Comi um
guarda-chuva na hora do almoço. Dobrei-o em tantos pedacinhos quanto me foi
possível dobrá-lo. Dobrei-o, não: quebrei-o. Devo ser honesta, apesar de não
saber por que devo. O guarda-chuva que almocei foi transformado em vários
guarda-chuvinhas em pedaços. Não joguei sal, nem azeite. Puro como os cafés que
tomo no meio da tarde e que hoje não tomei. É que os pedaços estão se juntando
e parece-me que o guarda-chuva inteiro, orgulhosamente reconstituído, abriu
dentro de mim.
segunda-feira, 30 de maio de 2016
terça-feira, 10 de maio de 2016
Ela
Se ele tivesse
olhado, ah, se ele tivesse olhado, ao acordar ou ao adormecer, ele teria sabido
que aquelas pulseiras não lhe serviriam, veja meus pulsos, tão finos, que
aqueles anéis não lhe caberiam, que aquela saia não era de seu agrado, ela não
usa saias rodadas, nunca usou, alguma vez você me viu de saia rodada, com esse
quadril?, mas ela não perguntou, só agradeceu, ela poderia trocar depois,
repassar para uma amiga, fazer uma fogueira com todas as outras roupas que não
lhe caem bem, deixaria de fora só os pijamas e os sapatos de salto, se ele
tivesse olhado não teria comprado aquelas sapatilhas para ela, presente de quê,
mesmo?, alguma vez você já me viu de sapatilhas?, mas ela não perguntou, só
agradeceu e deixou-as escondidas no fundo do armário, onde ela gostaria de
ficar por alguns meses, doze, talvez, até que tudo passasse, como se tudo um
dia passasse, menina mimada, era o que ela ouvia nesses dias, falta de problema
para resolver, falta de roupa suja para lavar, mesmo que ela nunca tivesse
ficado, nem mesmo por uma hora, no fundo do armário com as sapatilhas, mesmo
que ela levantasse todas as manhãs e se maquiasse como se tivesse esperança, se
tivesse sido bailarina, se tivesse sido cantora, se tivesse sido uma executiva
daquelas bem poderosas, se tivesse sido freira, se tivesse crescido a ponto de
saber o que quer da vida, ou o que a vida quer dela, quem quer o quê de quem,
afinal?, se ele tivesse olhado não teria ficado surpreso na manhã em que
acordou e viu ao seu lado apenas um graveto, nu.
terça-feira, 3 de maio de 2016
Sete da manhã
Na calçada em
frente ao prédio de quatro andares no centro sujo da cidade, fotos picadas – o
rosto dela, sorrindo, em frente à Torre Eiffel, ainda estava ali, intacto, mas
não, não consegui identificar um pedaço de mão no seu ombro, talvez ele
estivesse tirando a foto, e pensando se haveria momento mais feliz na vida do
que esse, com ela, ela com ele, ali, em Paris, sorrindo para uma foto, em frente
à torre iluminada; CDs quebrados – a palavra momentos escrita num dos pedaços com caneta permanente, enquanto a
vida é escrita a lápis; pétalas de rosa secas misturadas com papéis picados,
muitos, branco com pauta, branco sem pauta, azul claro com pauta, amarelo claro
sem pauta, rosa choque com pauta, laranja sem pauta – e no laranja, um laranja
forte e brilhante, sem desgaste (do tempo, entenda bem), ainda intacta, tanto
quanto o rosto sorrindo em frente à torre, a frase eu te amo.
segunda-feira, 2 de maio de 2016
Puro, por favor
Passei em frente
àquela rede de cafeterias que não sei mesmo se é de cafeteria, só sei da rede.
Não de proteção. Quer dizer, talvez, a depender de quem entra e como entra.
Ontem fui Laura. Precisava ser Laura em algum lugar. Coloquei o copo sobre a
mesa e levei um susto. Ah, Laura, hoje, sou eu. Além do atendente, ninguém mais
me chamou de Laura, mas foi um começo e me senti livre para pedir um red velvet, veja só. Hoje pela manhã fui
Heloísa. Heloísa pediu um expresso e pão de queijo, não come bolos durante a
semana e não abre exceções. Além do atendente, a moça do caixa gritou Heloísa, seu troco! Voltei. E sorri. Um
sorriso contido porque Heloísa não é de sorrir assim, escancarada por aí. Voltei
à tarde, mesmo sem sede, mesmo sem fome. Vivien. Vivien pede uma mistura de
café, leite, baunilha, canela, chocolate e coloca adoçante. Um pacotinho de
adoçante em pó que um dia vai virar um câncer. E Vivien come um salgado de
massa integral com peito de peru porque Vivien não come presunto. Vivien, com “e”, moço. Vi-vi-en. Guarde esse nome. Amanhã,
amanhã não sei. Luiza, talvez. E Luiza talvez goste de chantilly, mas ainda não
sei.
domingo, 1 de maio de 2016
Se alguém por mim perguntar
Não tenho lugar. Na sala, uma tevê ligada em ruídos. No
quarto, uma meia-pessoa já dorme. Na cozinha, uma pia de louça suja que ninguém
lava. No banheiro, ele vomita. Na varanda, de onde penso em me atirar para uma
cidade que não conheço. Terminar a noite num quarto de hotel com um homem cujo
nome vou esquecer na manhã seguinte. Não me importo, eu mesma vou dizer muito prazer, me chamo Laura. Falarei bom
dia numa língua desconhecida, no primeiro café que avistar pela rua. Pode fazer
frio. Pode fazer calor. A cidade pode ser rica. Pode ser pobre. Feia ou bonita.
Só precisa ter ruas nunca pisadas por mim. O filme ficou pela metade, o livro
ficou pela metade, o almoço ficou pela metade, o xixi ficou pela metade, o sono
ficou pela metade, o banho ficou pela metade porque tudo que faço fica pela
metade. Há sempre uma febre, há sempre uma fome, há sempre uma dor, há sempre
uma sujeira, há sempre uma bagunça, há sempre uma urgência alheia que não me
deixa chegar ao fim de mim. Não suporto shopping
centers, não suporto resorts all
inclusive, não suporto parkings e
sales, preciso ir para onde haja
ainda alguma verdade. Ou autenticidade já bastaria?
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