quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Herança


Se é minha imaginação, ela é tão concreta e colorida que se transformou em realidade, mas um dia eu perguntei, “vó, você nunca chora?”, e ela, sentada ao meu lado no sofá, sem tirar os olhos da televisão, respondeu, “quem passa por guerra não chora mais”.

Então é isso que a guerra faz? Seca as pessoas? Esvazia o corpo de água?

Eu olhava para o seu perfil, narigudo e queixudo, como todos os croatas se construíram na minha mente, e pensava como ela podia ter deixado sua pátria com os pais e os irmãos, depois de comer capim para não passar fome (ah, a guerra faz isso também), depois de ver seu pai chorando por ter matado homens como ele, para poder se manter vivo e voltar para a família (ah, a guerra faz isso também), rumo a um país distante e estranho, na esperança vã de ter um pedaço de terra que nunca veio (ah).

Como ela podia ter chegado aqui e passado noites dormindo em estábulos, história que ela contava rindo? Como ela tinha fugido com os pais de um dono de fazenda que os mantinha como escravos? Como tudo isso tinha acontecido numa só vida? Como tudo isso podia ter acontecido na vida daquela pessoa que estava ao meu lado? Como eu tinha derivado daquela pessoa que deixou uma terra e tantos parentes para trás, mas que toda noite rezava na língua materna?

Sim, eles vieram no navio Sofia, em abril de 1925. Sim, foram para o interior de São Paulo de trem. Sim, dormiram no estábulo da fazenda Canaã. São fatos. E ela estava ali, sentada ao meu lado, no sofá, olhando para a televisão, me explicando que quem passa por guerra não chora mais.

Como?

terça-feira, 27 de novembro de 2012

A lagartixa


Assim, medo e cansaço. Um pouco de tristeza talvez. E preguiça. E vontade de deitar e ler e amar e receber os filhos que já tem e os que ainda gostaria de ter. E o medo de perdê-los: não, não, não...medo, não...o pavor. Sim, o pavor, o estremecimento só de pensar em perdê-los. E se o mundo vai mesmo acabar que ao menos eles não sofram. A vontade de dormir e sonhar e viajar e deixar de pensar na existência e sua falta de sentido. Total falta de sentido. Não, não...os filhos fazem sentido. E a literatura. E a arte. O homem sem a arte poderia ser uma mesa. Pensa se a lagartixa é feliz por não se saber lagartixa. Pensa que valter hugo foi premiado e sorri e agradece. A ele. E se pudesse, por algumas horas, deitar com o filho de mil homens no colo. E se pudesse fazer João caminhar pelas ruas de Zagreb, tirá-lo daquele quarto de hotel sufocante. Mas você ainda vai esperar, João. E se pudesse ela estar em Zagreb. E na Vela Luka. E se pudesse esquecer a conta negativa. E se pudesse só mais uma vez visitar Paris. Assim, medo e cansaço. Um pouco de tristeza talvez. E uma xícara de café.  

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Chicolate Chicolino


Hoje você pensa que sou o máximo. Quando vê a Mulher Elástica se transformando em paraquedas para proteger os filhos diz “olha, parece você” (ai, se eu pudesse...). Abre os braços quando chego em casa, beija meu rosto e minhas mãos enquanto diz coisas como “minha lindinha”, “meu amorzinho” e “minha pupuzinha”. Procura proteção no meu colo, pede que eu fique com você na cama e chega a ficar febril quando dorme longe de mim. E um dia, tão próximo para mim e tão longe para você, eu serei uma mulher velha e burra incapaz de te entender. Falarei as maiores besteiras do mundo, me vestirei e dirigirei mal, não servirei para te acolher. Um beijo e um abraço teus serão forçosamente arrancados, e fora da visão dos amigos. Você pensará que sou o maior problema da tua vida, aquela que existe para impedir o exercício da tua liberdade e da tua felicidade. E eu...e eu continuarei como hoje, tão pequenininha na minha capacidade, vivendo por você e pelo teu irmão.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Enquanto isso, na sala de espera...


Local: um dos guichês do Pronto Atendimento do Hospital Sírio-Libanês.

Personagens: recepcionista (R), paciente (P), acompanhante (A).

 

R: Senhora, o seu nome, por favor?

P: Ligia Cristina Souza.

R: Seu CPF?

P: O meu CPF? Nossa, eu não sei o número do meu CPF, e se você visse o estado dele, está se desfazendo, não dá pra ler nada. Eu sinto um calor, você sente esse calor? Olha só, olha a minha mão, estou derretendo. Deve ser falta de marido. O que você acha?

A: Mãe, ela não tem nada a ver com isso. Você tem o seu CPF ou não?

P: Não, filho, ele está derretendo como eu.

R: Senhora, pode então me passar sua data de nascimento?

P: Data de nascimento? Nasci em 31 de outubro.

R: De qual ano, senhora?

P: Ano? Olha, fiz quarenta e nove anos. Faz as contas. Em que ano nasci? Você sabe?

A: Moça, por favor, desculpe a minha mãe. Ela não parece normal, mas é. Só é esquecida. É sério, ela esquece coisas como o ano em que nasceu. Não dá pra acreditar, né? Mas ela esquece.

R: Senhora, se a senhora fez quarenta e nove anos, nasceu em 63.

P: 63? É mesmo? Olha só.

R: Bom, achei seu cadastro. Agora a senhora espera aqui na frente. Vão chamá-la pela senha 3012.

P: Tá bom. Obrigada.

 

Meia hora depois:

- Senha 3012.

...

- Senha 3012.

...

- Senhora Ligia Cristina.

...

- Senhora Ligia Cristina.

...

 

Quarenta e cinco minutos depois:

- Senhora Ligia Cristina.

...

- Senhora Ligia Cristina.

...

 

É, ela deve ter esquecido de esperar. Pelo menos não é nada grave.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

As amigas


Porque agora elas não se juntavam mais para tomar sol e comer brigadeiro de colher. Os biquínis aumentaram de tamanho, o brigadeiro estava proibido e se houvesse tempo para o sol na piscina, havia o barulho das crianças que gritavam e ameaçavam, sem consciência, se afogar. Os olhos se voltavam para tantos filhos que não encontravam mais os olhos das amigas. Mas havia tanto a falar. E tantas contas para pagar. E tantos amores encontrados e perdidos, precisados de amigas. Mais café do que vinho, bolo de fubá e olhares voltados para um passado que cresceu. Rápido demais.

sábado, 17 de novembro de 2012

Café da tarde


Porque algumas tristezas a gente leva para sempre, até o último suspiro, até o caixão, como queiram. O que ela descobriu, enquanto andava pelas ruas numa tarde ensolarada, era isso: até seu último segundo, carregaria aquela tristezinha no peito, cravada no meio do esterno. Pensou em parar para lhe servir um pouco de chá, a tristeza às vezes ficava fria. Depois pensou que não deveria alimentá-la. Mas depois pensou mais um pouco e lembrou-se de aquela tristeza não a abandonaria. Então parou, e pediu dois cafés. Um sem açúcar.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Caminhada


Criança é um ser demoníaco...Adoro esse loucos da Paulista...Tô dentro do Xing Ling, amor...Vai pela Rebouças...Your ego is not your amigo...Sabedoria vem de sabor...Ele é muito egoísta...Compra seis, amor...Southampton...Bibi...Acho que vai chover...Moço, moço...Posso te fazer uma pergunta?...Eu sei, mas não tenho...

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

O tatuador

Suas mãos suavam, por mais que ela tentasse disfarçar. Até que o tatuador entrou na sala de espera e piorou a situação. Além dos olhos verdes e das tatuagens sob os pelos dourados, ele tinha os músculos desenhados. Mas não era só isso. Ele tinha um quê, sabe? Uma aura de quem sussurraria palavras inimagináveis para ela, ao mesmo tempo em que lhe puxaria os cabelos sem machucar. Era um homem que mesmo em silêncio pedia tudo o que ela estava disposta a dar.
Ela explicou que queria tatuar o nome do marido no final das costas, um pouco acima do bumbum, entre as duas covinhas. Isso, exatamente aí, onde a carne fica côncava. Isso, aí, aí mesmo, antes que o bumbum comece a arrebitar. Só que o tatuador tinha umas mãos. Ah, as mãos do tatuador.
Ela chegou em casa com o ideograma da palavra amor tatuado no tornozelo direito:
Seu nome era muito grande, amor, foi a explicação que ela deu para o marido.
João não entendeu muito bem, mas preferiu não questionar. Ela estava tão feliz, tadinha.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

I can´t get to sleep

Porque ele morreu jovem. Porque ele morreu jovem e apaixonado por ela. Porque ele morreu jovem e apaixonado por ela e gostava do Men at Work. Porque ele morreu jovem e apaixonado por ela e gostava do Men at Work e cantava Overkill para ela. Porque ele morreu jovem e apaixonado por ela e gostava do Men at Work e cantava Overkill para ela, ela acredita que recebe um recado dele quando ouve essa música nas rádios. Mesmo que ele tenha cantado para ela há mais de vinte anos.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Não importa o estilo de música que você ouve no metrô...


Não importa se a Louis Vuitton é original ou falsificada...desde que você tenha uma.

Não importa se as prestações estão pagas ou não...desde que você ostente.

Não importa se você tem saúde...desde que a barriga esteja seca.

Não importa se a promoção é merecida ou não...desde que seja sua.

Não importa se você leu ou não Joyce...desde que finja ter lido.

Não importa para qual time você torce...desde que ele esteja ganhando.

Não importa que você esteja brocha...desde que tenha dinheiro e viagra (nessa ordem).

Não importa que você deteste música clássica...desde que vá à Sala São Paulo.

Não importa se já passou dos sessenta...desde que aja como se estivesse nos trinta (ou vinte).

Não importa o que já viveu...desde que aplique Botox.

Não importa se você fala inglês...desde que pronuncie shopping.

Não importa porra nenhuma...desde que você tenha um Iphone 5 (ou 6?).

domingo, 4 de novembro de 2012

Tarde de domingo


O silêncio cortado por um ronco. De gente, cachorro ou gato. Os olhos que lutam para terminar uma frase do livro aberto sobre o estômago cheio. O pio ressacado que entra com o vento pela janela. A lembrança dos bolinhos de chuva com café de uma avó. Os velhos que não existem mais para contar suas histórias sobre o ontem. As perguntas que ficaram sem passado. As perguntas que surgem para o futuro. Mais um domingo que vai. E não volta.