terça-feira, 26 de junho de 2012

Condenado


Encostou a ponta do cano na orelha direita e antes de apertar o gatilho conseguiu pensar no gelado do metal – não que quisesse, mas era um fracasso também no controle do pensamento.

Espremeu os olhos, mordeu os lábios e mais uma vez o descontrole apareceu e pensou que era um estereótipo até como suicida. A forca não seria mais poética? Mas basta um segundo, não é preciso mais do que um segundo para a agonia se apossar da existência humana e a pessoa apertar o gatilho contra a própria cabeça. Foi o que aconteceu com ele antes que pudesse concluir o pensamento sobre formas mais bonitas de suicídio.

Ouviu a explosão da pólvora dentro da sua cabeça: o Big Bang, o fim do Cretáceo, a bomba sobre Hiroshima e o seu tão esperado próprio cataclismo. Ah, o silêncio. O não existir, o não pensar, o não sentir. Ser sem saber que se é. Finalmente era como uma lagartixa apenas existindo na parede fria do banheiro.

A pólvora estraçalhada provocando cócegas nas tripas labirínticas do cérebro. Lembrou das estrelinhas coloridas que ele riscava e girava nas festas juninas de sua infância, imaginou sua cabeça antes concretada de desalento agora como uma noite de São João toda colorida. Desde que entendeu o que era viver soube que seria bom morrer.

Mas aí ele abriu os olhos. Abriu os olhos? Sim, abriu os olhos. E o problema não seria abrir os olhos se ele tivesse se deparado com o inferno ou até mesmo com o paraíso. Abriu os olhos e viu no criado-mudo a foto dos filhos ao lado das provas da sua existência: a fatura do cartão de crédito, a conta do celular, a chave do carro e o boleto do convênio médico, junto com as provas da sua tentativa de ser: a pílula para dormir, o remédio para controlar o humor (leia-se o remédio para deixá-lo com cara de peixe no aquário diante dos ataques do chefe e da senhora sentada na calçada amamentando uma criança mais imunda que a vileza humana), as gotinhas para extirpar a ansiedade das suas células e os comprimidos retangulares difíceis de engolir para impedir a formação da tristeza.

A arma com o cano ainda fumegando caída em cima do tapete que a esposa insistia em colocar no seu lado da cama, para que ele pisasse no chão frio com o pé ainda quentinho, e o vazio ali onde deveria estar o seu corpo. O corpo que a mulher e os filhos iriam encontrar e sobre o qual chorariam algumas horas, alguns dias até, para depois continuarem suas vidas alegrinhas olhando para sua foto no porta-retrato em cima do piano. O corpo que não estava ali e ainda continuava embalando sua alma sedenta para se livrar daquele monte de músculos moles e gorduras.

Aproximou sua orelha direita do espelho da penteadeira com os cremes e perfumes da mulher e viu o buraco com zero vírgula trinta e oito polegadas de diâmetro mostrando um pouco do seu cérebro escuro sem estrelinhas brilhantes coloridas. Passou o resto do domingo em que a família estava no sítio de uns parentes olhando para aquele buraco se fechando diante do espelho, até que com o pôr-do-sol ele sumiu, como se naquele lugar tivesse sempre existido uma orelha - só uma orelha direita.

Antes que ouvisse o barulho do carro e as risadas na garagem, tentou mais uma vez no coração. Um dois três quatro disparos, dessa vez sem explosões e silêncios e estrelas e esperanças. Atirava atirava atirava e continuava ali, apenas com a pele um pouco mais branca, mas continuava ali respirando e sentindo e pensando e sendo o que não queria ser. Por quê?, era só o que ele se perguntava enquanto batia no peito com o cabo da arma comprada para proteger sua família do mal de fora dos muros.  O mal que ele um dia acreditou ser o pior do mundo.

Até que dobrou os joelhos de exaustão e chorou abraçado àquele revólver impostor. Como uma criança que se perde da mãe no parque que era para ser de diversões. O desespero lhe arranhava o coração com garras afiadas e dava-lhe nós nas entranhas como exímio escoteiro enquanto ria com escracho de sua patetice. Abraçado àquele revólver negador de sonhos, gritou para o mundo a dor de todas as mães.

Uma última tentativa. Dessa vez bem no meio da testa. Um gesto descrente, o dedo cansado no gatilho só para que pudesse amanhã procurar Deus e dizer que tentou; mas ele continuava ali, ajoelhado naquele tapete empoeirado e puído. Não sabia que crime havia cometido, mas sabia que era grave. Talvez o mais grave já cometido.

3 comentários:

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  2. Menina, você se superou! Eu senti a angustia desse personagem. Incrível, fantástico, maravilhoso... e outras manifestações mais, desse teu amigo e fã de carteirinha. Beijos e parabéns, sempre!!!..

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