sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Sexta-feira


E ela desviou das cabeças de peixe na calçada, do cheiro da morte, do mendigo que queimava o braço com café quente, da gorda com rosto bexiguento e cabelo loiro boneca que anunciava a próxima sessão pornô – “casal também pode”, da banda que tocava marchinhas de carnaval, da mãe que apertava a mão da criança a ponto de seus olhinhos encharcarem, do nóia com o rosto escondido e o pau de fora, do crente que lhe disse “Jesus te ama” (que bom, que bom...) e da morena elegante com salto agulha e polainas douradas. Fazia frio nessa manhã.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Primavera-verão-outono-inverno


Café quente. E forte. O jornal aberto sobre a mesa da sala. O beijo do filho. O afago do marido. A dificuldade em acordar o cérebro. O ponteiro dá mais uma volta. A manhã escorre. O mau humor da filha. O pão de ontem. A falta do leite. A chave girando na porta. O “bom dia” no ar. As paredes muito brancas. A chuva que não cai. As gérberas murcharam. Suportam pouco tempo o abafamento.  

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Dia das nuvens


Então no dia vinte e um de setembro saíamos todos, em fila indiana puxada pelas professoras, a caminhar pelas ruas ao redor da escola para observar as árvores. Podíamos tocá-las para sentir a textura do caule e das folhas. Poucas tinham flores. Só me lembro bem de uma com pálidas florzinhas rosas. Não sei o nome dessa árvore, mas é bastante comum vê-la por aí. Ou era. Seja qual for, a palidez das flores nunca me atraiu. Prefiro até hoje as primaveras de flores quase roxas. Desses passeios, lembro-me bem de caminhar com o olhar para as nuvens, até que um dia enfiei a cara num tronco, um dos maiores por ali. Doeu. Não consigo me lembrar se algum colega viu.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Receita azul


Rivotril, Trileptal, Seroquel, Lexapro, Prozac, Cymbalta, Anafranil, Cipramil, Tryptanol, Benepax, Alentus, Neurim, Oleptal, Frontal, Lexotan, Lorax, Valium, Diazepam, Dormonid, Stilnox, Brozepax. Ela decidiu escolher laranjas na feira.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Ela é bonita demais


Os pés descalços dançavam no meio da sala. A janela mostrava uma manhã ensolarada. Ela dançava e sorria. Rodopiou com os cabelos compridos despenteados. Havia escovado os dentes e dançava. Rodopiou mais uma vez como se fosse desmaiar. Eu digo e ela não acredita. A calcinha de algodão revelada por debaixo da camiseta levantada pelos braços erguidos. Ela é bonita, bonita. Ela não pensava no calor e na pia com louça suja. Dançava com os olhos fechados e sorria. Mas faz tanta diferença quando ela dança. Dançou, dançou, dançou...até a música acabar.

- Ufa, o marido disparou do quarto.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Era uma vez


Pobres príncipes. Não podem mais ficar pelados em quartos de hotel sem que apareçam com as genitálias quadriculadas nas revistas e jornais. As modelos e atrizes também não, mas nesse caso as bundas e os peitos imperdoavelmente caídos aparecem em detalhes. Ninguém mais vive feliz para sempre. Mas naquela manhã de primavera com temperatura de verão, o que a incomodou mesmo foi o relógio da igreja parado nas doze horas.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Descobertos


E o menino, trôpego ao tentar acompanhar os passos da mãe que o levava pelas mãos, não conseguiu contemplar os maiores peitos que já tinha visto, ao vivo, nas revistas ou na tevê. Eles tentavam escapar do corpete rosa que parecia sufocar a garota encostada no muro da igreja. Péra, mãe. A garota sorriu, o menino quase desatarraxou a cabeça do pescoço. Só voltou o olhar para sua frente quando tropeçou na senhora maltrapilha sentada na outra esquina do quarteirão. Ela esticou as mãos inchadas, o menino não sabia que cascos esverdeados podiam nascer no lugar das unhas. Péra, mãe. Anda, meu filho, anda.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Monólogos do amor



- Vamos pra piscina?

- Ah, não.

- Por quê?

- Tô com preguiça de por biquíni.

- Mas você é linda.

 

*****

- Está com fome?

- Não.

- Quer pedir uma pizza?

- Não.

- Você não me ama mais?

 

*****

- Queria ser uma dessas pessoas que abre a geladeira e inventa um jantar em meia hora.

- Eu também.

- Também queria ser assim?

- Não. Queria que você fosse assim.

 


 

domingo, 9 de setembro de 2012

Donos de casa


E quando, pela quinta vez naquele domingo, ele disse para ela que iria lavar a louça acumulada em três dias e nove refeições, ela quebrou todos os copos, todas as travessas e todos os pratos sujos.

- Pronto. Agora você só precisar lavar os talheres e as panelas.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Recortes


A tampa do Yakult furada com garfo só para ver a cara dos meus irmãos com seus potinhos vazios enquanto o meu ainda estava cheio. A professora pediu um cartaz sobre o acidente em Chernobyl e o terremoto no México. Vovô não viu, já estava morto. Antes dele, eu só tinha enterrado o Pitoco. Terça e quinta eram dias de dormir mais tarde. Papai tinha aula de inglês. Ele se emocionava com as Diretas Já. Mamãe chorou quando morreu o Tancredo. E quando atiraram no Papa. Eu chorava porque queria levar Ana Maria para o lanche. Mamãe nunca deixou. Mas aos domingos nos levavam ao Mc Donald´s. Para o meu pai os lanches tinham sabor de isopor. Ele me deixou de castigo quando fiquei de recuperação em Matemática. E proibiu minha tentativa de namoro aos doze anos. Demorou, mas descobri que ele mentiu quando me disse que era o Super Homem.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Fácil é derreter coração de mãe


Ai ninê ai ninê ai ninê ai ninê ai ninê.

...

Ai ninê ai ninê ai ninê ai ninê ai ninê.

Cinco horas de um novo dia. Mesmergulhada no sono, ouço meu despertador balbuciar no berço. Sem função snooze. Choramingo dele e choramingo meu se misturam. Ninê quer colo mamãe quer nanar. Ninê consegue o que quer. Mamãe não.

Com meu bebê de olhostagarelando dentro dos meus braços, sou tomada pela insana quereção das mães e sinto meu sono indo e desindo indo e desindo indo e desindo até que iu. E eu riu.

Na fraldinha sinto uma explosivação. O dançarico frenético do corpinho é minha ginástica matinal. Segura um pé depois um braço agora o outro. Abre a fralda vira pra esquerda desvira pra direita pega a fralda. Senta levanta deita descruza a perna abaixa o bumbum,cuidado com a cabeça pega a chupeta. Trocar um polvo deve ser mais fácil. Vamos lá. Um! Dois! Três! Mais uma vez: vira pra direita desvira pra esquerda. Olha o macaquinho pega o ursinho abra a pomada limpa o bumbum agarra as perninhas. Rezo. Preciso de paciência. Sorri: sorrio.