Meus filhos,
meus amores, minhas vidas, todos os superlativos de amor que a mamãe encontra para
vocês,
há alguns anos
(quatro, acho) tomei a decisão de andar menos de carro em São Paulo, cidade em
que moramos, por dois motivos: cansaço de ficar parada no trânsito com medo de
assalto e vontade de contribuir para a qualidade de vida, tirando um carro das
ruas e usando o transporte público.
Para isso
mudamos para perto de uma estação de metrô e montei meu escritório de advocacia
perto de outra estação. Minha vida melhorou muito. Três estações na ida. Três
estações na volta. Nem dez minutos dentro do trem. Virei uma defensora do
transporte público, especialmente do metrô. E, além disso, sinto que me
transformei numa cidadã melhor. Muitos anos trancada dentro de um carro me
afastaram da vida na cidade. A pé, nos ônibus e nos trens, redescobri cheiros,
cores, dores, amores, com perdão da rima. A vida, meus filhos, acontece nas
ruas.
É claro que não
é tão lindo assim. A cidade é violenta, mas acredito que quanto mais trancados
ficamos, mais violenta a cidade se torna. Acredito nisso há muito tempo.
Sinto-me segura ao ver gente nas lojas de rua, nos bares, nos restaurantes, nos
cinemas, nos teatros, nas escolas, nos parques. Detesto, abomino, odeio (e por aí
vai...) shopping centers – vocês devem
intuir, por não frequentarem.
Tudo também não
é tão lindo no metrô de São Paulo, e vejam que eu disse que ando só três
estações, às vezes um pouco mais. Em vários dias, às seis da tarde, a saudade
de vocês aumenta muito e resolvo ir para casa. Nesse horário, a fila para
entrar no metrô está na rua. Sim, há gente nas calçadas, nas escadas fixas ou
rolantes, nos espaços até as catracas e depois delas, até chegar à plataforma.
Então volto para o escritório ou paro com meus livros num café, para tentar
novamente mais tarde. Então, em vez de estar com vocês às seis e meia, eu chego
às oito. E fico pensando em quem ainda segue por mais estações, mais trens,
mais ônibus, em pé. Não é nada lindo. Gente que trabalhou o dia todo. Se
tivessem passado o dia recebendo massagem, vá lá.
Então esse mês a
passagem do transporte público passou de R$ 3,00 para R$ 3,20. Quando li a
notícia sobre o aumento, pensei: ué, e vai melhorar o quê para a gente com esse
aumento? Qual será a nossa contrapartida?
E eu não fui a
única descontente.
Em razão desse
aumento, surgiu um movimento organizado que saiu às ruas pedindo a redução da
tarifa. O movimento já começou grande e fechou a avenida mais simbólica da
cidade, a Paulista, perto de onde moramos. A tarifa não baixou, a polícia bateu
em alguns manifestantes, o resto da gente não gostou e o movimento cresceu. Ficou
gigante. No dia 17 de junho de 2013, milhares de pessoas fecharam as ruas de
várias capitais do Brasil. Mamãe estava lá no meio delas, aqui em São Paulo.
Eu fui para
pedir a redução da passagem, sim. Penso que R$ 3,00 já era uma tarifa cara para
o transporte que temos. Para o transporte que eu uso. Mas tinha gente pedindo
de tudo, meus filhos: desde o impeachment
do prefeito, do governador e da presidenta (como ela gosta de ser chamada – eu respeito)
até a redução do preço do lanche da cantina da escola. Um carregava uma faixa
enorme pedindo o fim do trabalho. Pensei em levar para casa e mostrar para o pai
de vocês, para ver se ele me libera do pagamento das contas (é brincadeira, o
papai me liberaria se eu realmente quisesse).
E um dia depois
mais gente nas ruas, dessa vez com quebra-quebra, baderna e violência. Uma
pena. E é aqui, meus filhos, que a coisa fica nebulosa, profunda, equívoca, misturada:
em meio a tanta gente pedindo uma coisa só – a redução da tarifa – surgem outras
para gritar nas ruas suas insatisfações e indignações. Porque nós temos motivo
para isso. Temos muitos motivos para isso, porque somos achincalhados e
roubados todos os dias, vemos criminosos dos mais diversos tipos andando em
carros blindados e rindo das nossas caras. É uma batalha diária viver
honestamente nesse país, e somos uma maioria honesta que ficou cansada. E
quando um começa a gritar, outro se junta e outro e outro e a gente ganha força
e se percebe povo. Tinha de tudo, assim como tem tudo quanto é crítica. Se um
levanta a bandeira do Brasil para dizer que ama o país, outro responde que a
bandeira é símbolo do fascismo. Se um vai de tênis Nike na manifestação, outro
argumenta que quem é “coxinha” não devia estar lá. E por aí vai, rótulos em
cima de rótulos.
E surgem os
especialistas nos canais de TV e jornais para explicar o que está acontecendo,
me deixando com a sensação de que especialistas cavam buracos tão profundos de
especialidade que não conseguem mais enxergar o que se passa lá em cima. É tudo
muito grande, meus filhos, muito amplo. Não há uma pessoa capaz de enxergar tudo,
ainda que muitos tentarão convencê-los do contrário.
É inevitável que
eu, como mãe, deseje coisas para vocês. Não sei se devo escrever o que desejo,
receosa de jogar em cima de vocês expectativas que vocês se sintam obrigados a
cumprir. Não gostaria que vocês fizessem isso, considero muita violência tentar
atender a expectativa do outro, ainda mais a de uma mãe, mas vamos lá: se
decido exprimir um desejo, é o de que vocês abram suas mentes, seus corações,
suas almas, seus ouvidos, seus olhos, seus poros e o que mais for possível para
que não cresçam dentro do buraco.
Somos uma
democracia jovem, com uma história de exploração, é tudo muito novo, estamos
aprendendo, e as pessoas estão saindo nas ruas para dizer que não estão
contentes. Um gritou, outro acompanhou. Há sempre e em todo lugar e em qualquer
instituição quem queira só destruir e badernar. Mas não devem ser eles o nosso foco para
seguir em frente. Seguimos em frente apesar deles. Olhem para a frente, mas
também para os lados, para cima, para baixo e para trás, sim. Aprendam com o
que já passou. Nós, seres humanos, somos complexos, mas não totalmente
imprevisíveis.
Gostaria de
dizer para vocês não sentirem medo e lutarem pelo que acreditam, mas nessa hora
sempre penso na mãe do Hitler escrevendo uma cartinha para ele com esse mesmo
encorajamento. Então gostaria primeiro que vocês tivessem discernimento para
distinguir o bem do mal, mesmo sabendo que até isso é relativo. Viram como é
difícil, meus filhos? Desejar que vocês tenham bom senso então, só piora,
porque nunca vi alguém se autocriticar e dizer que não tem bom senso. Bom senso
é aquilo que toda pessoa acha que tem. Ponto.
Somos humanos,
meus filhos, isso é de uma complexidade gigantesca. Tão gigante quanto o número
de pessoas nas ruas do nosso país. E ver as pessoas nas ruas se sentindo livres
para manifestarem-se, ainda que desfocadas, ainda que com uma minoria dissidente,
é bonito, meus filhos.
Lu, maravilhoso.
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