No sonho dessa noite eu zelava pelos meus filhos enquanto
eles, cada um carregando um paralelepípedo nas mãos, atravessavam uma praça
repleta de pessoas segurando guarda-chuvas pretos abertos. Não chovia. Eu olhava de cima, talvez da janela de um edifício, talvez
da varanda de uma casa construída na parte mais alta da rua, talvez do céu,
torcendo para que eles driblassem todas as pessoas, até chegarem salvos ao outro lado
da praça, com os paralelepípedos ainda nas mãos. Mas a praça não tinha fim, mesmo
do meu ponto de vista. Era como ver o mar. Então acordei com as costas e os
cabelos úmidos, o coração dilatado atrapalhando a passagem do ar pelos pulmões:
e se eles não conseguirem atravessar a praça? Sentei na cama, ainda escuro, um deles dormia ao meu lado, nem
vi como chegou ali, mas estava, e era bom. As perninhas descobertas ainda com
tanto para caminhar. Senti o cheiro do bafo quente dele, sussurrei um “eu te
amo” na falta de frase mais precisa para aquilo que carrego no peito. E a primeira notícia do dia foi que
uma criança estava morta. Uma criança morreu!, eu queria gritar da janela para
que o mundo parasse. Parem as máquinas, liberem o sol e o silêncio, desabrochem
as flores e soltem os pássaros porque uma criança morreu! Só hoje, só por hoje, tornemos o mundo
mais bonito.
quinta-feira, 31 de março de 2016
terça-feira, 29 de março de 2016
A praça
Ela precisava
atravessar a praça para chegar ao ponto de ônibus, não havia outro caminho.
Poderia rodear a praça, mas fugir dela era impossível. Respirou fundo. Afinal,
o que mais pode fazer uma pessoa quando se depara com o inevitável? Já parou
para pensar se todos os acontecimentos de uma vida fossem evitáveis? Ela não,
não tinha tempo para pensar sobre essas coisas, não há metafísica que resista a
uma pia cheia de louça suja e a uma lista de credores que têm o seu endereço e
número de telefone. Então ela fez o que todo mundo faz: respirou fundo e
atravessou a praça. Mas não assim, “atravessou”. Antes de atravessar, antes de
chegar ao ponto de ônibus, ela parou, sentou no primeiro banco que viu, ao lado
de um senhor que vendia canetas Bic a um real cada, e vomitou. Vomitou o arroz,
o feijão, a carne moída, a alface e o tomate do almoço, vomitou o pão com manteiga
e o café com leite do lanche da tarde, vomitou as duas horas em quatro ônibus,
vomitou um passarinho que se escondia no seu estômago e só depois, depois de se
limpar sozinha sem ajuda de ninguém que passava pela praça, foi. E atravessou.
segunda-feira, 28 de março de 2016
Vinte e oito de março de dois mil e dezesseis
As músicas do Chico, a voz da Bethânia, o vento da Bahia, a
crocância do acarajé, o dançarino do deserto (Ashfin?, Afshin?), pessoas
fugindo de guerras e ditaduras, enquanto uns dormem outros acordam, não tem
gente demais no mundo para pensarmos só em nós mesmos?, tantas línguas que
ainda quero decifrar, a poesia do Helder, the hum, the hum, Dostoiévski e Tolstói, meus filhos
dormindo no quarto ao lado e o sopro de vida quente que me infla quando penso
em tudo que desejo para eles e o monstro gosmento, escamoso, com setecentos e
quinze dentes pontiagudos na boca que me ameaça quando penso que, de todos os
meus desejos para os meus filhos, a realização de nenhum deles depende de mim.
E também fazia calor, e o barulho do ar condicionado, e o edredom que estava
pesado, e os trabalhos que preciso terminar, além dos que preciso começar, e o despertador que poderia não tocar, e a despensa cheia de chocolates, e as
férias que parece que nunca mais terei, e o monstro que dá cria, tudo isso não
me deixou dormir essa noite.
quinta-feira, 24 de março de 2016
Verbo divino
Nós, que almoçamos no mesmo horário de segunda a sexta. Nós,
que saímos viajar com a família nos mesmos dias. Nós, que esperamos o sábado e
o domingo e as férias de trinta dias em trezentos e sessenta e cinco, às vezes
trezentos e sessenta e seis. Nós, que ficamos em fila para comer, para entrar
numa estrada, para ver um filme no cinema, para tomar um sorvete, comprar um
carro, fazer a compra do mês. Nós, que fazemos compra de mês. Nós, que
carregamos nossos nomes e cargos em um crachá. Nós, que idolatramos cargos. Nós, que dormimos com o medo da
demissão. Nós, que esperamos o comando do relógio e do semáforo. Nós, que
olhamos todos os dias o saldo da conta bancária. Nós, que pagamos seguros. Nós,
que procuramos felicidade, e dinheiro. Nós, feito gado, mas fingindo que não.
quarta-feira, 23 de março de 2016
Aprendizado
Eu tinha entre quinze e dezessete anos. A aula era de língua
portuguesa, das poucas que me atraíam. A menina sentada numa das primeiras
carteiras estava quieta, olhando para a apostila certa aberta na página certa,
tudo conforme o professor havia pedido. Tudo perfeito, não fossem os olhos dela
perdidos em algum lugar da sua mente. O professor interrompeu a aula para
exigir dela a atenção devida. Mas eu estou prestando atenção, ela respondeu.
Não está, o professor insistiu. Olha aqui, ela continuou, a apostila aberta na
página certa, e não estou falando com ninguém, estou quieta olhando para a
página. Mas não está atenta, o professor encerrou a discussão e continuou a
aula. Por pouco tempo, já que os olhos da menina continuavam em algum lugar
fora não daquela apostila, mas daquela sala de aula. E ela explicou mais uma
vez que estava quieta, que estava com a apostila aberta na página certa, mas
para ele não era suficiente: você precisa prestar atenção. E voltou à aula, de
novo por pouco tempo. E de novo a mesma discussão: quieta, apostila, página,
atenção. Eu era ela nas aulas de exatas. Ela era eu nas aulas de biológicas. Foi
então que falei, sem nem mesmo levantar a mão: mas, então, professor, como o
senhor acha que vai obrigá-la a prestar atenção? E, claro, tomei um esfrega por
abrir a boca sem que a palavra me fosse dada. E hoje, enquanto estava parada
num trânsito de causar pânico em qualquer lama, perdida nos caminhos que a
mente traça em momentos como esse (ou em
qualquer outro momento), me lembrei dessa discussão entre o professor de língua
portuguesa e a menina da primeira fila, na qual me meti sem ser
chamada. E então me assustei com a quantidade de anos em que acredito que
ninguém consegue obrigar alguém a aprender.
domingo, 20 de março de 2016
Segunda-feira
Tá bom o feijão?
... Hum-hum.
Vermelho, aquele que você gosta.
... Eu vi.
Por que não falou?
O quê?
Que gostou...
Eu falei.
Só depois que eu perguntei.
Mas eu tinha dado a primeira garfada.
Tem razão, desculpa.
Mas tá bom.
Fazia tempo que você não comia esse feijão?
Fazia.
Lá ela...
Não começa, a gente combinou.
Desculpa, tem razão, a gente combinou.
Tem alguma coisa pra beber?
Comprei Coca zero!
Não tomo mais Coca.
Coca zero?
Não tomo mais refrigerante.
Não toma mais refrigerante, você?
É.
Desde...
Não começa.
Desculpa, tem razão, a gente combinou.
Tem suco?
Suco?
É, suco.
Mas o que ela...
Rosana, se não tem suco serve água, Rosana. Porra, isso não
vai dar certo...
Vai dar, Roberto, calma, é tudo novo, não é bem isso, vai dar
certo.
Eu não tomo mais refrigerante. Pronto. É só isso. Pessoas
param de fumar, começam a fazer ginástica, param de comer açúcar, sei lá, eu
resolvi não tomar mais refrigerante.
Tá bom... Que bom, isso é bom, pode até servir de exemplo pras
crianças, né? Viu como o Júnior tá gordo? E a Vitória tá com cárie, levei ela
no dentista faz uns dois meses, tava com cárie a menina, o dentista disse que é
de tanto comer doce, ela chupa bala o dia inteiro, e não venço comprar Coca e
guaraná...
Então a gente para de tomar, que bom.
É, é bom.
Vou pegar água.
Eu pego pra você.
Gelada, por favor.
Gelada?
Porra, Rosana, não me traz bebida nenhuma. Não vou beber
mais, incha o estômago.
Calma, Roberto, também não posso falar nada que você já acha
ruim. Não tô falando nada da...
Tá, Rosana, desculpa, traz a Coca, de vez em quando não faz
mal. Traz a água sem gelo se achar melhor, não me importo...
O quê, Roberto?
Nada, traz a Coca.
Coca com gelo, né?
Pode ser.
Do jeito que você gosta.
Isso, pode ser.
[ ]
Ô, Rosana,
você vai quebrar as forminhas com essa bateção!
Que nada,
Roberto! Comprei umas forminhas de silicone, já viu?
Já.
Já???
De silicone?
Não, não vi, fiz confusão.
Toma sua Coca com gelo.
Obrigado.
Quer mais feijão?
Não.
Você gostava tanto desse feijão, comia duas pratadas.
Ainda gosto, Rosana, só não como mais dois pratos. Um mata a
fome, né?
Deve matar. E carne, quer mais carne?
Não... Mas tava boa.
Não quer mais, então? Um pedacinho?
Não, como mais tarde.
Arroz? Mais ovo, salada? Fiz pudim.
Mais tarde eu como.
Mais tarde?
É, Rosana, à noite, na janta, tava boa a comida.
Com as crianças, né?
É.
Elas vão ficar felizes... Eu também.
Que bom.
E você?
Eu o quê?
Vai ficar feliz?
Vou, Rosana, vou sim...
É que...
É que a gente combinou, Rosana.
Eu sei. Tá tudo bem.
Vou dar uma saída, rodar pelo bairro, ver se alguém sabe de
emprego por aqui.
Tá bom. Vai com Deus.
Tchau.
Tchau.
[ ]
Roberto!
Oi.
Então a gente te espera pra janta, tá?
Tá.
Sem pressa, faz tuas coisas tranquilo.
Tá bom.
A gente te espera.
Tá bom.
[batida de porta]
Eu te espero, Roberto.
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