sábado, 30 de janeiro de 2016

O tempo



Quando eu era criança, gostava do mar agitado. Quanto maiores as ondas, mais eu corria ao encontro delas. A água quebrando com força nos meus ombros, meus pés sem chão, o sal entrando pelos olhos, ouvidos e narinas. A cabeça para baixo, os pés para o alto, ir para a direita achando que ia para a esquerda, chegar ao fundo pensando que fosse o raso. Cambalhotas, os pés no lugar das mãos. Às vezes um peixe. Os cabelos desalinhados, total desnorteio. 

Hoje, aos quarenta, prefiro o mar como uma piscina.



quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Eles, sempre eles

Para eles,

Pouco tempo.
Muita ausência.
Muito concreto.
Pouco mar.
Pouco vento.
Muito ar condicionado.
Muitos visores.
Poucas estrelas.
Pouco silêncio.
Muito ruído.
Muito sal.
Pouco açúcar.
Muito de mim.
Pouco de mim.
Tão pouco de mim. 



sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Eu não existe

Eu a vassoura na lavanderia.
Eu o pano sobre a tampa do fogão.
Eu a toalha jogada sobre o box.
Eu a pá ao lado do lixo.
Eu o controle remoto debaixo do sofá.
Eu o capacho na porta.
Eu o espanador na biblioteca.
Eu a forminha de gelo vazia no freezer.
Eu o pacote de bolacha aberto na despensa.
Eu a lâmpada queimada no corredor.
Eu a lixa de unha molhada sobre a pia.
Eu a xícara lascada no fundo do armário.
Eu a caneta sem tinta jogada na gaveta.
Eu o pó debaixo do tapete.
Eu a mancha de sangue no colchão.
Eu a laranja podre na fruteira.
Eu a garrafa de vinho pela metade.
Eu a tevê quebrada no quarto.
Eu o tanque entupido que ninguém usa.
Eu a persiana emperrada.

Eu.



segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Noturno


Tinha o peito cheio de pássaros enjaulados e saiu para comprar um abajur. Caminhou debaixo de chuva, era sempre escuro agora, entrou na loja atraída por um par deles: base branca e cúpula de tecido azul com flores rosas, como a vida deveria ser. Como ela queria que fosse a vida. E voltou com dois abajures, um para ela, um para ele. O lado da parede dela, o lado da janela dele. Era uma menina se equilibrando na pontinha da cama, apertando e soltando o interruptor, carregando aquele monte de pássaros que logo morreriam de tristeza e ali, no seu peito, apodreceriam. As lâmpadas dos abajures queimaram em poucos meses, o lado dela primeiro, depois o dele. Nunca foram trocadas. E os abajures, com suas cúpulas floridas, continuam ali. Assim como ele. Assim como ela.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Previsão do tempo

Ela entrou na estrada, mãos no volante, o carro a 100 km/h, quase meia-noite, debaixo de chuva, olhou para o rádio que tocava uma música qualquer das dez mais ouvidas, quando afundamos a esse ponto irretornável?, e pensou nas férias de sua infância, um mês na praia com a mãe, o pai e as irmãs menores, quando olhava apenas para o carrinho de sorvete e não para o pôr-do-sol, como se o pôr-do-sol, e não o carrinho de sorvete, fosse estar ali, sempre, para todo o sempre, como a infância, os pais jovens e as irmãs crianças. E agora, agora, porra, é sempre meia-noite. E só chove.