sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Morte num dia de sol


Ele morreu. Assim: morreu. Nenhuma notícia nos jornais e nas revistas. Nada no rádio e na televisão. Não choveu. Não foi decretado feriado. As pessoas continuaram atrasadas para seus compromissos. Algumas nem ao velório conseguiram chegar. Mas ele morreu. Assim: morreu.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Sonho


A minha casa tem silêncio e uma biblioteca. Um quintal gramado com espreguiçadeira e borboletas para as tardes de verão. Joaninhas também. Para as tardes de inverno, uma sala envidraçada com mesinha para a xícara de chá e poltrona para a leitura. Lareira também. A porta da frente fica aberta para os amigos. Assim como a da cozinha. Mesa de jantar para vários. Se puderem, tragam um livro – nas mãos ou no coração, e uma garrafa de vinho; mas não é necessário. Essencial mesmo, só a verdade.  

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Os dias são cruéis


Ela percebeu quando o dia clareou. Ainda não tinha dormido, apesar de deitada na cama desde o início da noite. Era necessário se arrastar para chegar a algum lugar – o banheiro ou outro qualquer que ela ainda não conhecesse. E se começasse uma vida em São Miguel do Gostoso? Com esse nome, o que poderia dar errado? Quem precisa de tela plana 50 polegadas para ajudar a insônia? E os filmes agora são dublados. E todos ficam felizes no final. Seu apartamento treme quando o metrô passa, há uma obra ao lado com marretas das sete às dezenove, o elevador está sempre quebrado, o salário é pouco, o encanador não aparece, o ex-marido já arranjou namorada e os dias não respeitam seu necessidade de se arrastar. O que, afinal, pode dar errado em São Miguel do Gostoso?

sábado, 25 de agosto de 2012

Uma última lembrança


Em seu perfil no Facebook declarou gostar de caminhar à beira-mar, apesar de nunca ter ido à praia. “Que conhecer o mar que nada!”, dizia o pai militar. “Praia é coisa de gente à toa. Ou você acha que uma pessoa séria fica lá parada olhando a água? Ou pulando onda feito um macaco? Filho meu não é nem uma coisa nem outra”.

Aos nove anos, quando ainda vivia com os pais em Brotas, observou a prima chegar com uma vitrola portátil e vermelha, um sonho de consumo que o pai nunca realizou. “Filho meu não é maricas”, vaticinou. A prima colocou a agulha sobre o disco e a música que Marco Aurélio ouviu fez seu corpo queimar. Fechou os olhos e suas pernas se soltaram do tronco. O menino rodava como um pião, avistava as paredes brancas do quarto todas coloridas e ria por todos os poros. Pela primeira vez, deixou de existir. Até divisar o pai entrar no quarto e marcar sua bochecha esquerda com a palma da mão acostumada a pegar em armas.

A partir desse dia, a mãe passou a roubar na conta da feira, da farmácia e da mercearia, libertando o filho anos mais tarde para morar na capital. Com a ajuda de uma tia, Marco alugou uma quitinete num dos edifícios símbolo da cidade. Nos elevadores distinguia aposentados, travestis, garotas de programa, intelectuais, executivos, donas de casa, professores, bancários, escritores, comerciários e cantoras de ópera. Aos poucos, Marco Aurélio foi sumindo na diversidade: perdeu os pêlos do corpo com cera quente, afinou a sobrancelha com uma pinça de estimação e ganhou músculos mais definidos, principalmente no abdômen e nas nádegas. Em seu lugar foi aparecendo Waleska, bailarina e cantora de sucesso na Drinks, boate próxima ao prédio em que morava.

Eram três horas da tarde quando Waleska, ainda na cama, ouviu o telefone tocar. Sua mãe soluçava. O pai estava morrendo num quarto de hospital. “Aneurisma, meu filho”... “Foi o único homem que conheci, entenda minhas lágrimas”.

Waleska mirou por alguns minutos a Consolação, sua confidente na cidade grande.  Em seguida vestiu a peruca loira que usava para dublar a Madonna e seu vestido preferido, de lamê vermelho. Olhou no espelho para verificar se o bumbum estava bem marcado. Estava. Nos pés, uma sandália dourada, salto quinze, que combinava com os brincos de argola. Nos olhos: muito brilho. Os lábios: escarlate.   

Antes de sair, respirou fundo, pegou a câmera digital e se benzeu como de costume. Seguiu num táxi até Santos. Parou no trecho onde o mar lhe pareceu mais agitado e ficou imóvel pisando na areia com suas sandálias douradas. Com as mãos trêmulas, conseguiu ficar descalça. Afundou os pés naqueles grãos fininhos e quentinhos até que as lágrimas se soltaram dos olhos. Ao contrário do que planejara, saiu correndo em direção à água, sem se permitir conhecê-la aos poucos. Pulava as ondas, caía e levantava, engolia água e sal, perdia o fôlego, batia a cabeça na areia, depois as costas, ficava em pé de novo e ria. Pulava e ria. Pulava e ria alto. Pulava e gritava. Feito um macaco. “Feito uma macaca, pai. E no cio. Escutou? Macaca no cio!”

Enquanto isso, o amigo taxista fotografava. Exaurida, Waleska voltou para casa. Imprimiu as fotos num tamanho em que ela pudesse ser nitidamente vista como uma macaca numa tarde à toa. Escolheu a melhor e antes de colocá-la num envelope endereçado ao pai, escreveu no verso:

Vá em paz.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Cansaço


Acordou e se vestiu sem tomar banho. Não preparou o café da manhã, não levou as crianças para a escola, não se despediu do marido, não pegou o carregador do celular e não colocou um livro na bolsa. Bateu a porta da sala sem dar ordens para a empregada. Não foi para o trabalho nem ligou para o chefe. Caminhou até a praça mais próxima, sentou no banco vazio e passou o dia imóvel.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Vinte de agosto


Hoje deveria ser o dia em que acordaríamos com a casa enfeitada de balões coloridos ao som de “parabéns a você”. Na mesa do café da manhã, suco de laranja, “french toasts”, um livro e um envelope com a minha caligrafia. Nós o abraçaríamos sem acreditar que o tempo passa tão depressa. Hoje eu faria desse dia o dia dele, mas ele não veio. Mesmo assim, dedico a ele minha xícara de café preto sem açúcar.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Água


Ele empacotava as verduras e os ovos sob o meu olhar atento. Um sorriso súplice tentava disfarçar as mãos levemente trêmulas e os cabelos grisalhos, destoantes das mãos firmes e ágeis dos colegas com cabelos escuros lambuzados de gel. A caixa me explicou que se tratava de um novo programa social da empresa. Eu apenas queria os ovos inteiros. Pedi que os produtos de limpeza ficassem por baixo do resto quando a chuva veio com a força das horas. A paisagem embranquecida molhou meus planos de chegar a tempo na manicure antes de buscar as crianças na escola. Ele largou os pés de alface, os tomates, os ovos e os iogurtes em cima da esteira e saiu para o meio da rua, rodopiando com os braços esticados e as palmas das mãos voltadas para o céu que me castigava:

Perdoa eu, moça. De onde eu vim não tinha água.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Amor


Tirou a casca da manga em finas tiras para não desperdiçar a polpa. Cortou-a em pequenos quadrados. Limpou o abacaxi e picou-o em vários triângulos isósceles. Chupou o sangue que a faca afiada tirou do seu indicador antes de desinfetar e proteger o corte. Desfolhou os morangos já lavados e partiu-os ao meio. Comeu um. Depois outro. Tirou os caroços das uvas verdes e rubis. Transformou algumas bananas em círculos e duas maçãs em minúsculos retângulos. Lamentou a falta de pêssegos maduros. Jogou sobre a mescla colorida o sumo de quatro laranjas. Misturou tudo com as mãos e lambeu os dedos antes de lavá-los na pia da cozinha. Sentiu arder o corte. Colocou a sobremesa na geladeira e foi tomar um banho para esperá-lo.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O jardim secreto


Nas manhãs de sábado, acordada com os olhos fechados ainda na cama, ela pode curtir a casa com cômodos amplos e um jardim ensolarado e silencioso, no qual ela coloca duas espreguiçadeiras sobre as quais ela e ele se deitam de mãos dadas. Os dois se cobrem com uma manta. Ela sente falta de um chá. Nenhum dos dois fala, só as maritacas. Ele aperta a mão dela - um pouco enrugada. Ela sorri tão discretamente que se ele tivesse os olhos abertos nem perceberia. Os raios do sol tocam os cabelos e o coração dela e uma lágrima molha o travesseiro.  

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Fragmentos de uma vida sem sentido

- Ei, menina, sai daí.
- Não.
- Sai.
- Não.
- Por quê?
- Sinto medo.
- De quê?
- De tudo.
- Me dá um canto?

***

E ele descobriu, tão jovem, que não há band-aid para todas as dores.

***

E se, só hoje, ela dissesse que está doente?

***

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

E quando ainda resta uma pergunta?


Umas ficam com as pernas bambas por causa do amor. Outras por causa da paixão. Outras por raiva. Outras por fraqueza. Por pressão baixa. Por cansaço. Por cãibra. Por medo. Por sono. Outras porque um tumor não deixa mais o cérebro funcionar como deveria. Este foi o caso dela. Ela, que durante quinze anos beijou seu homem todas as manhãs e todas as noites. Ela, que trabalhava em São Paulo para mandar metade do salário para o Piauí. Ela, que todos os dias passava com perfeição a farda do filho. Ela, que viveu do jeito que deu e vai morrer do jeito que dá. É isso. Só isso. Acabou.