sábado, 25 de agosto de 2012

Uma última lembrança


Em seu perfil no Facebook declarou gostar de caminhar à beira-mar, apesar de nunca ter ido à praia. “Que conhecer o mar que nada!”, dizia o pai militar. “Praia é coisa de gente à toa. Ou você acha que uma pessoa séria fica lá parada olhando a água? Ou pulando onda feito um macaco? Filho meu não é nem uma coisa nem outra”.

Aos nove anos, quando ainda vivia com os pais em Brotas, observou a prima chegar com uma vitrola portátil e vermelha, um sonho de consumo que o pai nunca realizou. “Filho meu não é maricas”, vaticinou. A prima colocou a agulha sobre o disco e a música que Marco Aurélio ouviu fez seu corpo queimar. Fechou os olhos e suas pernas se soltaram do tronco. O menino rodava como um pião, avistava as paredes brancas do quarto todas coloridas e ria por todos os poros. Pela primeira vez, deixou de existir. Até divisar o pai entrar no quarto e marcar sua bochecha esquerda com a palma da mão acostumada a pegar em armas.

A partir desse dia, a mãe passou a roubar na conta da feira, da farmácia e da mercearia, libertando o filho anos mais tarde para morar na capital. Com a ajuda de uma tia, Marco alugou uma quitinete num dos edifícios símbolo da cidade. Nos elevadores distinguia aposentados, travestis, garotas de programa, intelectuais, executivos, donas de casa, professores, bancários, escritores, comerciários e cantoras de ópera. Aos poucos, Marco Aurélio foi sumindo na diversidade: perdeu os pêlos do corpo com cera quente, afinou a sobrancelha com uma pinça de estimação e ganhou músculos mais definidos, principalmente no abdômen e nas nádegas. Em seu lugar foi aparecendo Waleska, bailarina e cantora de sucesso na Drinks, boate próxima ao prédio em que morava.

Eram três horas da tarde quando Waleska, ainda na cama, ouviu o telefone tocar. Sua mãe soluçava. O pai estava morrendo num quarto de hospital. “Aneurisma, meu filho”... “Foi o único homem que conheci, entenda minhas lágrimas”.

Waleska mirou por alguns minutos a Consolação, sua confidente na cidade grande.  Em seguida vestiu a peruca loira que usava para dublar a Madonna e seu vestido preferido, de lamê vermelho. Olhou no espelho para verificar se o bumbum estava bem marcado. Estava. Nos pés, uma sandália dourada, salto quinze, que combinava com os brincos de argola. Nos olhos: muito brilho. Os lábios: escarlate.   

Antes de sair, respirou fundo, pegou a câmera digital e se benzeu como de costume. Seguiu num táxi até Santos. Parou no trecho onde o mar lhe pareceu mais agitado e ficou imóvel pisando na areia com suas sandálias douradas. Com as mãos trêmulas, conseguiu ficar descalça. Afundou os pés naqueles grãos fininhos e quentinhos até que as lágrimas se soltaram dos olhos. Ao contrário do que planejara, saiu correndo em direção à água, sem se permitir conhecê-la aos poucos. Pulava as ondas, caía e levantava, engolia água e sal, perdia o fôlego, batia a cabeça na areia, depois as costas, ficava em pé de novo e ria. Pulava e ria. Pulava e ria alto. Pulava e gritava. Feito um macaco. “Feito uma macaca, pai. E no cio. Escutou? Macaca no cio!”

Enquanto isso, o amigo taxista fotografava. Exaurida, Waleska voltou para casa. Imprimiu as fotos num tamanho em que ela pudesse ser nitidamente vista como uma macaca numa tarde à toa. Escolheu a melhor e antes de colocá-la num envelope endereçado ao pai, escreveu no verso:

Vá em paz.

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