sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Vê?

Você não está aqui, se está não te vejo, não tem como estar, eu não sei se tem, às vezes sei que está, nos sonhos, não são sonhos, eu sei que não são porque sei, se estão na minha cabeça sou eu quem sabe, ué, não sei explicar, são visitas, e avisos, então você está, sorrindo para dizer que está bem, que estamos bem, dizendo-me para ter calma, e paciência, dizendo-me apenas que está, mesmo sem estar, mas queria que você estivesse, de uma forma que eu pudesse ver e não só sentir, fazes-me falta, tem um livro com esse título, que eu ainda não li, mas fazes-me falta, é só isso, mas queria que estivesse aqui para ver como estão sorrindo aqueles que você deixou. Fazes-nos falta, mas sorrimos, mesmo com os corações trincados, sorrimos, e gostaria tanto que pudesse ver. 

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O anunciador de mortes

Um homem morreu. Um homem morreu!, todos deveríamos ouvir a morte de um homem anunciada pelos pulmões dos que ainda estão vivos. Morreu no banco de uma praça suja de uma capital sempre quente e ninguém na Dinamarca soube, mas um homem morreu. Ei, dinamarqueses, um homem morreu aqui embaixo, sujo, tudo sujo, o banco, ele, o chão, as roupas, a praça, os passantes, só o passarinho que bica seu cabelo que não. É pequeno, delgado e tem as penas cinza-alaranjadas. 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Solo le pido a Dios

Todas as pessoas que estavam na praia naquele fim de tarde, umas vinte ao longo de dois quilômetros, aproximadamente, repararam naquela mulher tão destoante da população local, pele translúcida, olhos de um azul doído, cabelos loiros e lisos até a metade das costas, tão alta quanto o voo da gaivota, que chorava. Todas as pessoas repararam, mas ninguém parou. Ninguém falou. Ninguém ouviu. Todos entenderam que aquela mulher que parecia caída de uma nuvem forasteira precisava ficar ali, tão transparente quanto sua pele. Todos entenderam que ela precisava acariciar a espuma do mar com os pés. Se alguém ali já tivesse visto uma bailarina clássica, teria reconhecido uma naqueles pés com peitos tão curvados e solas tão machucadas, com fendas incapazes de serem coladas. Todos entenderam quando ela caminhou lentamente para o horizonte, braços abertos, olhos à procura da nuvem de onde tinha caído. E escureceu. E ninguém foi atrás. Porque todos ali sabiam o que é ter raízes, mesmo que elas venham de cima.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Preste atenção porque vou dizer só uma vez

Pare. Pare de me tratar por tu. Tu vais? Tu podes? Tu gostas? Não. Não. E não. Sou eu, não vê (não vês?, viu?)? Somos nós. Tire o chapéu de lã, vamos nos aquecer com cachaça ou vinho e amor. Tire os coletinhos por cima da camisa. Tire as camisas, uma por uma, do armário. Tire a falta de humor, jogue pela janela todos esses hábitos. Vamos almoçar às duas da tarde e jantar às dez da noite. Esqueça o meio-dia, ninguém mais encontra o começo e o fim do dia, imagine onde se enfiou o meio. Não precisamos de pijamas. Nem do sinal da cruz. A gente agradece é comendo e rindo. Você foi enganado: tudo é só convenção, e convenção não é verdade. Sabias disso? Com exceção dessas árvores na nossa janela e dos passarinhos que também não encontram mais o começo do dia e cantam às três da manhã. Viu? Até eles. Arranque o pijama, coma um pote de sorvete, sim, um pote de sorvete inteiro no meio da madrugada, e volte para a cama. 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Coragem numa noite de verão

Os carrinhos de Yakult pesam mais às oito de uma noite tão quente quanto a metade do dia. Elas param: uma ao lado da outra. Olham-se. Uma enxuga a testa com a mão. A outra o colo com um lenço acinzentado. Talvez branco, não sei, não enxergo direito numa noite tão mal iluminada. Riem. Riem alto. Penso que logo estarão em casa. Talvez não. Talvez não tão logo, mas gosto de pensar que sim. Preciso pensar que sim. Preciso continuar, como elas, e continuamos as três. 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Insônia

Perdi meu sono. Saiu sorrateiramente, às três da manhã, aquele horário do meio em que só conseguimos nos preocupar. Muito cedo para um café. Muito tarde para um filme em preto e branco. O que fará meu sono, meu menino, longe de mim? Ouço um grito e garrafas quebrando. Sono besta em busca de liberdade, terá se metido em confusão? Mais uma hora e não espero mais: voltará e me encontrará com o café. Não, chá. E um livro nas mãos. Luz amarela do abajur. Posso viver sem ele e viver aconchegada. Por uma noite. Ou duas. Três, talvez. Mais um grito e uma freada brusca. Estará bêbado tentando atravessar a rua? Ninguém pára, sua bestinha arrogante...volte. Mais duas horas. E aí, sim, me encontrará com a xícara (definitivamente com café) e minha respiração artificial. 

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Felipes

Vem, Felipe.

E o Felipe, nada.

Vem, Felipe.

E o Felipe não aparecia.

As palavras arranhavam a garganta: vem, Felipe.

Ninguém.

Você mesmo, Felipe, é com você que estou falando...vem, Felipe.

Os dedos grossos das mãos encardidas e rachadas ajudando o chamado num movimento lento: vem, Felipe.


Poucos cabelos brancos, os olhos opacos e lacrimosos, o corpo mal coberto por uma calça rasgada e uma camisa rota e aberta, jogado na calçada, os pés quase na rua (cuidado com o ônibus), a baba escorrendo pela boca que ainda chamava pelo Felipe. 

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Ouviu?

A ira me alimenta. Por isso saio na chuva à caça de relâmpagos: minhas veias abertas na escuridão de um céu tão incapaz de me acolher na sua infinidade. Grito com cada trovão: quero o desenho do meu sangue no clarão: venha! O desgrenhar dos cabelos enroscados nos dentes. A água nos olhos, ouvidos, boca e narinas. Rio. Rio vermelho. Rio vermelho e alto a ponto de me chamarem de louca. Quem se importa quando se tem as veias abertas? E quem não tem? Escute: ... . Nossos sangues misturados numa torrente, a lavagem do meu corpo, dos nossos corpos: o meu e o teu: meu desconhecido. A ira me alimenta, mas o amor também. 

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

História sem fim

E de tanto pensar ela não entrou no avião. Ele e a poltrona ao lado: vazia. Ela no apartamento escuro com o telefone nas mãos, sem coragem até para uma mensagem: não consigo. Em poucas horas, um oceano entre duas histórias que poderiam ser uma: não consigo. O gato que se enroscava em suas pernas sem olhar para cima enquanto ela continuava com o telefone nas mãos: não consigo. Ela, coitadinha, que ainda não sabia que uma história não vivida dura para sempre.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Campos

Era um silêncio tão verde que algumas margaridas chegaram a brotar no seu coração trincado.  O dia estava amarelo e frio: nenhuma pétala para o mal-me-quer. Um livro numa das mãos. Uma xícara com chá quente na outra. A alma resgatando beijos, abraços e sorrisos: pequenos e grandes; barulhentos e silenciosos. Era um silêncio tão profundo que a vida brotou novamente. 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Ar condicionado


O calor. O fim de uma tarde. A cada inspiração uma onda que se levanta. A falta de equilíbrio para manter-se na crista. Nenhuma mão para segurá-la. O pavor de se espatifar no asfalto. Logo ali. Logo ali onde um homem negro está vestido como Elvis Presley. Nenhuma ponte sobre águas turbulentas. Love me tender... Abaixa as janelas do táxi. Não há ar. Abre o máximo que consegue a boca. Quer que os maxilares se soltem - um grito silencioso congelado na avenida - mas não há ar. Só condicionado. Tudo ali: só condicionado.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Erros e acerto


Era ela toda um erro: dos fios do cabelo que não conseguiam se ajeitar aos pés com ossos que cresciam tortos. Gritava em vez de sussurrar. Agredia em vez de pedir ajuda. Não conseguia alimentar os outros, só de vez em quando com um prato de macarrão. Molho, só pronto. Insistiu em ter filhos que não deveria ter. Beijou um homem para quem não deveria ter olhado. Uma vez, há muito tempo, mas não tanto tempo assim para uma vida, recebeu um carta: há morte no seu toque. Uma carta da única pessoa para quem ela se mostrou nua. Com acerto.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Manchas de um domingo


O café amargo frio na xícara. O gelo derretido no copo d’água. As solas dos pés escuras de um chão por limpar há mais de uma semana. Os fios de cabelo que escorregam lentamente pelas costas até esse mesmo chão de piso frio. Não há nada nela que consiga se segurar: até as unhas quebram em contato com o ar. Lágrimas gordas pelas bochechas vermelhas. Não consegue se lembrar quem lhe ensinou as mentiras sobre o amor entre um homem e uma mulher. A existência  desse amor a maior mentira de todas: um homem e uma mulher juntos só amam seus próprios umbigos. Os olhos não vão além disso. Suas mãos trêmulas enxugam as lágrimas. A xícara arremessada contra a parede. Mais uma mancha no chão. E daí?

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Espelho

Não tem nem onde cair morto. E daí se um corpo morto não tem onde cair? Pobreza mesmo, miséria, desespero, é não ter onde cagar em vida. Como a mulher no outro lado da rua, costas na parede de um prédio no centro da cidade, pés descalços, pernas esticadas e abertas, calça arriada até os joelhos e a merda escorrendo líquida e marrom-amarelada pela parede até o chão, onde um cachorro a espera. Enquanto caga, ri com olhos desgovernados. E eu aqui, esperando o sinal verde para atravessar a rua, pensando se alongo meu caminho para o trabalho e desvio da mulher. O sinal ainda vermelho para mim, suspiro sem tirar os olhos dela,  mas a luz amarela indica que meu tempo se esgota, o semáforo me ignora, para os carros e o sinal verde - um homenzinho com o corpo inclinado para a frente me dizendo vá - acende para mim. Decido não ir, esperar que ela desapareça para que eu possa passar, mas o homenzinho começa a piscar: corra. Não vou, homenzinho verde, olha a mulher ainda ali; não vou, homenzinho verde, a mulher caga na rua. Fixo meus olhos nela e feito um urubu faminto atravesso a rua e tomo o caminho mais curto.


Agora na mesma calçada. Diminuo a velocidade e viro o rosto para ela. Só eu. Os transeuntes que desviavam dela agora desviam também de mim. Ela não me vê, não vê ninguém; eu a vejo, vejo a merda doente. É uma cidade de pessoas transparentes e prédios espelhados. O cachorro embaixo, enrolado a seus pés, os olhos levantados. A merda num jato – o último –, ela ri aliviada. Prendo a respiração, mas é tarde. Expiro o ar, tento tirar tudo o que há dessa merda de dentro de mim, mas virou pedra e não sai fácil.  Balanço as mãos, enrosco os dedos uns nos outros, dou batidinhas com os pés na calçada, esfrego o nariz, procuro o cheiro do creme de amêndoas nas minhas mãos – perdeu-se. O que entrou pelas minhas narinas derrete meus esfíncteres. A mulher não caga mais, mas continua encostada na parede, não consegue levantar a calça, o cachorro se levanta, olha para chamá-la, a mulher não vê o cachorro, não sabe onde está e que cagou e que cagou doente na rua e que precisa levantar a calça e essa merda entupiu o meu útero. Nunca mais piso nessa calçada. Nunca mais me preocupo com onde cairei morta. Só preciso de um banheiro. A mulher consegue levantar a calça, não completamente, mas o suficiente para esconder a calcinha – por que uma pessoa que não tem onde cagar em vida usa calcinha? –, dá uns passos com o corpo ainda escorado na parede, quatro ou cinco, em seguida desencosta, cambaleia, mas logo ganha segurança e sai pela rua, o cachorro atrás, a merda na calçada. Uma pomba roliça se aproxima e bate as asas em desespero.

 E eu, ainda, aqui.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

La dolce vita

O ano é recém-chegado, tem um ar convidativo para a novidade, mas o calor ainda é o mesmo e derrete qualquer vontade. A chuva que caiu há pouco não era azul nem laranja. Isso, sim, seria novo. Um arco-íris que acabasse ali na sua sala, iluminando seus pés inchados. As sinapses falham com o calor, ela sente um peso maior que o de ontem sobre a cabeça, pensa em sentar e esperar pelo arco-íris, mas não...não: se a chuva não vem colorida, ela ao menos pode corrigir uma falha e assistir a um filme que não poderia ser inédito para ela. E começa com La Dolce Vita.