Porque o bebê
negro deitado no colo da mãe negra sentada na calçada numa noite de garoa de
sete graus da cidade gigante esfregava a chupeta no nariz igual ao meu filho
branco deitado em sua cama debaixo de dois cobertores num quarto decorado com
bichinhos de pelúcia e super-heróis. E o branco e o preto se fundiram numa
nuvem cinza que desaguou sobre os meus olhos. Porque sou mãe. Porque sou cinza.
Porque sou mãe cinza que não dorme mais nas noites de garoa fria.
sexta-feira, 30 de agosto de 2013
quinta-feira, 29 de agosto de 2013
Apenas...
Às dez da manhã
em São Paulo Renata participa de uma entrevista para seu primeiro emprego e com
a garganta seca e as mãos molhadas pensa no pai desempregado. Às três da tarde
em Paris Louis bebe mais um café para se manter acordado durante a investigação
que poderá levá-lo a uma promoção. Às onze da noite em Pequim Chang pensa em
suicídio depois de ser descoberto no desvio de verbas da empresa. Às dez da
manhã em São Paulo Cleidionice escuta o filho dizer que está com fome e chora
enquanto diz vou dar um jeito. Às três da tarde em Vejle Mads consegue o tempo
requerido para participar do campeonato nacional de ciclismo e sente por não
ter assistido ao parto de seu primeiro filho. Às oito da manhã em Bogotá
Agostina procura pelo filho que foi transferido da penitenciária onde estava
preso há dois anos. Às quatro da tarde em Istambul Bora comemora o lucro de
alguns milhões de dólares da empresa que preside enquanto pensa se comprará um
iate ou um apartamento em Nova Iorque. Às duas da tarde em Lisboa Manuela
estuda para a prova de matemática sob a ameaça da mãe de castigá-la. Às três da
tarde em Split Franjo chora ao receber a notícia de que seu pai morreu na Vela
Luka. Às dez da noite em Tókio Aiko pensa em se jogar no trilho do metrô depois
de descobrir a traição do namorado. Às nove da manhã em Washington Obama pensa
se aguentará mais um dia. Às nove da manhã em Assunção Isabel desmaia ao
receber a notícia de que o filho de cinco anos está com leucemia. Às três da
tarde no Cairo Isis está atrasada para fazer a última prova do vestido de noiva
e xinga o motorista que não conhece um caminho livre de trânsito. Às dez da
manhã em São Paulo Renata pensa se aguentará mais um dia. Às três da tarde em
Paris Louis consegue o tempo requerido para participar do campeonato nacional
de ciclismo e sente por não ter assistido ao parto de seu primeiro filho. Às onze
da noite em Pequim Chang estuda para a prova de matemática sob a ameaça da mãe de castigá-lo. Às dez da manhã em São Paulo Cleidionice bebe mais um café para
se manter acordada durante a investigação que poderá levá-la a uma promoção. Às
três da tarde em Vejle Mads desmaia ao receber a notícia de que o filho de
cinco anos está com leucemia. Às oito da manhã em Bogotá Agostina pensa em se
jogar no trilho do metrô depois de descobrir a traição do namorado. Às quatro
da tarde em Istambul Bora procura pelo filho que foi transferido da penitenciária
onde estava preso há dois anos. Às duas da tarde em Lisboa Manuela participa de
uma entrevista para seu primeiro emprego e com a garganta seca e as mãos
molhadas pensa no pai desempregado. Às três da tarde em Split Franjo escuta o
filho dizer que está com fome e chora enquanto diz vou dar um jeito. Às dez da
noite em Tókio Aiko está atrasada para fazer a última prova do vestido de noiva
e xinga o motorista que não conhece um caminho livre de trânsito. Às nove da
manhã em Washington Obama chora ao receber a notícia de que seu pai morreu na
Vela Luka. Às nove da manhã em Assunção Isabel comemora o lucro de alguns
milhões de dólares da empresa que preside enquanto pensa se comprará um iate ou
um apartamento em Nova Iorque. Às três da tarde no Cairo Isis pensa em suicídio
depois de ser descoberta no desvio de verbas da empresa.
segunda-feira, 26 de agosto de 2013
Bestas
O sol do meio de
um dia de verão. Eu sozinha no único carro que passava nas ruas daquele bairro
desconhecido para mim. Ninguém nas calçadas e eu desconfortável na solidão.
Devia estar pensando nisso quando vi uma coisa – parecida com um saco, um
trapo, um...uma coisa – que se mexia no meio-fio. Desacelerei até parar: um
gato. Meio gato: as patas traseiras e metade do corpo – se fosse falar de uma
pessoa diria que da cintura para baixo – esmagadas. Saí do carro. Aquele sol
que não nos permite abrir os olhos livremente. O bicho arfava. Os globos
oculares se prendiam à cavidade por apenas um fio – o nervo óptico? – mas ele
conseguia me olhar. Pelo ânus - ou pelo quê um dia foi um ânus – escapavam as
vísceras acinzentadas como os pelos. E o bicho arfava. Se eu carregasse uma
arma, teria coragem? Procurei por uma pedra capaz de acabar com aquela vida num
pá, mas e se eu não a jogasse com força suficiente? E se a jogasse? E se eu
voltasse para o carro e acelerasse para frente e para trás, para a frente e
para trás, por cima dele?
E se...?
Sentei ao seu
lado. O bicho ainda arfava. E me olhava. Então é isso: e fixei meus olhos nos
dele, por mais que ardessem. Então é isso: tudo o que posso te oferecer é a
minha companhia até o fim. E com os olhos doídos e firmes, ali fiquei até o
último estremecimento.
quinta-feira, 22 de agosto de 2013
Quando só o chão nos segura
As sacolas
arrebentaram na garagem do prédio, enquanto ela tirava as compras do
porta-malas, compras que fez entre o deixar os filhos na escola e a reunião que
teria em trinta minutos com um cliente importante. E em meio a pacotes de sabão
em pó, detergente, alvejante sem cloro e cera incolor, ela viu espalhados suas
noites sem dormir, as contas que não param de se acumular na mesa de jantar,
seus sonhos, seu amor cansado da rotina, o choro e a birra das crianças, seus
livros e artigos não escritos, sua busca pelo silêncio, sua vontade de pisar
numa areia deserta, as crianças mortas na Síria. E foi socorrida pelo porteiro, que lhe pediu para levantar e enxugar as lágrimas.
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
Charco
Um ardor nos
olhos. Sentia que veria duas fogueiras se olhasse seu rosto no espelho. Não
olhou. A queimação não diminuía. Foi uma lembrança – uma imagem grudada na
retina que a feriu. Que a feria. Que vinha ferindo-a, como gado marcado.
Desligou o computador sem explicações e dirigiu três horas até o mar. Tirou os sapatos para que
a areia invadisse o vão entre os dedos. Mergulhou com a calça e a camisa de seda que
fingia não detestar. Ela e uns poucos surfistas amadores. O dia já esfriava.
Subiu a serra com a roupa encharcando o carro de sal.
segunda-feira, 19 de agosto de 2013
O laudo
CONCLUSÃO DE
ULTROSSONOGRAFIA GESTACIONAL COM DOPPLERVELOCIMETRIA COLORIDA
Paciente: Sra. Sandra
Valle de Lima
Feto único em
situação longitudinal, apresentação pélvica e dorso à esquerda da linha
mediana.
Parênquima cerebral
e sistema ventricular de aspecto morfológico preservado e simétrico.
Estruturas da
linha média presentes e normais. Fossa posterior normal.
Cavum do séptico
pelúcido visibilizado.
Lábio superior
íntegro e perfil de aspecto normal.
Face e região
cervical sem alterações.
Coluna vertebral
visibilizada em toda sua extensão de aspecto preservado.
Membros
superiores e inferiores visibilizados, apresentado-se simétricos, sem
dismorfismos e bem posicionados. Quando estimulado, o feto apresentou
movimentos avançados para a idade gestacional (33 semanas e 4 dias). Executou
quase com perfeição um demi plié,
ensaiando logo em seguida um grand jeté
que no começo confundi com um sissone.
Porém, ao rever as imagens para a elaboração deste laudo, pude perceber
claramente que o impulso não foi tirado de um único plié. O feto solta primeiro uma perninha, como num chute, fazendo
com que a outra a acompanhe, o que confirma a tentativa de um grand jeté, fato que talvez não deva ser
revelado ao pai que se mostrou tão orgulhoso do pênis ereto do filho, mesmo sem
conseguir diferenciar as nádegas das bochechas. A mãe, absorta nos seus
próprios gritinhos de admiração, provavelmente não se incomodará. Eu,
particularmente, lembrei-me do Billy Elliot, o ápice da música de Tchaikovsky
nos meus ouvidos, a perfeição do movimento na cena final, a luta para que chegasse
ao Royal Ballet e tive que conter as lágrimas.
Tórax com
morfologia normal, ausência de tumoração ou formações císticas no parênquima
pulmonar.
Fígado com
ecotextura homogênea.
Ass.: Dr. Marcos
Affonso Cândido - ultrassonografista
domingo, 18 de agosto de 2013
Memórias
Não, não adianta limpar a tela do computador. A foto que
aparece é do seu rosto, sim, e essa ruga é sua, assim como esse fio branco no
cabelo. Uma ruga que corta o nariz quando você sorri. Talvez ela tenha sulcado
sua pele na morte do seu primeiro (ou segundo? ah, que importa se foi grande)
amor. Essas rugas menores ao redor dos olhos podem ter aparecido de tanto que
você já riu até a barriga doer (e algumas vezes até o xixi escapar). Ao redor da boca por causa dos beijos,
tantos, tão queridos, tão...felizes, sim. Esqueça as estratégias para ter aos quarenta
um rosto de vinte. Ao vinte somos tão mais tontas. Tão mais burras. Esqueça.
sexta-feira, 16 de agosto de 2013
Hortelã ou camomila?
É uma zunideira
que fica se chocando contra o crânio dia e noite, dia e noite, dia e noite...
Às vezes sente-se na borda da loucura, quase a cair, mas ainda consegue dar um
passo para trás e esperar mais um dia. Aprendeu que a vida é vivida em dias e
talvez, quase sempre, você só descobre depois de anos que viveu um dia
determinante. A vida é besta, ela pensa, enquanto preenche um cheque. Olha para
os lados e para o chão, mas não vê nada real. A vida é ficção, ela pensa, em
mais um dia na borda. E dá um passo para trás – mais um. Gosta de um desafio.
Quem sabe – ela não, a bestialidade também recue. E resolve
esperar, com uma xícara de chá quente nas mãos.
quinta-feira, 15 de agosto de 2013
Sete de abril
Júlia saiu da casa de chá e protegeu a cabeça e o pescoço com o cachecol de lã. Vestiu as mãos com as luvas guardadas no bolso do casaco. A ponta do nariz doía de frio. Moça, compra um chinelo pra mim? O menino tinha pés descalços com unhas grossas e solas pretas e rachadas. Não posso, Júlia respondeu, e foi até a esquina, uns quinze ou vinte passos, para voltar em seguida: Onde tem uma loja de sapatos? Ali, o menino apontou para o outro lado da rua. Ela o puxou pela mão, o menino e seu cobertor, ambos cheirando a mijo e merda.
Você sabe que número calça?, perguntou culpando-se pela pergunta estúpida.
Trinta e seis ou trinta e sete.
Você tem esse tênis número trinta e seis ou trinta sete?, Júlia perguntou para o vendedor receoso de se aproximar.
Tia, compra o chinelo mesmo.
Mas tá frio, um chinelo te protege do quê?
Ué, do asfalto.
Pode ser um tênis?
Pode, mas é mais caro.
Júlia o ajudou a calçar o tênis preto e prata, apertou a canela do menino para forçar o pé no sapato, sem saber que nem só os fortes moram nas ruas. Ai, tia, minha perna dói aí.
E por que você estava sem sapatos?
Porque roubaram meu chinelo enquanto eu dormia.
Onde?
Na sete de abril.
Na rua?
É.
Você já teve uma casa?
Não.
E se te roubarem os tênis?
Não, tia, eu vacilei. Tenho que dormir com eles dentro do agasalho, aqui, ó, no peito.
O menino pulou com os tênis novos nos pés, Michael Jordan diante da cesta.
Júlia não consegue dormir: menino, ei, menino...você se lembrou de esconder os tênis, aí, ó, no peito?
quarta-feira, 14 de agosto de 2013
Labirintite
A gente sentava
no meio-fio pra conversar, uma garrafa de vinho barato entre nós, sem medo da
madrugada. Acendíamos um cigarro, nos achávamos gente tão grande – não sabíamos
que gente grande não sabe o que fazer. Nunca olhamos para a marca dos nossos
sapatos e das nossas calças, só queríamos rir, beber, fumar, tomar banho de
cachoeira, beijar os meninos, comer bolo, ouvir Chico e Caetano, andar de moto, dançar, crescer
devagar. Foi rápido. Eu cresci: hoje uma gente grande que não sabe o que fazer. Ela não:
não quis ou alguém não deixou. E numa tarde fria a saudade engancha no estômago
e tudo o que eu queria era voltar praquele meio-fio.
terça-feira, 13 de agosto de 2013
Marcianos
Inventaram que
hoje é terça-feira. Mardi em outro
canto. Tuesday. Dienstag. É dia de Marte, baby, não de pagar contas.
Inventaram o seguro e a gente acredita nisso só porque aparece uma autenticação
mecânica (ah, e as autenticações humanas, dove sono?) num boleto. Não, you are
not safe. Jamais (jamé, viu?). Inventaram as leis e sofremos de diarreia (com
ou sem acento?). Inventaram o casamento enquanto tanta gente passa pelas ruas. Inventaram o sutiã e o silicone e as capas de revista! Inventaram que hoje a gente trabalha e dorme cedo, e almoça ao meio-dia. Mas
hoje, meu amor, hoje, é Martedì.
segunda-feira, 12 de agosto de 2013
Felicidade
Você, aí, tão preocupado em me ver feliz, esquece isso, eu não acredito em felicidade, esse estado que me faz pensar em permanência, continuidade, numa coisa absoluta. Não. Eu acredito na alegria, num estado mais efêmero. Aquelas risadas com os amigos em volta da mesa de um bar. Pronto, passou, mas valeu pra ficar no canto que aquece a alma. Não, não quero que meus filhos sejam felizes, desejar isso a eles é desejar o nada. Alegria, uma coleção de momentos alegres. Um saldo mais alegre do que triste. Sim, isso eu desejo. Ser feliz? Não, o que eu desejo é vida.
domingo, 11 de agosto de 2013
Dia dos filhos
Ele quer viver uma aventura sozinho, um dinossauro nas mãos, enquanto o irmão mais novo grita e pergunta se ele é um papagaio. Um dinossauro!, ele também grita, e a briga começa, chutes, tapas, pontapés. Você não tem cauda, é claro que tenho se sou um dinossauro, dinossauros não têm cauda, têm sim, você é meu pai?, não sou seu pai, eu tô com fome, filho...e juntos entram num carro à procura de um restaurante, pai e filho, Batman e Robin, Homem de Ferro e Lanterna Verde, Dinossauro Rex e Brontossauro, saídos de mim, como? - não se coloca pessoas na vida impunemente -, a aventura já vivida, sem que eles saibam - da aventura e dos meus medos.
sexta-feira, 9 de agosto de 2013
Desastre
Porque às vezes, tantas vezes, demais de tantas vezes, o corpo não basta e arde em febre que termômetro algum capta. A dor de uma abstração concreta. Eu não sei, por isso não digo. Eu não digo porque algumas coisas, às vezes, tantas vezes, demais de tantas vezes, até a exaustão do ser e do não ser, são indizíveis. Incompreensíveis. Um espelho gelado no estômago. Um mugido quente no esterno. Leite condensado na bile. Não-há-mais-órbita.
quinta-feira, 8 de agosto de 2013
Almas gêmeas
Quando entrei,
ele já estava lá, sozinho à mesa, a mente grudada nas páginas de um livro que
eu não consegui identificar. Da mesa que ocupei, também sozinha, podia ver o
seu perfil atento. Tirei um livro da bolsa, o coração saltando pelas páginas que
se abririam. Pedi um filé de frango com salada para o garçom, e uma soda. Em
seguida outro garçom o serviu: filé de frango com salada. No copo, soda.
Enquanto comeu, manteve o livro fechado, mas comeu rápido, para em seguida
voltar para o que entendi ser também um amor. Tentei ler enquanto comia, não
consegui, então comi rápido. Pedi um café, agora sim, para saborear com mais
calma o momento, enquanto ele já tomava o dele. Nada de sobremesa durante os
dias que chamam “de semana”? Dois cafés para mim. Dois para ele. Pagamos a
conta, com cartão, quase ao mesmo tempo, e saímos. Eu para a direita. Ele para
a esquerda.
quarta-feira, 7 de agosto de 2013
Vó
E então a aceleração
do ônibus invade a janela do seu escritório e desperta sua memória, a lembrança de você, corpo
pequeno e magro, acostumado ao silêncio do interior, dormindo na casa da sua
avó materna, numa movimentada avenida da capital. Os aceleradores lembrando que
você estava ali, na cama de molas (mais um barulho inesquecível) montada embaixo
da janela, ainda aprendendo a dizer “ônibus”, a mais difícil que você já
enfrentou (zombus? tá certo, vó?), sua irmã dizendo “burubu”, seu irmão sempre tão
quieto, os três espalhados pelo quarto sob o olhar quente e gigante da avó, tão
gigante que você ainda o percebe.
terça-feira, 6 de agosto de 2013
Madrugada
E numa noite de
lua e estrelas parcialmente visíveis, você se deita e se encolhe numa cama de
outro lado vazio. Aperta uma mão contra a outra numa prece, mas nada sai do seu
coração. Você tenta se dirigir a Deus, pergunta-se se há alguém escutando,
alguém que tenha rosto, corpo, voz, vontade. Procura por alguém conhecido, um
avô morto, talvez, na esperança de que ele paire ao seu redor num campo de
proteção contra a dor, fecha os olhos para enxergá-lo melhor, mas não há
ninguém quando seus olhos se abrem. Pensa num animal de estimação, num amigo
também enterrado, alguém, alguém mais próximo do que Deus para garantir que
essa dor também vai morrer. Suas mãos suadas puxam seus joelhos contra o peito,
sua coluna se curva e você tenta se fechar como os tatus-bolas nas mãos da sua
infância, tenta se lembrar do útero materno, mas você foi expelido há tanto
tempo. Pensa que se pensar em alguém com força, muita força, esse alguém poderá
ouvir seu chamado e se materializar no espaço vazio da cama, repete o nome
desse alguém baixinho até sua língua enrolar, uma súplica para que esse alguém
venha, pois sozinho você não vai aguentar, mas ninguém vem e a lua e as
estrelas continuam parcialmente visíveis. Ninguém prova a existência de Deus,
ninguém sabe onde estão os mortos – mesmo os seus mortos, só você abraça o seu corpo e
sente que se desintegrará, você até deseja se desfazer em pedacinhos tão
pequenininhos para que nunca mais sejam juntados. Não há Deus, não há mortos,
não há vivos. Terrivelmente, só há você.
segunda-feira, 5 de agosto de 2013
Para mães e filhas
Eu não tenho uma
filha, mas se tivesse meu conselho para ela seria tenha sempre um batom por perto, para aqueles dias em que uma
espinha aparece, uma unha quebra, a meia-calça desfia, a chave some, a moeda
cai, a ligação não completa, a conta fica devedora, o cabelo arrepia, a olheira
não some, a caneta falha, a impressora não funciona, as baterias acabam, para
esses dias, tenha sempre um batom por
perto. De preferência, vermelho.
sábado, 3 de agosto de 2013
Mitocôndrias
Do vinho na taça emerge um rosto com a barba por fazer, um
gesto de mãos famintas, um gosto idílico de língua, dentes e saliva, palavras
errantes. A voz de Joe Cocker agrava meu peito, esvazio o cristal – não se deve
voltar ao passado: ele pode vir tingido de um vermelho insuportável.
sexta-feira, 2 de agosto de 2013
O pacote
Foi quando
acordaram, o quarto ainda não totalmente claro, que viram o pacote no chão, um
obstáculo no caminho para o banheiro. Um pacote estereotipado para presente,
envolto em papel roxo brilhante e finalizado com um laço vermelho per-fei-to.
Ele pulou o
embrulho e entrou no banheiro.
Não vai abrir?,
ela perguntou.
Ele levantou os
ombros: e que diferença faz saber o quê se tem por dentro? E se descobrirmos um
coração que bate falhado? Um estômago corroído? Pulmões bloqueados? Sangue muito
grosso ou muito fino? E se o quê se tem por dentro for simplesmente impossível
de ser revelado?
Ao meio-dia, ela
enterrou o pacote na areia. Ainda brilhando, ainda perfeito.
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