terça-feira, 25 de novembro de 2014

Antropofagia

O médico, depois de beliscá-la com uma espécie de alicate que mede e identifica os tipos de gordura no corpo, foi taxativo: nos seus braços praticamente não há gordura (ela sorriu, apesar da notícia não causar o impacto que causaria se a falta de gordura fosse na bunda), na cintura a gordura está bem localizada e compacta (seu sorriso esmoreceu só pela existência da gordura, fosse ela como fosse), mas nas coxas a gordura é como a do cupim, sabe?, aquela gordura que está entrelaçada na carne, pulando para fora em cada espaço que encontra? Então ela nunca mais sorriu ao olhar para suas coxas. E nunca mais conseguiu aceitar um pedaço de cupim. 

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Um dia e dez atos

Ato n. 1: Olhos abertos: 09h00.

Ato n. 2: Celular: jornais. Livro: uma página. Vigília: onze páginas.

Ato n. 3: Café sem açúcar; pão amanhecido com muita manteiga; uma colher de sopa de Nutella; duas colheres de sopa de Nutella; foda-se: três colheres de sopa de Nutella.

Ato n. 4: Cento e cinquenta e cinco canais de TV em dois minutos. Livro: três páginas. Vigília: seis páginas.

Ato n. 5: Banho; não, foda-se. Dentes escovados. Cama.

Ato n. 6: TV: Uma linda mulher dublado e pipoca. E chocolate em barra.

Ato n. 7: Muita água. TV Justiça. TV Senado. TV Câmara. Viva: Vídeo Show.

Ato n. 8: Livro: Trinta e duas páginas. Celular: Facebook. Instagram. Candy Crush (ainda).

Ato n. 9: Ah, amiga, uma merda.


Ato n. 10: Eu devia mesmo comprar um cachorro.Viva o Gordo. 

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Infarto ou derrame?


Um formigamento no braço esquerdo. Três da manhã. Sempre três da manhã. Devia estar dormindo sobre o braço, é isso, apesar de não ser meu estilo, mas só pode ser isso. Mas a circulação não volta. É só virar para o lado direito então. Viro. Mas o formigamento começa no pé esquerdo. Estranho. Sobe pela perna, ameniza na cintura, mas dá a volta no seio. Um aperto. O que começa mesmo com um formigamento? Infarto? Derrame? O formigamento aumenta, como se todas estivéssemos diante da formiga-rainha. Vou ao quarto dos meus filhos para uma despedida? Não. Toda despedida é piegas, não quero deixar essa impressão. E se morro abraçada a eles?, tão pequenos para se desvencilharem do meu corpo. Ficarei por aqui, que me encontrem já de manhã. Prefiro morrer quieta. Não tenho nada a dizer que vá fazer alguma diferença. Talvez algo para o pai deles: cuide dos meus meninos. Mas, além de piegas, a frase é inútil. É isso: terminarei quieta, eu e minhas formigas.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Infâncias

Toda vez que como pastel, eu me lembro da Ligia. Quando éramos crianças ela apareceu na escola com uma queimadura no canto da boca e disse que tinha machucado ao dar a primeira mordida num pastel.

Toda vez que lavo os cabelos, eu me lembro da Luciane. Quando éramos crianças ela me viu lavar primeiro o corpo e depois os cabelos, e me disse que o que eu fazia não tinha sentido, pois eu deixaria a sujeira dos cabelos escorrer pelo corpo já limpo.

Toda vez que vejo uma foto ou escuto a voz do Wando, eu me lembro da Leticia. Toda vez que ela via uma foto ou escutava a voz do Wando ela gritava e se contorcia como se estivesse sofrendo uma tortura.

Toda vez que escuto Can’t take my eyes off you, eu me lembro da Luciana. O pai dela tinha acabado de chegar dos Estados Unidos e traduziu a música para ela, que resolveu escrever toda a tradução na lousa.

Toda vez que tomo sorvete, eu me lembro do meu avô. Toda vez que alguém lhe oferecia sorvete ele dizia não, obrigado. Sorvete esfria a cabeça.

Toda vez que acaba a energia, eu me lembro da Leticia e da Ligia. Uma noite acabou a energia na casa delas, enquanto pintávamos uns desenhos com canetinha, e na manhã seguinte vi que minha árvore tinha folhas roxas.

Toda vez que vejo um doberman, eu me lembro da Mariana. Ela me disse que tinha um, mas quando o vi no quintal notei que era um vira-lata, e passamos a tarde toda falando da beleza do doberman dela.

Toda vez que escuto o nome Zé Maria, eu me lembro de um menino de cujo nome não me lembro. Ele era amigo do meu vizinho e tomávamos lanche juntos quando algum adulto falou do Zé Maria, jogador do Corínthians. O menino cuspiu todo o leite e quase caiu no chão de tanto rir.


Toda vez que vejo grão de bico, eu me lembro dos croatas em São Paulo. Mas aí a história é muito longa.