Encostou a ponta do cano na
orelha direita e antes de apertar o gatilho conseguiu pensar no gelado do metal
– não que quisesse, mas era um fracasso também
no controle do pensamento.
Espremeu os olhos, mordeu os
lábios e mais uma vez o descontrole apareceu e pensou que era um estereótipo
até como suicida. A forca não seria mais poética? Mas basta um segundo, não é
preciso mais do que um segundo para a agonia se apossar da existência humana e
a pessoa apertar o gatilho contra a própria cabeça. Foi o que aconteceu com ele
antes que pudesse concluir o pensamento sobre formas mais bonitas de suicídio.
Ouviu a explosão da pólvora
dentro da sua cabeça: o Big Bang, o fim do Cretáceo, a bomba sobre Hiroshima e o
seu tão esperado próprio cataclismo. Ah, o silêncio. O não existir, o não
pensar, o não sentir. Ser sem saber que se é. Finalmente era como uma lagartixa
apenas existindo na parede fria do banheiro.
A pólvora estraçalhada provocando
cócegas nas tripas labirínticas do cérebro. Lembrou das estrelinhas coloridas
que ele riscava e girava nas festas juninas de sua infância, imaginou sua
cabeça antes concretada de desalento agora como uma noite de São João toda colorida.
Desde que entendeu o que era viver soube que seria bom morrer.
Mas aí ele abriu os olhos. Abriu
os olhos? Sim, abriu os olhos. E o problema não seria abrir os olhos se ele
tivesse se deparado com o inferno ou até mesmo com o paraíso. Abriu os olhos e
viu no criado-mudo a foto dos filhos ao lado das provas da sua existência: a
fatura do cartão de crédito, a conta do celular, a chave do carro e o boleto do
convênio médico, junto com as provas da sua tentativa de ser: a pílula para
dormir, o remédio para controlar o humor (leia-se o remédio para deixá-lo com
cara de peixe no aquário diante dos ataques do chefe e da senhora sentada na
calçada amamentando uma criança mais imunda que a vileza humana), as gotinhas
para extirpar a ansiedade das suas células e os comprimidos retangulares difíceis
de engolir para impedir a formação da tristeza.
A arma com o cano ainda fumegando
caída em cima do tapete que a esposa insistia em colocar no seu lado da cama,
para que ele pisasse no chão frio com o pé ainda quentinho, e o vazio ali onde deveria estar o seu corpo. O corpo
que a mulher e os filhos iriam encontrar e sobre o qual chorariam algumas
horas, alguns dias até, para depois continuarem suas vidas alegrinhas olhando
para sua foto no porta-retrato em cima do piano. O corpo que não estava ali e
ainda continuava embalando sua alma sedenta para se livrar daquele monte de
músculos moles e gorduras.
Aproximou sua orelha direita do
espelho da penteadeira com os cremes e perfumes da mulher e viu o buraco com
zero vírgula trinta e oito polegadas de diâmetro mostrando um pouco do seu
cérebro escuro sem estrelinhas brilhantes coloridas. Passou o resto do domingo
em que a família estava no sítio de uns parentes olhando para aquele buraco se
fechando diante do espelho, até que com o pôr-do-sol ele sumiu, como se naquele
lugar tivesse sempre existido uma orelha - só uma orelha direita.
Antes que ouvisse o barulho do
carro e as risadas na garagem, tentou mais uma vez no coração. Um dois três
quatro disparos, dessa vez sem explosões e silêncios e estrelas e esperanças. Atirava
atirava atirava e continuava ali, apenas com a pele um pouco mais branca, mas
continuava ali respirando e sentindo e pensando e sendo o que não queria ser. Por
quê?, era só o que ele se perguntava enquanto batia no peito com o cabo da arma
comprada para proteger sua família do mal de fora dos muros. O mal que ele um dia acreditou ser o pior do
mundo.
Até que dobrou os joelhos de
exaustão e chorou abraçado àquele revólver impostor. Como uma criança que se
perde da mãe no parque que era para ser de diversões. O desespero lhe arranhava
o coração com garras afiadas e dava-lhe nós nas entranhas como exímio escoteiro
enquanto ria com escracho de sua patetice. Abraçado àquele revólver negador de
sonhos, gritou para o mundo a dor de todas as mães.
Uma última tentativa. Dessa vez
bem no meio da testa. Um gesto descrente, o dedo cansado no gatilho só para que
pudesse amanhã procurar Deus e dizer que tentou; mas ele continuava ali,
ajoelhado naquele tapete empoeirado e puído. Não sabia que crime havia cometido,
mas sabia que era grave. Talvez o mais grave já cometido.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMenina, você se superou! Eu senti a angustia desse personagem. Incrível, fantástico, maravilhoso... e outras manifestações mais, desse teu amigo e fã de carteirinha. Beijos e parabéns, sempre!!!..
ResponderExcluirDoeu.
ResponderExcluir