quinta-feira, 28 de junho de 2012

O caderno vermelho


Ela chegou em casa com uma frase se chocando contra os limites do seu crânio que precisava ser escrita no caderno vermelho. Só quando aprisionadas nas suas páginas as palavras lhe davam sossego.

Abriu a bolsa e não encontrou o caderno. Aquele frêmito conhecido dos momentos de susto percorreu todo o seu corpo, acumulando-se nos braços e pernas, como se a energia ainda precisasse de mais espaço para expandir-se.

Inspirou e expirou. Mais uma vez e mais profundo. Abriu a bolsa novamente com a certeza de que com calma tudo se resolve. E se encontra. Tirou a carteira, a caixa dos óculos escuros vazia, os óculos escuros com as lentas riscadas, uma pequena bolsa com maquiagem, o telefone celular, uma agenda onde os compromissos não eram anotados, um estojo com uma lapiseira e uma caneta, um papel com a lista do supermercado que deveria ter sido feito há uma semana, duas balas meladas e nenhum caderno.

Ela não queria se sentir uma pessoa descontrolada, mas as lágrimas começaram a forçar a passagem pelo canal e a escorrer pelas bochechas quentes. Começou a bater com os pés no chão e a grunhir como uma criança que não ganhou o brinquedo da vitrine durante um passeio num dia que nada tinha de especial. Voltou todos aqueles objetos inúteis para dentro da bolsa só para poder tirá-los mais uma vez. Só que agora eles eram arremessados contra o assoalho e as paredes. Depois que viu os óculos escuros com uma das hastes torta sentou no sofá e se pôs a relembrar quando havia escrito nele pela última vez. A frase era “todo ser humano deveria ter o direito de se enterrar vivo”, mas isso já devia fazer mais de uma semana, pois nos últimos três ou quatro dias se sentia esperançosa, como se um raio de sol viesse acordá-la todas as manhãs.

A frase ela escreveu em casa antes de apagar a luz fraca do abajur, que naquela mesma noite ainda seria acesa várias vezes, mas para iluminar as lágrimas e não as linhas do caderno. No dia seguinte ela tomou um banho demorado antes de ir para o trabalho e vestiu uma meia de seda e saltos altos. Gostou do que viu no espelho e gravou a imagem das suas mãos colocando o caderno de volta na bolsa.

Se depois disso não pensou mais em se enterrar, onde estava o caderno? Caído em algum vagão do metrô e sendo lido por alguém incapaz de entender sua alma? Nas mãos de algum colega de trabalho que passaria a olhá-la como se a conhecesse? No meio da rua pisoteado por pés cegos? Num bueiro com suas folhas divididas irmãmente entre ratos e baratas? Desfeito pelas águas de um córrego?

O dia escureceu e não havia luz disponível. Nem a fraca do abajur.

Sentada no sofá da sala do apartamento em que morava há quase dez anos, ela não sabia onde estava. Olhava pela janela e via a sala vizinha onde as crianças corriam exibindo os joelhos ralados. Estava tudo branco de tão frio. A cidade engolia pessoas e cuspia espectros errantes diariamente. Felicidade era só uma palavra inventada pela indústria farmacêutica. Ela não via onde se agarrar, o buraco a cegava. Era grande demais para que ela pudesse se encontrar.

Ainda caída num canto da sala, a carteira com a identidade plastificada: lembrança do dia em que procurou o caderno vermelho. Antes de jogá-la na privada, cortou-a com uma tesoura em quatro pedacinhos, para ter certeza de que nenhum voltaria.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Condenado


Encostou a ponta do cano na orelha direita e antes de apertar o gatilho conseguiu pensar no gelado do metal – não que quisesse, mas era um fracasso também no controle do pensamento.

Espremeu os olhos, mordeu os lábios e mais uma vez o descontrole apareceu e pensou que era um estereótipo até como suicida. A forca não seria mais poética? Mas basta um segundo, não é preciso mais do que um segundo para a agonia se apossar da existência humana e a pessoa apertar o gatilho contra a própria cabeça. Foi o que aconteceu com ele antes que pudesse concluir o pensamento sobre formas mais bonitas de suicídio.

Ouviu a explosão da pólvora dentro da sua cabeça: o Big Bang, o fim do Cretáceo, a bomba sobre Hiroshima e o seu tão esperado próprio cataclismo. Ah, o silêncio. O não existir, o não pensar, o não sentir. Ser sem saber que se é. Finalmente era como uma lagartixa apenas existindo na parede fria do banheiro.

A pólvora estraçalhada provocando cócegas nas tripas labirínticas do cérebro. Lembrou das estrelinhas coloridas que ele riscava e girava nas festas juninas de sua infância, imaginou sua cabeça antes concretada de desalento agora como uma noite de São João toda colorida. Desde que entendeu o que era viver soube que seria bom morrer.

Mas aí ele abriu os olhos. Abriu os olhos? Sim, abriu os olhos. E o problema não seria abrir os olhos se ele tivesse se deparado com o inferno ou até mesmo com o paraíso. Abriu os olhos e viu no criado-mudo a foto dos filhos ao lado das provas da sua existência: a fatura do cartão de crédito, a conta do celular, a chave do carro e o boleto do convênio médico, junto com as provas da sua tentativa de ser: a pílula para dormir, o remédio para controlar o humor (leia-se o remédio para deixá-lo com cara de peixe no aquário diante dos ataques do chefe e da senhora sentada na calçada amamentando uma criança mais imunda que a vileza humana), as gotinhas para extirpar a ansiedade das suas células e os comprimidos retangulares difíceis de engolir para impedir a formação da tristeza.

A arma com o cano ainda fumegando caída em cima do tapete que a esposa insistia em colocar no seu lado da cama, para que ele pisasse no chão frio com o pé ainda quentinho, e o vazio ali onde deveria estar o seu corpo. O corpo que a mulher e os filhos iriam encontrar e sobre o qual chorariam algumas horas, alguns dias até, para depois continuarem suas vidas alegrinhas olhando para sua foto no porta-retrato em cima do piano. O corpo que não estava ali e ainda continuava embalando sua alma sedenta para se livrar daquele monte de músculos moles e gorduras.

Aproximou sua orelha direita do espelho da penteadeira com os cremes e perfumes da mulher e viu o buraco com zero vírgula trinta e oito polegadas de diâmetro mostrando um pouco do seu cérebro escuro sem estrelinhas brilhantes coloridas. Passou o resto do domingo em que a família estava no sítio de uns parentes olhando para aquele buraco se fechando diante do espelho, até que com o pôr-do-sol ele sumiu, como se naquele lugar tivesse sempre existido uma orelha - só uma orelha direita.

Antes que ouvisse o barulho do carro e as risadas na garagem, tentou mais uma vez no coração. Um dois três quatro disparos, dessa vez sem explosões e silêncios e estrelas e esperanças. Atirava atirava atirava e continuava ali, apenas com a pele um pouco mais branca, mas continuava ali respirando e sentindo e pensando e sendo o que não queria ser. Por quê?, era só o que ele se perguntava enquanto batia no peito com o cabo da arma comprada para proteger sua família do mal de fora dos muros.  O mal que ele um dia acreditou ser o pior do mundo.

Até que dobrou os joelhos de exaustão e chorou abraçado àquele revólver impostor. Como uma criança que se perde da mãe no parque que era para ser de diversões. O desespero lhe arranhava o coração com garras afiadas e dava-lhe nós nas entranhas como exímio escoteiro enquanto ria com escracho de sua patetice. Abraçado àquele revólver negador de sonhos, gritou para o mundo a dor de todas as mães.

Uma última tentativa. Dessa vez bem no meio da testa. Um gesto descrente, o dedo cansado no gatilho só para que pudesse amanhã procurar Deus e dizer que tentou; mas ele continuava ali, ajoelhado naquele tapete empoeirado e puído. Não sabia que crime havia cometido, mas sabia que era grave. Talvez o mais grave já cometido.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Procura-se


Como chegou ao café com pernas tão bambas, não sabia explicar. Olhou para os pés, mas não encontrou as formigas que sentia devorá-los. Talvez fosse só o bafo da manhã. Talvez a fome: havia saído de casa só com angústia no estômago. Pediu uma média e um pão na chapa. O pão ela jogou na lixeira da calçada. Na média conseguiu dar dois goles. A agonia quis sair em formato de vômito. Uma gota de suor gelado despencou da testa para o colo. Tentou, mas o bom dia para o balconista não saiu. Uma família dormia na calçada. E suas crianças, onde estavam? Olhou novamente para o atendente que lhe entregara o café, mas não o reconheceu. Por um instante viu seus filhos deitados na rua e seu amor sendo jogado no lixo não reciclável. A angústia começou a gritar sufocada dentro do estômago. Tentava subir até a garganta, mas um gole no café frio deixado em cima do balcão a fez descer. Viu as portas abertas de um ônibus e entrou.