junho de 2014

A resposta do vizinho

A vizinha, por Maice Glaser (minha amiga)


No prédio ao lado do que moro vive uma mulher. Vivem muitas mulheres, mas esta é a que me chama atenção. Ela é jovem, deve ter trinta e poucos anos, tem os cabelos mechados, na altura dos ombros, é alta, é triste. Enquanto coloco meu avental vermelho (presente do Dado para comemorar o trigésimo sétimo jantar da turma) e começo a preparar os comes e bebes (mais bebes do que comes), eu a observo. Ela tem um jeito indefinido e confesso que meu olhar já não alcança tão longe, mas ela ne dá uma impressão de desassossego. Parece uma personagem de algum livro Russo, talvez de uma história de amor inacabada, talvez uma personagem à espera de uma história. O que sei é que ela me intriga e me acalenta ao mesmo tempo. Gosto de vê-la ali, tão próxima e ao mesmo tempo tão distante.

Enquanto preparo os aperitivos (o Léo diz que sempre tem que ter aperitivos antes do jantar, para esquentar o papo), levanto o olhar de vez em quando para a janela da cozinha dela. Muitas vezes tenho vontade de dizer a ela (ainda tão jovem), que seja o que for que a angustia tanto, vai passar. Que os dias correm sem piedade de nossos medos ou dúvidas. Correm. Que o que importa é ter amigos (talvez um grupo de mulheres como estes homens que frequentam minha casa há tantos anos). Amigos para o futebol, amigos para falar sobre o livro que acabamos de ler, amigos para ir ao cinema, amigos que tenham o número do telefone de nossos pais (os meus não mais) e nossos filhos (o Joca tem o número do telefone de meus três filhos), amigos para o passeio da manhã, outros para o bar da noite, outros para o silêncio. Dizer que esta solidão que ela sente, não passa. Afinal, somos sós, mas isto não é necessariamente ruim. Gosto de minha companhia. Mas não foi fácil chegar até aqui. Como diz o Paulão: “É um longo caminho até nos sentirmos em casa, quando a casa é o que resta de nós.”

Moça bonita, podia ser minha filha. E faz tempo que a danada não me telefona. Vou ligar hoje e perguntar: “Babi, cadê você?” E ela vai rir e dizer: “Pai, falei com você ontem.” E eu vou fingir que esqueci e vamos rir juntos.

Ela podia ser minha filha. Se fosse, eu a colocaria no colo e diria mais uma vez: “Isso vai passar.”

O Maneco está chegando. É sempre o primeiro. Vou colocar o samba para tocar e ele vai dizer: “Samba é bão” e vai dar aquelas voltas pela sala enquanto serve-se de cerveja.


Eu volto à cozinha e tenho vontade de acenar para a moça e dizer: “Vem, vem dançar e comer e beber com a gente”, mas ela parece tão longe, nunca olha em minha direção. Talvez seja o choro embaçando o olhar. Moça bonita, assim não vai ver o Bão da vida.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

O vizinho

No prédio ao lado do prédio em que moro, mora um homem. Vários homens. Mas há esse homem, cabelos grisalhos, que toda noite coloca um avental vermelho sobre a calça e a camisa social e cozinha para os amigos, regados com várias garrafas de vinho. Ele cozinha, eles bebem, eles fumam, eles conversam; eles raspam o prato e conversam mais. Nunca sobremesa. Sempre café. Sei que há música porque a luz do aparelho de som fica acesa, azul, e só é apagada quando todos se vão. Fico parada na janela da minha cozinha, vazia de amigos, comida e vinho, vazia de amor, desejando secretamente que me vejam e me acenem num convite. Mas nunca me viram ali, copo d’água gelada na mão e lágrimas nos olhos. Há muito naquela cozinha para poderem me notar. 

segunda-feira, 9 de junho de 2014

O homem do conserto

Por que estou aqui?

...

Eu estou aqui não porque meu casamento rachou com a batida da porta, nem porque tenho medo – não, medo eu tenho de perder o emprego e de encontrar patinhas de barata na comida do restaurante; o que eu sinto é pavor, uma indizível estremeção de ter que enterrar um filho; e nem estou aqui porque me pergunto todos os dias “e se chover?”

Eu estou aqui por causa da bolha que habita o meu estômago e de quando em quando se expande até a garganta e os dedos dos pés e das mãos, me amaldiçoando por eu ter apenas esse espaço para oferecer. Mas existem pernas e braços infinitos?

E quando sua inconformidade atinge a loucura, ela sobe para a minha cabeça e se autoinflama, como uma criança que desejasse ganhar o prêmio pela maior bolha de sabão já feita, soprando até o limite para não estourar, o espaço exato onde nenhuma gota de ar a mais caberia.

Eu fico como um balão perdido sobre os homens, aterrorizado com o azul que não está acima de nós, jogado pela ilusão a todos os cantos de uma cidade que não reconheço, gritando numa língua que ninguém decifra, até a bolha se autoesvaziar e me dar um pouco de tempo na concretude em que também não me encaixo.

Comecei com chá de hortelã e de folha de maracujá, passei para Maracugina e passiflora. Divã, quatro paredes e nenhuma palavra solta. Lexapro e Rivotril. Uma poltrona, dois olhos em mim e os meus na janela. Estou cansada estou cansada estou cansada – só tenho essas palavras que ninguém entende para dizer. Ansiolíticos debaixo da língua e dentro da veia. Alimentei a bolha com ar e cinzas.

Em nenhuma dessas caixas e cômodos encontrei o homem do conserto. E hoje, ele veio?