quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Infâncias

Toda vez que como pastel, eu me lembro da Ligia. Quando éramos crianças ela apareceu na escola com uma queimadura no canto da boca e disse que tinha machucado ao dar a primeira mordida num pastel.

Toda vez que lavo os cabelos, eu me lembro da Luciane. Quando éramos crianças ela me viu lavar primeiro o corpo e depois os cabelos, e me disse que o que eu fazia não tinha sentido, pois eu deixaria a sujeira dos cabelos escorrer pelo corpo já limpo.

Toda vez que vejo uma foto ou escuto a voz do Wando, eu me lembro da Leticia. Toda vez que ela via uma foto ou escutava a voz do Wando ela gritava e se contorcia como se estivesse sofrendo uma tortura.

Toda vez que escuto Can’t take my eyes off you, eu me lembro da Luciana. O pai dela tinha acabado de chegar dos Estados Unidos e traduziu a música para ela, que resolveu escrever toda a tradução na lousa.

Toda vez que tomo sorvete, eu me lembro do meu avô. Toda vez que alguém lhe oferecia sorvete ele dizia não, obrigado. Sorvete esfria a cabeça.

Toda vez que acaba a energia, eu me lembro da Leticia e da Ligia. Uma noite acabou a energia na casa delas, enquanto pintávamos uns desenhos com canetinha, e na manhã seguinte vi que minha árvore tinha folhas roxas.

Toda vez que vejo um doberman, eu me lembro da Mariana. Ela me disse que tinha um, mas quando o vi no quintal notei que era um vira-lata, e passamos a tarde toda falando da beleza do doberman dela.

Toda vez que escuto o nome Zé Maria, eu me lembro de um menino de cujo nome não me lembro. Ele era amigo do meu vizinho e tomávamos lanche juntos quando algum adulto falou do Zé Maria, jogador do Corínthians. O menino cuspiu todo o leite e quase caiu no chão de tanto rir.


Toda vez que vejo grão de bico, eu me lembro dos croatas em São Paulo. Mas aí a história é muito longa.

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