quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Responda a seguinte pergunta:


Tinha uma dúvida quando andava e via uma pessoa se aproximando no sentido contrário, de frente pra ela, como aqueles exercícios inúteis de Física que pediam pro aluno calcular em quanto tempo os carrinhos A e B se encontrariam - o A saído da Conchinchina e o B de Onde Judas Perdeu as Botas. Ela detestava essas aulas e tinha vontade de responder que se encontrariam quando passassem um pelo outro, sem importar os minutos e as horas, não gostava de prever tanto assim os acontecimentos, mas nunca sabia como se comportar: quem devia desviar? Ela ou a outra pessoa? Por que há pessoas que não desviam? Intrigada, ela às vezes não desviava com antecedência e sentia que ela e a outra trombariam, mas mantinha-se firme, queria ver até onde a outra ia. E a outra continuava na marcha, não mudava o passo para o lado, mantinha-se resoluta na sua reta, por quê? Existe uma categoria de pessoas de quem se deve desviar, mas que não podem desviar? São como reis? São estrelas do axé ou de Hollywood? São maníacos que não saem da linha reta? São cegas que enxergam? E ela tentava, ia quase até bater nariz com nariz, mas perdia sempre na linha de chegada.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Saudade


Ela nem sabia que era o dia da saudade, nem que a saudade tinha um dia, já que ela chega sem avisar, em qualquer dia de qualquer mês de qualquer ano, sem escolher a hora, e às vezes vai embora, às vezes não - fica para sempre, guardada numa das fibras do coração, ou dentro do estômago, ou atravessada na garganta. Pode até se encravar no dedão do pé, ou da mão. Acontece também de se enroscar nas pálpebras, provocando lágrimas. Para ela não fazia diferença. Todos os dias acordava com uma saudade: de ontem, dela mesma, do filho que cresceu, de uma paixão que acabou, do marido que viajou, do gosto do fusilli com queijo brie e abobrinhas italianas, de um sorvete no meio da tarde, dos personagens da Trilogia do Cairo. Ah, tantas.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Atenção


Onze da manhã e o metrô lotado. Ela se perguntava de onde vinham e para onde iam todas aquelas pessoas, inclusive ela. Não deveriam estar no trabalho? Em casa? Numa consulta médica? Cuidando dos filhos que não estão na escola? Esses pensamentos a impediram de ler o jornal e quando o alerta avisou que sua estação estava chegando, se preparou para avançar e tropeçou. Não num pé dentre tantos outros, mas no pé dele, que ela não havia notado até aquele momento, até subir os olhos para pedir desculpas. Ela com o jornal na mão, ele com um livro digital. Ele, que segurou o braço dela – firme, para que ela não caísse, e que não o soltou mesmo quando viu que ela estava fora de perigo. O sinal que indicava o fechamento da porta soou e ela fugiu, num salto, tropeçando novamente.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Pescaria


Chovia. E muito. Seu corpo franzino e enrugado era protegido por uma capa feita com sacos de lixo. Sorrindo, ele procurava por fósforos. Ao seu lado, o Rubens, ensopado da chuva de verão. Ele conseguiu uma caixa de fósforos nova, cheinha. Balançou-a perto das orelhas. Esticou ainda mais o sorriso e disse que partiria naquela noite. Tinha uma rede de cento e vinte metros, os camarões estavam grandes e a lua cheia. Agradeceu com a caixinha de fósforos balançando na mão e partiu para a praia, acompanhado do cachorro.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Torpedos


Não foi sem aflição que ela se olhou no espelho. Alguns fios de cabelos brancos em meio a tantos louros, olhos que começavam a ansiar pelo descanso – quando, afinal, pode-se começar a viver o sonho?, o batom vermelho aposentado desde o dia em que ele falou que ela parecia uma puta – e toda mulher não quer ser puta?, o lápis de olho que derretia no meio da tarde, o rímel que borrava a pálpebra, a base que não disfarçava mais as imperfeições – porque estas se tornaram maioria em seu rosto, o espelho que todos os dias lhe dizia que ela nunca mais seria tão jovem quanto hoje. E no celular um torpedo do chefe lembrando que ela estava atrasada.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Consolação


Acordou com as badaladas que marcavam a metade de um dia como se anunciassem uma festa. A cabeça doía, não conseguia fixar os olhos no relógio que marcava as horas que ele já sabia quais eram: talvez a grande batalha humana seja livrar-se de um hábito. A garrafa vazia no chão de carpete verde e puído, pontas de cigarro que formavam um pequeno Everest sobre o cinzeiro, a sola do pé encardida de tanto carpete, o lençol florido atirado para fora da cama, a presença da ausência dele, a foto dos dois sorrindo no porta-retratos. A tentação de rasgá-la impedida pelo sentimento de que assim o mataria. Foi até a janela, no caminho procurou por um cigarro, encontrou uma maçã, um pouco murcha, mas uma maçã. A Igreja da Consolação já em silêncio, mais uma vez vislumbrou seu corpo caindo do oitavo andar, nem dia de confissão era. Teria que aguardar as nove horas da manhã seguinte. Vestiu uma camiseta jogada sobre o sofá estampada com a advertência your ego is not your amigo e saiu para comprar cigarros e uma caixinha de água de coco.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Dúvida


Era uma mulher que não conseguia segurar as tachinhas dos brincos, de forma que na hora de colocá-los ou tirá-los sempre perdia pelo menos uma delas. E elas se escondiam nos vãos dos tacos, adentravam pelos fios dos tapetes, rolavam pelo sifão, caíam pelos ralos, se refugiavam atrás dos móveis, e os brincos não se constituíam mais de pares. Foram ficando isolados, jogados pelos cantos, tristes. Algumas tentativas de misturar tachinhas foram frustradas, além da vergonha que ela sentia se alguém conseguisse ver suas orelhas por trás: uma tachinha delicada de prata ao lado de uma tosca de plástico. E assim ela desistiu dos brincos, já que os de pressão lhe provocam dor de cabeça. Mas ela ainda não sabe se suas mãos é que são escorregadias ou se as tachinhas é que são indomáveis.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Dodói


Ele está dodói...Sim, muito dodói...Pode ir, ele vai gostar...Sente-se ali...Pode ser aos pés dele, no chão...Cuidado para não derrubar o cobertor...É, está calor, mas ele sente frio...Fale com ele, ele vai gostar...Cuidado para não empurrar a cadeira...Não, ele não vai responder, mesmo que te escute...Mesmo que não te ouça, ele vai gostar, pode falar...Não sei, conte sobre você, fale do que você gosta, do que te faz feliz, ou conte uma história...Ah, uma história bonita, que fale de crianças e cores e cheiros e bichos e paisagens e flores e...Qualquer uma, qualquer história que você goste...Pode acreditar, ele vai gostar, mesmo que ele não sorria...Mesmo que ele não chore...Eu não sei te explicar, mas ele vai gostar...Porque ele saberá, não sei como, mas ele saberá que é você.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Próxima estação: Consolação


Nem o homem jovem e gordo com imensos fones de ouvido, nem a enfermeira saída do plantão de vinte e quatro horas, nem a mulher idosa e magrela carregando uma sacolinha plástica de supermercado, nem a mulher jovem com um filho no colo e outro na mão, nem a estudante trocando mensagens com o namorado pelo celular, nem o homem grisalho com uma perna mais curta que a outra, nem o auxiliar de pintor vestindo a camisa do seu time, nem a jovem gostosa com cabelos negros e sedosos, nem o rapaz que não tirava os olhos da bunda da jovem gostosa, nem a mulher obesa carregando uma pasta executiva e uma sombrinha, nem o grupo de adolescentes a caminho do shopping. Ninguém reparou na mulher que chorava com a cabeça encostada na janela do trem.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Os dois lados de uma mesma faixa


E ele, recém-chegado, parado no Viaduto do Chá, tentando chegar à Praça do Patriarca, enquanto um homem com seios volumosos atravessou a rua fora da faixa soltando gritinhos saltitantes em meio aos carros. Ele agarrou a mochila que trazia colada ao peito. Olhou para os lados. Depois para cima. O luminoso esverdeou, indicando que a faixa de pedestres estava livre, mas ele não foi. É verdade que o prefeito vai enfiar todo mundo num caminhão e mandar de volta pro Nordeste antes da Copa? Policiais cercaram um rapaz que babava no meio da rua, em frente à Prefeitura. Pode levar, pode levar. No alto do prédio, um helicóptero tentava pousar. O homem ao lado começou a cantar Raul, com coreografia. Ele quase engoliu a mochila. E atravessou a rua correndo, grudado na única concretude que possuía, mesmo com o sinal da faixa de pedestres mostrando que ele estava proibido de avançar.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Espanha


Sempre sonhei em chegar à Espanha numa noite chuvosa. As poças na rua refletiriam minha capa amarela, prédios antigos pouco iluminados e meu olhar de quem encontra um sonho. Eu desceria de um ônibus e uma mão masculina e desconhecida se estenderia para mim. A chuva iria com a noite e o sol me acordaria num céu azul com nuvens brancas desenhadas por uma criança. E eu iria encontrar o mar e as ondas seriam muitas e espumosas, porque Espanha para mim sempre rimou com espuma e espelhos de poças d’água. E com um amor esbaforido.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

É tarde e a luz está verde


Porque os semáforos quebraram, a luz interna de todos os motoristas esverdeou e eles foram, sem atenção, uns por cima dos outros. Ninguém agora nos impede de ir, eles pensavam, com ponto de exclamação no final. Estamos livres das ordens dos semáforos, eles gritavam em silêncio. Todos apressados, a mulher com o filho no banco de trás, o taxista, o médico, o executivo, a bancária, o professor nem tanto porque estava de férias, mas é o costume. E não estar apressado, numa cidade como São Paulo, coloca o cidadão numa classe inferior. Quase a escória. Tantos coelhinhos brancos com seus relógios no bolso. E foram todos juntos e ao mesmo tempo, com suas luzes verdes acesas, num movimento concêntrico, batendo seus carros uns contra os outros. E numa gritaria em que ninguém se entendia, eles foram sumindo, praguejando, xingando, berrando, a criança chorando, cada qual com seu prejuízo, porque tinham pressa.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Facciolla


Facciolla...Facciolla...

Um chamado de hálito quente numa noite de estrelas invisíveis, numa rua escura e desconhecida. Chovia e eu sentia frio.

Facciolla...

Entrei na primeira casa que vi, à esquerda. Uma escada estreita debaixo de um luminoso vermelho, tão clichê. Tocava Por uma cabeza e eu nada enxergava. Ele está ali, outra voz, fria, me avisou. Quem? Facciolla. Chi è Facciolla? Un uomo con um bel viso. E acendeu um cigarro.

Eu não via rostos na escuridão, até que Facciolla tomou minha cintura. Mãos em febre, soprava uma quentura no meu pescoço e mesmo sem tocar seu corpo eu me emaranhei àquele homem. O vestido molhado colado ao meu corpo. Nossos corpos em compasso, eu que não sei dançar. Tentei não chorar, assim como quis dizer. Qualquer coisa, mas minha garganta ardia. O vestido secou. Um rodopio, o medo de que ele não me encontrasse novamente, mas o sopro continuava ali. O cio de dois corpos tristes. O rosto que eu adivinhava acastanhado, o gosto de tâmara, a maciez do algodão, o sopro mírreo, eu bêbada de sonho. O último acorde e não fui mais tocada.

Facciolla...

 

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Bolo de fubá e Octavio Paz


Há quase quatro anos, elas se sentam nos mesmos lugares quando se encontram na sala de estar que as recebe. Aconchegadas por sofás, poltronas, almofadas e a luz indireta do abajur. Famintas por bolo de fubá e poesia. Sedentas por café, vinho e prosa. Filhos crescidos e crescendo. Casamentos estáveis e em crise. Profissões e idades diversas. Diferentes paixões: de António Lobo Antunes a Jorge Luis Borges. Suspira-se por Octavio Paz, chora-se por medo da vida real que está sempre nos bons livros. Não se aceita cinquenta tons de cinza nem de fúcsia: para isso há Clarice e há Hilda! Sonha-se com Portugal e Bahia. E uma casinha na neve com biblioteca e chá quente. Livros são levados ao peito pelo aperto das mãos. Uma poesia é recitada antes ou depois de uma confissão. Conselhos e títulos de livros são trocados. Todas com coragem para pular no abismo. E sem paraquedas.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Eu tenho medo de quê?


A cena final de Melancholia, de Lars Von Trier, eu já tinha visto antes do filme chegar aos cinemas. Provavelmente antes do filme ser editado. Foi quando meu primeiro filho nasceu. Eu anestesiada debaixo do foco de luz do centro cirúrgico, o choro daquela criança misturado ao meu, a sensação de que meu corpo rebentaria de tanta emoção indizível, e a voz de um pediatra dizendo que aquele bebê iria para a UTI e passaria por uma cirurgia inesperada no dia seguinte. Foi quando eu vi Melancholia se aproximar, saído do foco de luz. Sem tempo para eu me esconder numa cabana mágica. Sem tempo para mãos dadas. Uma enfermeira manipulava pernas ligadas ao meu tronco, mas que não me pertenciam. De quem eram aquelas pernas moles? O silêncio. As pessoas e os objetos congelados. A saída do anestesista para um café e eu esquecida. Eu e Melancholia no silêncio branco de um centro cirúrgico. Meu grito anestesiado na garganta. Melancholia se aproximando povoado de sapos, o bicho que mais apavora minha existência. Então parir é isso: ter o coração rebentado de amor, ser perseguida por um planeta desgovernado, ter de enfrentar os meus maiores medos e soltar...porque tudo isso pertence só a mim.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Sublimação


E quando tudo derrete, a pele, o cansaço, o asfalto, o amor, e o mundo se arrasta sob seus pés doloridos de tanto tentarem chegar a um ponto invisível, e a chuva e as lágrimas banham suas bochechas pálidas, e ela não sabe se olha para cima ou para baixo (por que não para a frente?), e não sabe se sua angústia mora no peito ou no estômago, é tudo tão misturado e molhado e gigante dentro de um corpo pequeno, com apenas duas mãos para se proteger da maldade na esquina e uma alma desassossegada para acolher tanto medo.  E olha para cima e para baixo, tenta abrir um guarda-chuva, mas seus dedos derretem e se enovelam. Um bafo mostra seus dentes e ela não foge. Tem só dois pés (é tudo tão pequeno). E estão cansados, quase parados.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Tropeços


Caminhava pela calçada irregular do centro da cidade com a cabeça repleta de palavras e um pacote de amendoins nas mãos. Enquanto levava um deles à boca, tropeçou, e a tropicada interrompeu uma frase. Teve que olhar para o sapato que cobria seu pé cansado. Só seus sonhos eram jovens. Já tinha vendido biscoitos e Yakult com aqueles carrinhos de mão, mas não conseguia vender suas frases, que eram lindas. Esqueceu do pé, nem pensou no carrinho de Yakult – quem pensou fui eu, ali perto, encantada com a beleza da poeta; comeu o amendoim e continuou caminhando, construindo suas frases. Ou talvez pensando numa conta que precisava pagar.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Onde a verdade não consegue se esconder


Como faz todas as manhãs, o homem mulato e de forte constituição está sentado num banco da Praça Roosevelt, vestindo chapéu Panamá, fumando charuto e gritando num celular que deve conectá-lo a ninguém que “tudo vai virar bosta”. O casal que aparenta meia-idade e consegue colocar todos seus pertences em dois carrinhos de feira toma café da manhã: pão com manteiga e suco de laranja em pó, numa garrafinha de água mineral. A jovem negra com rosto que parece ter sido desenhado por exímio artista tenta fixar os olhos em algo ou alguém, mas é impedida pelas drogas. O estrangeiro sai da locadora de automóveis com aquele rosto encantado que têm os turistas quando chegam ao centro de São Paulo. O centro tem cores e sons que atordoam, o centro fede. Em muitos lugares da cidade é possível esconder essas verdades, de que todos viraremos bosta, todos queremos alguém para dividir o café da manhã e todos temos os olhos perdidos e amedrontados. O centro é mais do que feiura. É o lugar onde a verdade é jogada na cara como um tapa com a mão aberta. Por isso é tão difícil encará-lo. E por isso é tão necessário.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Ano novo


Acordou com a quentura do sol espalhada nos lençóis, misturada às suas pernas macias e bronzeadas. Não tinha como saber as horas sem o celular por perto. Pensou que por hoje o céu podia ficar vermelho e o mar amarelo. O gramado azul. Na cama, só ela e o perfume dele. Pensou que por hoje meninos pudessem se transformar em homens. Gostaria de uma rosa vermelha e um bilhete, mas não confessaria. Vestiu o biquíni disposta a mais uma vez atordoar os meninos com sua bunda arrebitada e dura. Prendeu e soltou os cabelos três vezes, até vestir um chapéu. Com os cabelos soltos. Pensou em voltar para a cama, comer brigadeiro de colher, ver um filme para chorar e jogar o celular na parede, mas era primeiro de janeiro.