Em seu perfil no Facebook declarou gostar de caminhar à
beira-mar, apesar de nunca ter ido à praia. “Que conhecer o mar que nada!”,
dizia o pai militar. “Praia é coisa de gente à toa. Ou você acha que uma pessoa
séria fica lá parada olhando a água? Ou pulando
onda feito um macaco? Filho meu não é nem uma coisa nem outra”.
Aos nove anos, quando ainda vivia
com os pais em Brotas, observou a prima
chegar com uma vitrola portátil e vermelha, um sonho de consumo que o pai nunca
realizou. “Filho meu não é maricas”, vaticinou. A prima colocou a agulha sobre
o disco e a música que Marco Aurélio ouviu fez seu corpo queimar. Fechou os
olhos e suas pernas se soltaram do tronco. O menino rodava como um pião, avistava as paredes brancas do quarto todas
coloridas e ria por todos os poros. Pela primeira vez, deixou de existir. Até divisar o pai entrar no quarto e marcar sua
bochecha esquerda com a palma da mão acostumada a pegar em armas.
A partir desse dia, a mãe passou
a roubar na conta da feira, da farmácia e da mercearia, libertando o filho anos
mais tarde para morar na capital. Com a ajuda de uma tia, Marco alugou uma
quitinete num dos edifícios símbolo da cidade. Nos elevadores distinguia aposentados, travestis, garotas de
programa, intelectuais, executivos, donas de casa, professores, bancários, escritores,
comerciários e cantoras de ópera. Aos poucos, Marco Aurélio foi sumindo na
diversidade: perdeu os pêlos do corpo com cera quente, afinou a sobrancelha com
uma pinça de estimação e ganhou músculos mais definidos, principalmente no
abdômen e nas nádegas. Em seu lugar foi aparecendo Waleska, bailarina e cantora de
sucesso na Drinks, boate próxima ao prédio em que morava.
Eram três horas da tarde quando
Waleska, ainda na cama, ouviu o telefone tocar. Sua mãe soluçava. O pai estava
morrendo num quarto de hospital. “Aneurisma, meu filho”... “Foi o único homem
que conheci, entenda minhas lágrimas”.
Waleska mirou
por alguns minutos a Consolação, sua confidente na cidade grande. Em seguida vestiu a peruca loira que usava para
dublar a Madonna e seu vestido preferido, de lamê vermelho. Olhou no espelho
para verificar se o bumbum estava bem
marcado. Estava. Nos pés, uma sandália dourada, salto quinze, que combinava com
os brincos de argola. Nos olhos: muito brilho. Os lábios: escarlate.
Antes de sair, respirou fundo,
pegou a câmera digital e se benzeu como de costume. Seguiu num táxi até Santos.
Parou no trecho onde o mar lhe pareceu mais agitado e ficou imóvel pisando na
areia com suas sandálias douradas. Com as mãos trêmulas, conseguiu ficar
descalça. Afundou os pés naqueles grãos fininhos e quentinhos até que as
lágrimas se soltaram dos olhos. Ao contrário do que planejara, saiu correndo em
direção à água, sem se permitir conhecê-la aos poucos. Pulava as ondas, caía e
levantava, engolia água e sal, perdia o fôlego, batia a cabeça na areia, depois
as costas, ficava em pé de novo e ria. Pulava e ria. Pulava e ria alto. Pulava
e gritava. Feito um macaco. “Feito uma macaca, pai. E no cio. Escutou? Macaca no cio!”
Enquanto isso, o amigo taxista
fotografava. Exaurida, Waleska voltou para casa. Imprimiu as fotos num tamanho
em que ela pudesse ser nitidamente vista como uma macaca numa tarde à toa. Escolheu
a melhor e antes de colocá-la num envelope endereçado ao pai, escreveu no
verso:
Vá em paz.
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