Na sala da nossa
casa tinha uma mesa de centro redonda. Meu pai tinha uma vitrola e minha mãe um
rabinho de cavalo. Rabinho porque o cabelo dela, desde que eu a conheci, era
fino e não muito comprido, de forma que sempre que ela o prendia num rabo de
cavalo ficava um rabinho e não um rabo ou um rabão. Nosso pai viajava muito e
ficávamos só com nossa mãe, quando ela não trazia o pai dela para nos fazer
companhia (hoje, entendo, quando ela não trazia o pai dela para cuidar dela
para ela poder cuidar da gente). Então gostávamos de colocar um disco para
tocar na vitrola, do Kleiton e Kledir, para ouvir Maria Fumaça. A música
começava devagar (Essa Maria Fumaça é devagar quase parada) e nós três – eu,
meu irmão três anos mais novo que eu, minha irmã dois anos mais nova que meu
irmão – começávamos a correr em volta da mesa de centro redonda. O ritmo da
música começava a acelerar (oh seu foguista bota fogo na fogueira) e nós
acelerávamos junto, e nossa mãe entrava na corrida, atrás dos três filhos, os
três filhos atrás da mãe, nós quatro uma maria fumaça completa, as oito pernas cada
vez mais aceleradas (e dá-lhe apito e manivela passa sebo nas canelas), as
risadas cada vez mais altas, não podíamos perder tempo, tínhamos que dar o
nosso máximo (se por acaso eu não casar alguém vai ter que indenizar), e de
tudo o que havia ali, naquela casa, naquela sala, naquele momento, em volta daquela
mesa, o que eu mais gostava de ver era o rabinho de cavalo da minha mãe voando
enquanto ela ria e corria em volta da mesa como um de nós três.
quinta-feira, 30 de julho de 2015
segunda-feira, 27 de julho de 2015
Technicolor
Se eu pudesse me sentar para chorar num canto escuro, no
fundo de um cinema esquecido no centro da cidade com um filme mudo em projeção,
preto e branco como as cores que não enxergo. Mais. O sal das lágrimas; nada de
pipoca. Se eu pudesse me sentar para chorar no fundo desse cinema porque não
posso ir até a Croácia. Porque a Iugoslávia não existe mais. Tenho o sangue
ralo, as raízes frouxas, muito concreto sob os pés. Se eu pudesse chorar não só
pela guerra que existe em mim, os buracos sem restauro deixados pelo meu corpo,
se eu pudesse me sentar sobre eles para chorar. Se eu pudesse ocupar a casa que
não me pertence e que não sei nem mesmo onde fica. Não sei como chegar do outro
lado do oceano. Todo o oceano que preciso chorar no fundo escuro desse cinema
esquecido no centro da cidade com um filme mudo em projeção. Em preto. E
branco.
quinta-feira, 23 de julho de 2015
O jogo
Hoje eu devia
ter acordado, escovado os dentes, tirado o pijama, vestido a roupa de ontem
jogada ao pé da cama, amarrado o cabelo com um elástico gasto, tomado uma
xícara de café preto sem açúcar e saído pra rua pra jogar no bicho. Em que
bicho a gente aposta, meu senhor, quando sonha que perdeu os dentes? E se esse
mesmo sonho aparece duas vezes em menos de uma semana? Tem urubu aí, meu
senhor? Quero apostar no urubu que está me espreitando nas madrugadas, me dê aí
um urubu, não me venha com o pavão, não vê que é bonito? Então me dê a cobra
que quero enganar quem quer me matar, quero enganar quem confia em mim, quero
enganar quem me quer bem, não quero mais acordar com dores de cabeça às três da
manhã, sempre as três horas de uma manhã sem sol, quero dinheiro fácil pra
encher meu armário de bolsas e sapatos, quero rir de quem acredita em mim, e
rir alto, e rir olhando nos olhos, seus trouxas!, e rir feito bruxa, tem sapo
aí, meu senhor, ou morcego? E depois eu devia ter tomado um litro de pinga pra
ficar caída numa calçada qualquer, ainda rindo. Vai, meu senhor, me dê aí o que
o senhor tem de mais feio, mesmo que seja o peru.
terça-feira, 21 de julho de 2015
A loucura
Por quanto tempo uma pessoa precisa ser chamada de louca até
ser? Por quanto tempo uma pessoa precisa ser chamada de louca até ser? Por
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uma pessoa precisa ser chamada de louca até ser? Por quanto tempo uma pessoa
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Proqauantotremoumaesosapsorikersnrjsbnashabashggashshjdsfhjdsfhjkdshkjdsfhjdskhudfsgiudfshiuefshuig?
Por uanti tempo uma pessoa precisa
ser chamda de louca até se? Por quaNTI TEMPO UMA PESSOA PRECISA SER CMAHAXDA DE
LOCUAR SR? POR QUANT TEMPO UME PESSOA PREISA SER CHAMADA DE LOUCAR AT;E SE
segunda-feira, 20 de julho de 2015
Bem-feito
Ela acordou e estava presa na cama por cinco pedras, cada uma
o dobro do seu tamanho: uma no pescoço, uma em cada mão e uma em cada
tornozelo. Ouviu o espremedor de laranjas da cozinha, em breve ele deveria
entrar no quarto com o suco fresco na bandeja; faz bem, amor, tomar em até dez
minutos; e mais um pão quente com manteiga, que ela não gosta, mas que há
muitos anos desistiu de dizer. Nem por isso aprendeu a gostar. As pedras foram
colocadas pouco a pouco, pedras pequenas substituídas por médias e depois por grandes
e depois gigantes, ela tinha mais de um metro e setenta e cinco, no começo só
em uma das mãos, depois nas duas, e agora assim, inteira. E lembrou-se da mãe
dizendo, ela ainda menina: só fazem com a gente o que gente deixa, minha filha.
quarta-feira, 15 de julho de 2015
Desgraçadas
Porque a cada
criança suja e desgrenhada que vejo na calçada ou na rua, no colo da mãe, no
colo na avó, no colo do irmão mais velho, sem colo nenhum, com pacotes de
balas, com panos de prato, com as mãos em concha, com lábios de fome e cor de
abandono eu tomo um murro no estômago. E com esse murro no estômago nada faço,
a não ser sentir a dor. Não compro as balas porque quantas balas eu preciso
comprar? Não roubo a criança e digo para a mãe “vou levar e vou cuidar” porque
não roubo crianças de suas mães, por mais que batam e xinguem e abusem, e
porque não teria onde colocar todas as crianças roubadas que eu não roubarei
mesmo. Não estendo a mão para a mãe e digo “venham comigo” porque estou com
pressa apesar de não saber para onde ir com ou sem a mãe e seus filhos. Não
faço nada porque sou uma covarde que só sabe sentir a dor e porque talvez eu
seja só mais uma mãe sentada na calçada com os filhos no colo sem saber a quem
pedir um olhai por nós.
sábado, 11 de julho de 2015
Recado
O que eu queria dizer, o que eu quero dizer, o que eu
queria-quero-não-sei-mais dizer, o que eu quero dizer, e não sei como, não sei
como fazê-lo sem raiva, sem tristeza, sem frustração, sem amor, sem saudade,
sem tesão, sem mágoa, sem ternura, sem pena, como chamamos tudo isso junto?, o
que eu quero dizer sem sentir nada, dizer só dizendo, do fundo de um buraco
cavado diariamente em mim ao longo de vinte anos com uma colher de chá, do
fundo desse buraco onde só sou, é que somos covardes.
sexta-feira, 10 de julho de 2015
Lealdade
Não prometo começar o regime na segunda.
Não prometo não gritar.
Não prometo (mais) ser fiel. Talvez leal, só para poder
contar a traição.
Não prometo fazer ginástica todos os dias. Nem todas as
semanas.
Não prometo aprender a cozinhar. Nem a rezar.
Não prometo acordar antes das oito. Nem a dormir antes da
meia-noite.
Não prometo parar de comer carne, enlatados, gordura trans,
conservantes, adoçantes, açúcar refinado, corantes e frituras.
Não prometo não beber.
Não prometo parar de fumar.
Não prometo não matar.
Não prometo tentar ser uma pessoa melhor todos os dias.
Talvez uma vez por ano, no Natal.
Não prometo ajudar.
Não prometo ler um livro por mês.
Não prometo trocar as lâmpadas queimadas até semana que vem.
Não prometo consertar o buraco do ar condicionado. Nem chamar
alguém que possa fazê-lo.
Não prometo combater a celulite.
Não prometo publicar um livro. Nem plantar uma árvore. Nem
ter filhos. Muito menos prometo ter filhos de parto normal.
Não prometo pensar em você.
Acredite: você me ensinou a
pensar só em mim. E talvez essa tenha sido a última lição que prometi aprender.
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