segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Coisas



O vaso sanitário entupido. O ralo do chuveiro também. A fronha cem por cento algodão egípcio rasgada, a parede do quarto com infiltração, o aquecedor que só funciona quando quer, a jarra, ah, a jarra que há tantos anos vejo sobre a mesa durante as refeições, rachada, ontem inteira e hoje rachada, assim como mais um copo, nunca uma dúzia no armário cuja porta está caindo, as manchas nas paredes da sala, dos quartos e da cozinha, manchas de bola, de sapatos, de sangue de pernilongo e óleo, o liquidificador que não liga mais, junto com o aspirador, é greve!, escuto eles tramarem, os tecidos dos sofás e das cadeiras da mesa de jantar desfiados pelos gatos, assim como o colchão, assim como o papel de parede, assim como a poltrona do escritório e as cadeiras da varanda, assim como... o espelho enferrujado que nunca troquei, mais uma lâmpada queimada, não, são duas, são coisas, só coisas, coisas que vão sobreviver a mim se eu não jogá-las antes, coisas das quais talvez eu nem goste, talvez eu as deteste, por me lembrarem todos os dias, ao acordar e ao adormecer, de que não dou conta (das coisas) dessa vida.




segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Só mais um



Não fumo. Mas poderia agora arranjar um cigarro e um isqueiro e me debruçar pela janela sobre a Avenida Paulista para dar uma longa tragada, sentir meus pulmões se encherem de ainda mais fumaça até o limite, até onde também levaria a metade do meu corpo pela janela, só para experimentar, só para borbulhar o sangue, só para repensar, só para enxergar que não há nada além disso, na-da, por isso eu deveria fazer alguma coisa, me mudar para Tapiraí ou Ubatuba e deixar de chorar sobre o concreto. Como seriam as minhas tantas outras vidas possíveis? Um pé de jaca no quintal, um cachorro cheio de lama, as solas dos pés rachadas das crianças, menos dor de cabeça, chá de folhas e não de saquinhos, que vida, meudeus, que vida!, meu cabelo com cheiro de grama, estrelas, o dinheiro debaixo do colchão, o cigarro está acabando e eu não fumo. Só esse. Mas nada é muito possível durante um só cigarro. 



terça-feira, 4 de outubro de 2016

Presente

Ganhei uma ruga nova nessa madrugada, e tenho certeza que foi nessa madrugada. Tenho certeza porque ontem à noite, antes de dormir, ainda olhei bem para o meu rosto enquanto passava um creme antirrugas ao redor dos olhos. E foi justamente ao redor de um dos olhos que ganhei essa ruga, novinha, apesar dela já chegar com um passado, ou só por causa desse passado. Hoje, enquanto lavava o rosto (justamente) para tirar o creme antirrugas, a descobri ali, acompanhando a sobrancelha, uma ruga camaleônica, mas a identifiquei. Agora é minha, a ruga que nasceu enquanto eu envelhecia em uma noite mal dormida.