Ela chegou em casa com uma frase
se chocando contra os limites do seu crânio que precisava ser escrita no caderno
vermelho. Só quando aprisionadas nas suas páginas as palavras lhe davam sossego.
Abriu a bolsa e não encontrou o
caderno. Aquele frêmito conhecido dos momentos de susto percorreu todo o seu
corpo, acumulando-se nos braços e pernas, como se a energia ainda precisasse de
mais espaço para expandir-se.
Inspirou e expirou. Mais uma vez
e mais profundo. Abriu a bolsa novamente com a certeza de que com calma tudo se
resolve. E se encontra. Tirou a carteira, a caixa dos óculos escuros vazia, os
óculos escuros com as lentas riscadas, uma pequena bolsa com maquiagem, o
telefone celular, uma agenda onde os compromissos não eram anotados, um estojo
com uma lapiseira e uma caneta, um papel com a lista do supermercado que
deveria ter sido feito há uma semana, duas balas meladas e nenhum caderno.
Ela não queria se sentir uma pessoa
descontrolada, mas as lágrimas começaram a forçar a passagem pelo canal e a
escorrer pelas bochechas quentes. Começou a bater com os pés no chão e a
grunhir como uma criança que não ganhou o brinquedo da vitrine durante um
passeio num dia que nada tinha de especial. Voltou todos aqueles objetos
inúteis para dentro da bolsa só para poder tirá-los mais uma vez. Só que agora
eles eram arremessados contra o assoalho e as paredes. Depois que viu os óculos
escuros com uma das hastes torta sentou no sofá e se pôs a relembrar quando
havia escrito nele pela última vez. A frase era “todo ser humano deveria ter o
direito de se enterrar vivo”, mas isso já devia fazer mais de uma semana, pois
nos últimos três ou quatro dias se sentia esperançosa, como se um raio de sol
viesse acordá-la todas as manhãs.
A frase ela escreveu em casa
antes de apagar a luz fraca do abajur, que naquela mesma noite ainda seria
acesa várias vezes, mas para iluminar as lágrimas e não as linhas do caderno. No
dia seguinte ela tomou um banho demorado antes de ir para o trabalho e vestiu
uma meia de seda e saltos altos. Gostou do que viu no espelho e gravou a imagem
das suas mãos colocando o caderno de volta na bolsa.
Se depois disso não pensou mais
em se enterrar, onde estava o caderno? Caído em algum vagão do metrô e sendo lido
por alguém incapaz de entender sua alma? Nas mãos de algum colega de trabalho
que passaria a olhá-la como se a conhecesse? No meio da rua pisoteado por pés
cegos? Num bueiro com suas folhas divididas irmãmente entre ratos e baratas? Desfeito
pelas águas de um córrego?
O dia escureceu e não havia luz
disponível. Nem a fraca do abajur.
Sentada no sofá da sala do
apartamento em que morava há quase dez anos, ela não sabia onde estava. Olhava
pela janela e via a sala vizinha onde as crianças corriam exibindo os joelhos
ralados. Estava tudo branco de tão frio. A cidade engolia pessoas e cuspia
espectros errantes diariamente. Felicidade era só uma palavra inventada pela
indústria farmacêutica. Ela não via onde se agarrar, o buraco a cegava. Era
grande demais para que ela pudesse se encontrar.
Ainda caída num canto da sala, a
carteira com a identidade plastificada: lembrança do dia em que procurou o
caderno vermelho. Antes de jogá-la na privada, cortou-a com uma tesoura em
quatro pedacinhos, para ter certeza de que nenhum voltaria.