Cala a boca, menino. Ele não cala. No colo da mãe, tem medo. Cinco anos. Cala a boca, menino. Ele tem medo de quem quer o dinheiro dos seus pais. Quatro
mil e quinhentos reais. Dinheiro recebido por quase escravos. A mãe veio pra cá
(cá?) buscar o corpo do cunhado. Ficou. O menino nasceu. O rostinho no documento
de identidade brasileira. Cala a boca, menino. O menino não cala. Pá! Um tiro
na cabeça, pro menino aprender a calar a boca. A mãe veio pra cá (pá?) parir e
enterrar um filho. O único. E todo filho não é único? A mãe foge da miséria e
encontra a quase escravidão. Tem gente que apesar de nascer e viver respirando,
nasce e vive sem vida. Gente insistente. Sem pátria, sem língua, sem cunhado,
sem pai, sem mãe, sem emprego, sem casa, sem comida, sem dinheiro, sem
documento, sem merecimento, sem dignidade, sem filho, sem vida. A declaração
dos direitos humanos! Valter Hugo Mãe me socorra, mas a Maria da Graça também
definha de tristeza com o rabo pra cima. Pelo menos não atiraram no Seu
Ferreira, no rabo dela, no filho que ela não teve. A vida já é trágica o
suficiente sem a pólvora. Valter Hugo Mãe me socorra, mas é o apocalipse dos
trabalhadores. Perco as linhas na turbidez dos meus olhos. Peço socorro num quarto
cego, surdo e mudo. Porra. Por que não calou a boca, Brayan?
domingo, 30 de junho de 2013
sexta-feira, 21 de junho de 2013
Olhos verdes
Ela pensava nele
toda vez que limpava os dentes com fio dental. Três vezes por dia, ao menos.
Ele que usava um pedaço exageradamente grande para os vãos dos trinta e dois
dentes. Ele que nunca perdeu o juízo - com ela. As pontas dos fios enroscadas
nos indicadores dele. Linhas retas para pulsos fortes. Os dentes limpos
e o sorriso satisfeito dele para o espelho. Ela ainda na cama, os olhos
sonolentos nele. Mesmo quando ele não está.
Lágrimas
Uma família
dorme na rua. O bebê no meinho do pai e da mãe. Uma família dorme na rua. O
bebê no meinho do pai e da mãe. Uma família dorme na rua. O bebê no meinho do
pai e da mãe. Uma família dorme na rua. O bebê no meinho do pai e da mãe. Uma
família dorme na rua. O bebê no meinho do pai e da mãe. Uma família dorme na
rua. O bebê no meinho do pai e da mãe. Uma família dorme na rua. O bebê no
meinho do pai e da mãe. Uma família dorme na rua. O bebê no meinho do pai e da
mãe. Uma família dorme na rua. O bebê no meinho do pai e da mãe. Uma família
dorme na rua. O bebê no meinho do pai e da mãe. Uma família dorme na rua. O
bebê no meinho do pai e da mãe. Uma família dorme na rua. O bebê no meinho do
pai e da mãe. Uma família dorme na rua. O bebê no meinho do pai e da mãe. Uma
família dorme na rua. O bebê no meinho do pai e da mãe. Uma família dorme na
rua. O bebê no meinho do pai e da mãe. Uma família dorme na rua. O bebê no
meinho do pai e da mãe. Uma família dorme na rua. O bebê no meinho do pai e da
mãe. Uma família dorme na rua. O bebê no meinho do pai e da mãe. Uma família
dorme na rua. O bebê no meinho do pai e da mãe. Uma família dorme na rua. O
bebê no meinho do pai e da mãe. Uma família dorme na rua. O bebê no meinho do
pai e da mãe.
quarta-feira, 19 de junho de 2013
Carta aberta para os meus filhos, de verdade
Meus filhos,
meus amores, minhas vidas, todos os superlativos de amor que a mamãe encontra para
vocês,
há alguns anos
(quatro, acho) tomei a decisão de andar menos de carro em São Paulo, cidade em
que moramos, por dois motivos: cansaço de ficar parada no trânsito com medo de
assalto e vontade de contribuir para a qualidade de vida, tirando um carro das
ruas e usando o transporte público.
Para isso
mudamos para perto de uma estação de metrô e montei meu escritório de advocacia
perto de outra estação. Minha vida melhorou muito. Três estações na ida. Três
estações na volta. Nem dez minutos dentro do trem. Virei uma defensora do
transporte público, especialmente do metrô. E, além disso, sinto que me
transformei numa cidadã melhor. Muitos anos trancada dentro de um carro me
afastaram da vida na cidade. A pé, nos ônibus e nos trens, redescobri cheiros,
cores, dores, amores, com perdão da rima. A vida, meus filhos, acontece nas
ruas.
É claro que não
é tão lindo assim. A cidade é violenta, mas acredito que quanto mais trancados
ficamos, mais violenta a cidade se torna. Acredito nisso há muito tempo.
Sinto-me segura ao ver gente nas lojas de rua, nos bares, nos restaurantes, nos
cinemas, nos teatros, nas escolas, nos parques. Detesto, abomino, odeio (e por aí
vai...) shopping centers – vocês devem
intuir, por não frequentarem.
Tudo também não
é tão lindo no metrô de São Paulo, e vejam que eu disse que ando só três
estações, às vezes um pouco mais. Em vários dias, às seis da tarde, a saudade
de vocês aumenta muito e resolvo ir para casa. Nesse horário, a fila para
entrar no metrô está na rua. Sim, há gente nas calçadas, nas escadas fixas ou
rolantes, nos espaços até as catracas e depois delas, até chegar à plataforma.
Então volto para o escritório ou paro com meus livros num café, para tentar
novamente mais tarde. Então, em vez de estar com vocês às seis e meia, eu chego
às oito. E fico pensando em quem ainda segue por mais estações, mais trens,
mais ônibus, em pé. Não é nada lindo. Gente que trabalhou o dia todo. Se
tivessem passado o dia recebendo massagem, vá lá.
Então esse mês a
passagem do transporte público passou de R$ 3,00 para R$ 3,20. Quando li a
notícia sobre o aumento, pensei: ué, e vai melhorar o quê para a gente com esse
aumento? Qual será a nossa contrapartida?
E eu não fui a
única descontente.
Em razão desse
aumento, surgiu um movimento organizado que saiu às ruas pedindo a redução da
tarifa. O movimento já começou grande e fechou a avenida mais simbólica da
cidade, a Paulista, perto de onde moramos. A tarifa não baixou, a polícia bateu
em alguns manifestantes, o resto da gente não gostou e o movimento cresceu. Ficou
gigante. No dia 17 de junho de 2013, milhares de pessoas fecharam as ruas de
várias capitais do Brasil. Mamãe estava lá no meio delas, aqui em São Paulo.
Eu fui para
pedir a redução da passagem, sim. Penso que R$ 3,00 já era uma tarifa cara para
o transporte que temos. Para o transporte que eu uso. Mas tinha gente pedindo
de tudo, meus filhos: desde o impeachment
do prefeito, do governador e da presidenta (como ela gosta de ser chamada – eu respeito)
até a redução do preço do lanche da cantina da escola. Um carregava uma faixa
enorme pedindo o fim do trabalho. Pensei em levar para casa e mostrar para o pai
de vocês, para ver se ele me libera do pagamento das contas (é brincadeira, o
papai me liberaria se eu realmente quisesse).
E um dia depois
mais gente nas ruas, dessa vez com quebra-quebra, baderna e violência. Uma
pena. E é aqui, meus filhos, que a coisa fica nebulosa, profunda, equívoca, misturada:
em meio a tanta gente pedindo uma coisa só – a redução da tarifa – surgem outras
para gritar nas ruas suas insatisfações e indignações. Porque nós temos motivo
para isso. Temos muitos motivos para isso, porque somos achincalhados e
roubados todos os dias, vemos criminosos dos mais diversos tipos andando em
carros blindados e rindo das nossas caras. É uma batalha diária viver
honestamente nesse país, e somos uma maioria honesta que ficou cansada. E
quando um começa a gritar, outro se junta e outro e outro e a gente ganha força
e se percebe povo. Tinha de tudo, assim como tem tudo quanto é crítica. Se um
levanta a bandeira do Brasil para dizer que ama o país, outro responde que a
bandeira é símbolo do fascismo. Se um vai de tênis Nike na manifestação, outro
argumenta que quem é “coxinha” não devia estar lá. E por aí vai, rótulos em
cima de rótulos.
E surgem os
especialistas nos canais de TV e jornais para explicar o que está acontecendo,
me deixando com a sensação de que especialistas cavam buracos tão profundos de
especialidade que não conseguem mais enxergar o que se passa lá em cima. É tudo
muito grande, meus filhos, muito amplo. Não há uma pessoa capaz de enxergar tudo,
ainda que muitos tentarão convencê-los do contrário.
É inevitável que
eu, como mãe, deseje coisas para vocês. Não sei se devo escrever o que desejo,
receosa de jogar em cima de vocês expectativas que vocês se sintam obrigados a
cumprir. Não gostaria que vocês fizessem isso, considero muita violência tentar
atender a expectativa do outro, ainda mais a de uma mãe, mas vamos lá: se
decido exprimir um desejo, é o de que vocês abram suas mentes, seus corações,
suas almas, seus ouvidos, seus olhos, seus poros e o que mais for possível para
que não cresçam dentro do buraco.
Somos uma
democracia jovem, com uma história de exploração, é tudo muito novo, estamos
aprendendo, e as pessoas estão saindo nas ruas para dizer que não estão
contentes. Um gritou, outro acompanhou. Há sempre e em todo lugar e em qualquer
instituição quem queira só destruir e badernar. Mas não devem ser eles o nosso foco para
seguir em frente. Seguimos em frente apesar deles. Olhem para a frente, mas
também para os lados, para cima, para baixo e para trás, sim. Aprendam com o
que já passou. Nós, seres humanos, somos complexos, mas não totalmente
imprevisíveis.
Gostaria de
dizer para vocês não sentirem medo e lutarem pelo que acreditam, mas nessa hora
sempre penso na mãe do Hitler escrevendo uma cartinha para ele com esse mesmo
encorajamento. Então gostaria primeiro que vocês tivessem discernimento para
distinguir o bem do mal, mesmo sabendo que até isso é relativo. Viram como é
difícil, meus filhos? Desejar que vocês tenham bom senso então, só piora,
porque nunca vi alguém se autocriticar e dizer que não tem bom senso. Bom senso
é aquilo que toda pessoa acha que tem. Ponto.
Somos humanos,
meus filhos, isso é de uma complexidade gigantesca. Tão gigante quanto o número
de pessoas nas ruas do nosso país. E ver as pessoas nas ruas se sentindo livres
para manifestarem-se, ainda que desfocadas, ainda que com uma minoria dissidente,
é bonito, meus filhos.
quarta-feira, 12 de junho de 2013
Avenida São Luís
Ela estava
sentada na mureta de um canteiro de uma grande avenida no centro de uma cidade
esquecida. Estava gordinha, com a pele enrugada e os cabelos cinzas e desgrenhados
presos numa tentativa fracassada de coque. Vestia uma calça bordô, uma camisa
florida e sandálias que deixavam os dedos e os calcanhares rachados à mostra.
Aos seus pés, uma sacola de plástico cheia de tecidos. Segurava nas mãos uma
foto de uma mulher bem branca, jovem e sorridente sentada num sofá marrom, com
uma cortina bege atrás. Segurava nas mãos essa foto e chorava.
terça-feira, 11 de junho de 2013
Hora de dormir
Uma vela. Uma
lanterna. Uma lâmpada. O menino reclama que não enxerga na hora de dormir. A
mamãe acende a luz do quarto dela então. Uma claridade amarelada atravessa o corredor e chega ao quarto do menino. Ele sorri, vira de lado e dorme.
A mãe fica no cômodo claro, espera ouvir a respiração dos que dormem para
deixar o seu quarto também no escuro. E quando deita, mentaliza uma vela, uma
lanterna, uma lâmpada.
sexta-feira, 7 de junho de 2013
Casamento IV
No domingo ele vai ao supermercado. De lá, telefona para a
esposa:
- Amor, precisa de absorvente?
- Não.
- Por que não? Não é melhor deixar esse tipo de coisa
estocada?
- Eu já tenho estocado.
- Mas é baratinho até.
- Que parte do “não precisa” você não entendeu?
- Tá bom.
Na segunda ela acorda e vai ao banheiro. Ops.
- Querido, vou correndo até a farmácia. Já volto.
- O que você vai fazer na farmácia?
- Não posso te contar.
quinta-feira, 6 de junho de 2013
Seis horas
Às seis da tarde a casa cheira a milho cozido e café coado.
Às seis da tarde as crianças cheiram a banho com sabonete de amêndoas. Às seis
da tarde a sala é aquecida por lâmpadas amarelas. Às seis da tarde os pés descem
do salto. Às seis da tarde os pernilongos esperam. Às seis da tarde a manteiga desliza no pão. Às
seis da tarde é possível ser feliz.
quarta-feira, 5 de junho de 2013
Mensagem na garrafa para HFC
Ele
esparramado feito mar, tremendo de medo da imensidão, à procura de um continente
que não chega. É tanta lágrima doce numa água salgada, num menino tão pequeno
na encruzilhada da adolescência. Chore, menino, chore, mas não pare de nadar (lembra da Dory?). O
continente demora, mas chega.
Você não vê (ainda), mas de lá muitas mãos te
acenam.
terça-feira, 4 de junho de 2013
Pai nosso...
A bolacha era
muito doce. Desse doce que nos queima da garganta até o estômago. Comeu uma e
pensou em jogar o resto do pacote fora. Mas colocar no lixo qualquer coisa que
possa ser comida é pecado, não? Mas algo tão doce também deveria ser pecado.
Dois pecados se anulam e se transformam em virtude? Nunca entendeu bem essa história. Nunca entendeu a
virgindade da Maria, por exemplo. Gostava mesmo é de pensar que Maria e José
tinham sido felizes na cama. Fechou o pacote com o resto das bolachas e
guardou-o no armário, principalmente por causa da imagem das crianças africanas
catando migalhas no chão. Pensou em colocar o pacote no primeiro avião que
partisse para a Etiópia. Quatro anos depois, o pacote ainda estava no armário.
domingo, 2 de junho de 2013
Logo de manhã
Manhã de domingo fria e chuvosa. O corpo e o coração
quentinhos, debaixo de uma cobertor. Ela levantou da cama e preparou um café
adocicado e suave. Acendeu a luz da cozinha e se sentiu abraçada pelo
aconchego. Abriu o jornal depois do primeiro gole. Outra bomba estourada do
outro lado do mundo dela. Outra mulher estuprada no mundo dela. Outro arrastão
num restaurante no mundo dela. Outro latrocínio por causa de um telefone no
mundo dela. Outro ataque terrorista num mundo que não é dela. O café esfriou,
voltou para a cama, o jornal aberto no chão da cozinha.
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