quarta-feira, 19 de junho de 2013

Carta aberta para os meus filhos, de verdade

Meus filhos, meus amores, minhas vidas, todos os superlativos de amor que a mamãe encontra para vocês,


há alguns anos (quatro, acho) tomei a decisão de andar menos de carro em São Paulo, cidade em que moramos, por dois motivos: cansaço de ficar parada no trânsito com medo de assalto e vontade de contribuir para a qualidade de vida, tirando um carro das ruas e usando o transporte público.

Para isso mudamos para perto de uma estação de metrô e montei meu escritório de advocacia perto de outra estação. Minha vida melhorou muito. Três estações na ida. Três estações na volta. Nem dez minutos dentro do trem. Virei uma defensora do transporte público, especialmente do metrô. E, além disso, sinto que me transformei numa cidadã melhor. Muitos anos trancada dentro de um carro me afastaram da vida na cidade. A pé, nos ônibus e nos trens, redescobri cheiros, cores, dores, amores, com perdão da rima. A vida, meus filhos, acontece nas ruas.

É claro que não é tão lindo assim. A cidade é violenta, mas acredito que quanto mais trancados ficamos, mais violenta a cidade se torna. Acredito nisso há muito tempo. Sinto-me segura ao ver gente nas lojas de rua, nos bares, nos restaurantes, nos cinemas, nos teatros, nas escolas, nos parques. Detesto, abomino, odeio (e por aí vai...) shopping centers – vocês devem intuir, por não frequentarem.

Tudo também não é tão lindo no metrô de São Paulo, e vejam que eu disse que ando só três estações, às vezes um pouco mais. Em vários dias, às seis da tarde, a saudade de vocês aumenta muito e resolvo ir para casa. Nesse horário, a fila para entrar no metrô está na rua. Sim, há gente nas calçadas, nas escadas fixas ou rolantes, nos espaços até as catracas e depois delas, até chegar à plataforma. Então volto para o escritório ou paro com meus livros num café, para tentar novamente mais tarde. Então, em vez de estar com vocês às seis e meia, eu chego às oito. E fico pensando em quem ainda segue por mais estações, mais trens, mais ônibus, em pé. Não é nada lindo. Gente que trabalhou o dia todo. Se tivessem passado o dia recebendo massagem, vá lá.

Então esse mês a passagem do transporte público passou de R$ 3,00 para R$ 3,20. Quando li a notícia sobre o aumento, pensei: ué, e vai melhorar o quê para a gente com esse aumento? Qual será a nossa contrapartida?

E eu não fui a única descontente.

Em razão desse aumento, surgiu um movimento organizado que saiu às ruas pedindo a redução da tarifa. O movimento já começou grande e fechou a avenida mais simbólica da cidade, a Paulista, perto de onde moramos. A tarifa não baixou, a polícia bateu em alguns manifestantes, o resto da gente não gostou e o movimento cresceu. Ficou gigante. No dia 17 de junho de 2013, milhares de pessoas fecharam as ruas de várias capitais do Brasil. Mamãe estava lá no meio delas, aqui em São Paulo.

Eu fui para pedir a redução da passagem, sim. Penso que R$ 3,00 já era uma tarifa cara para o transporte que temos. Para o transporte que eu uso. Mas tinha gente pedindo de tudo, meus filhos: desde o impeachment do prefeito, do governador e da presidenta (como ela gosta de ser chamada – eu respeito) até a redução do preço do lanche da cantina da escola. Um carregava uma faixa enorme pedindo o fim do trabalho. Pensei em levar para casa e mostrar para o pai de vocês, para ver se ele me libera do pagamento das contas (é brincadeira, o papai me liberaria se eu realmente quisesse).

E um dia depois mais gente nas ruas, dessa vez com quebra-quebra, baderna e violência. Uma pena. E é aqui, meus filhos, que a coisa fica nebulosa, profunda, equívoca, misturada: em meio a tanta gente pedindo uma coisa só – a redução da tarifa – surgem outras para gritar nas ruas suas insatisfações e indignações. Porque nós temos motivo para isso. Temos muitos motivos para isso, porque somos achincalhados e roubados todos os dias, vemos criminosos dos mais diversos tipos andando em carros blindados e rindo das nossas caras. É uma batalha diária viver honestamente nesse país, e somos uma maioria honesta que ficou cansada. E quando um começa a gritar, outro se junta e outro e outro e a gente ganha força e se percebe povo. Tinha de tudo, assim como tem tudo quanto é crítica. Se um levanta a bandeira do Brasil para dizer que ama o país, outro responde que a bandeira é símbolo do fascismo. Se um vai de tênis Nike na manifestação, outro argumenta que quem é “coxinha” não devia estar lá. E por aí vai, rótulos em cima de rótulos.

E surgem os especialistas nos canais de TV e jornais para explicar o que está acontecendo, me deixando com a sensação de que especialistas cavam buracos tão profundos de especialidade que não conseguem mais enxergar o que se passa lá em cima. É tudo muito grande, meus filhos, muito amplo. Não há uma pessoa capaz de enxergar tudo, ainda que muitos tentarão convencê-los do contrário.

É inevitável que eu, como mãe, deseje coisas para vocês. Não sei se devo escrever o que desejo, receosa de jogar em cima de vocês expectativas que vocês se sintam obrigados a cumprir. Não gostaria que vocês fizessem isso, considero muita violência tentar atender a expectativa do outro, ainda mais a de uma mãe, mas vamos lá: se decido exprimir um desejo, é o de que vocês abram suas mentes, seus corações, suas almas, seus ouvidos, seus olhos, seus poros e o que mais for possível para que não cresçam dentro do buraco.

Somos uma democracia jovem, com uma história de exploração, é tudo muito novo, estamos aprendendo, e as pessoas estão saindo nas ruas para dizer que não estão contentes. Um gritou, outro acompanhou. Há sempre e em todo lugar e em qualquer instituição quem queira só destruir e badernar.  Mas não devem ser eles o nosso foco para seguir em frente. Seguimos em frente apesar deles. Olhem para a frente, mas também para os lados, para cima, para baixo e para trás, sim. Aprendam com o que já passou. Nós, seres humanos, somos complexos, mas não totalmente imprevisíveis.

Gostaria de dizer para vocês não sentirem medo e lutarem pelo que acreditam, mas nessa hora sempre penso na mãe do Hitler escrevendo uma cartinha para ele com esse mesmo encorajamento. Então gostaria primeiro que vocês tivessem discernimento para distinguir o bem do mal, mesmo sabendo que até isso é relativo. Viram como é difícil, meus filhos? Desejar que vocês tenham bom senso então, só piora, porque nunca vi alguém se autocriticar e dizer que não tem bom senso. Bom senso é aquilo que toda pessoa acha que tem. Ponto.


Somos humanos, meus filhos, isso é de uma complexidade gigantesca. Tão gigante quanto o número de pessoas nas ruas do nosso país. E ver as pessoas nas ruas se sentindo livres para manifestarem-se, ainda que desfocadas, ainda que com uma minoria dissidente, é bonito, meus filhos.

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