quinta-feira, 30 de julho de 2015

Maria Fumaça

Na sala da nossa casa tinha uma mesa de centro redonda. Meu pai tinha uma vitrola e minha mãe um rabinho de cavalo. Rabinho porque o cabelo dela, desde que eu a conheci, era fino e não muito comprido, de forma que sempre que ela o prendia num rabo de cavalo ficava um rabinho e não um rabo ou um rabão. Nosso pai viajava muito e ficávamos só com nossa mãe, quando ela não trazia o pai dela para nos fazer companhia (hoje, entendo, quando ela não trazia o pai dela para cuidar dela para ela poder cuidar da gente). Então gostávamos de colocar um disco para tocar na vitrola, do Kleiton e Kledir, para ouvir Maria Fumaça. A música começava devagar (Essa Maria Fumaça é devagar quase parada) e nós três – eu, meu irmão três anos mais novo que eu, minha irmã dois anos mais nova que meu irmão – começávamos a correr em volta da mesa de centro redonda. O ritmo da música começava a acelerar (oh seu foguista bota fogo na fogueira) e nós acelerávamos junto, e nossa mãe entrava na corrida, atrás dos três filhos, os três filhos atrás da mãe, nós quatro uma maria fumaça completa, as oito pernas cada vez mais aceleradas (e dá-lhe apito e manivela passa sebo nas canelas), as risadas cada vez mais altas, não podíamos perder tempo, tínhamos que dar o nosso máximo (se por acaso eu não casar alguém vai ter que indenizar), e de tudo o que havia ali, naquela casa, naquela sala, naquele momento, em volta daquela mesa, o que eu mais gostava de ver era o rabinho de cavalo da minha mãe voando enquanto ela ria e corria em volta da mesa como um de nós três.


segunda-feira, 27 de julho de 2015

Technicolor


Se eu pudesse me sentar para chorar num canto escuro, no fundo de um cinema esquecido no centro da cidade com um filme mudo em projeção, preto e branco como as cores que não enxergo. Mais. O sal das lágrimas; nada de pipoca. Se eu pudesse me sentar para chorar no fundo desse cinema porque não posso ir até a Croácia. Porque a Iugoslávia não existe mais. Tenho o sangue ralo, as raízes frouxas, muito concreto sob os pés. Se eu pudesse chorar não só pela guerra que existe em mim, os buracos sem restauro deixados pelo meu corpo, se eu pudesse me sentar sobre eles para chorar. Se eu pudesse ocupar a casa que não me pertence e que não sei nem mesmo onde fica. Não sei como chegar do outro lado do oceano. Todo o oceano que preciso chorar no fundo escuro desse cinema esquecido no centro da cidade com um filme mudo em projeção. Em preto. E branco.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

O jogo

Hoje eu devia ter acordado, escovado os dentes, tirado o pijama, vestido a roupa de ontem jogada ao pé da cama, amarrado o cabelo com um elástico gasto, tomado uma xícara de café preto sem açúcar e saído pra rua pra jogar no bicho. Em que bicho a gente aposta, meu senhor, quando sonha que perdeu os dentes? E se esse mesmo sonho aparece duas vezes em menos de uma semana? Tem urubu aí, meu senhor? Quero apostar no urubu que está me espreitando nas madrugadas, me dê aí um urubu, não me venha com o pavão, não vê que é bonito? Então me dê a cobra que quero enganar quem quer me matar, quero enganar quem confia em mim, quero enganar quem me quer bem, não quero mais acordar com dores de cabeça às três da manhã, sempre as três horas de uma manhã sem sol, quero dinheiro fácil pra encher meu armário de bolsas e sapatos, quero rir de quem acredita em mim, e rir alto, e rir olhando nos olhos, seus trouxas!, e rir feito bruxa, tem sapo aí, meu senhor, ou morcego? E depois eu devia ter tomado um litro de pinga pra ficar caída numa calçada qualquer, ainda rindo. Vai, meu senhor, me dê aí o que o senhor tem de mais feio, mesmo que seja o peru. 

terça-feira, 21 de julho de 2015

A loucura


Por quanto tempo uma pessoa precisa ser chamada de louca até ser? Por quanto tempo uma pessoa precisa ser chamada de louca até ser? Por quanto tempo uma pessoa precisa ser chamada de louca até ser? Por quanto tempo uma pessoa precisa ser chamada de louca até ser? Por quanto tempo uma pessoa precisa ser chamada de louca até ser? Por quanto tempo uma pessoa precisa ser chamada de louca até ser? Por quanto tempo uma pessoa precisa ser chamada de louca até ser? Por quanto tepo uma prssoa precisa ser chamada de louca até ser? Por quqnaot tempo uma pessoa preciaa ser chamada de louca até ser? Por quanrto tempo uma pessoa precisa swer chamada de louca até ?a preoquanto temp umapeossoa preciaa ser camada de louca até set? Porwquantotempouamapessoa peciasercmahada delouca até ser? Porquangto tempo uma esoaia perca dwr chamada de locaua até swr? Prqoantotytempiuamapeorwssoaservchamadadeplocauaréser? porauaNTOGTENXOCN? Proquantnyo tenpi umapessoapreciaserchamadadeloucaté ser? Proqauantotremoumaesosapsorikersnrjsbnashabashggashshjdsfhjdsfhjkdshkjdsfhjdskhudfsgiudfshiuefshuig? Por       uanti tempo uma pessoa precisa ser chamda de louca até se? Por quaNTI TEMPO UMA PESSOA PRECISA SER CMAHAXDA DE LOCUAR SR? POR QUANT TEMPO UME PESSOA PREISA SER CHAMADA DE LOUCAR AT;E SE

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Bem-feito


Ela acordou e estava presa na cama por cinco pedras, cada uma o dobro do seu tamanho: uma no pescoço, uma em cada mão e uma em cada tornozelo.  Ouviu o espremedor  de laranjas da cozinha, em breve ele deveria entrar no quarto com o suco fresco na bandeja; faz bem, amor, tomar em até dez minutos; e mais um pão quente com manteiga, que ela não gosta, mas que há muitos anos desistiu de dizer. Nem por isso aprendeu a gostar. As pedras foram colocadas pouco a pouco, pedras pequenas substituídas por médias e depois por grandes e depois gigantes, ela tinha mais de um metro e setenta e cinco, no começo só em uma das mãos, depois nas duas, e agora assim, inteira. E lembrou-se da mãe dizendo, ela ainda menina: só fazem com a gente o que gente deixa, minha filha.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Desgraçadas

Porque a cada criança suja e desgrenhada que vejo na calçada ou na rua, no colo da mãe, no colo na avó, no colo do irmão mais velho, sem colo nenhum, com pacotes de balas, com panos de prato, com as mãos em concha, com lábios de fome e cor de abandono eu tomo um murro no estômago. E com esse murro no estômago nada faço, a não ser sentir a dor. Não compro as balas porque quantas balas eu preciso comprar? Não roubo a criança e digo para a mãe “vou levar e vou cuidar” porque não roubo crianças de suas mães, por mais que batam e xinguem e abusem, e porque não teria onde colocar todas as crianças roubadas que eu não roubarei mesmo. Não estendo a mão para a mãe e digo “venham comigo” porque estou com pressa apesar de não saber para onde ir com ou sem a mãe e seus filhos. Não faço nada porque sou uma covarde que só sabe sentir a dor e porque talvez eu seja só mais uma mãe sentada na calçada com os filhos no colo sem saber a quem pedir um olhai por nós. 

sábado, 11 de julho de 2015

Recado


O que eu queria dizer, o que eu quero dizer, o que eu queria-quero-não-sei-mais dizer, o que eu quero dizer, e não sei como, não sei como fazê-lo sem raiva, sem tristeza, sem frustração, sem amor, sem saudade, sem tesão, sem mágoa, sem ternura, sem pena, como chamamos tudo isso junto?, o que eu quero dizer sem sentir nada, dizer só dizendo, do fundo de um buraco cavado diariamente em mim ao longo de vinte anos com uma colher de chá, do fundo desse buraco onde só sou, é que somos covardes.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Lealdade

Não prometo começar o regime na segunda.
Não prometo não gritar.
Não prometo (mais) ser fiel. Talvez leal, só para poder contar a traição.
Não prometo fazer ginástica todos os dias. Nem todas as semanas.
Não prometo aprender a cozinhar. Nem a rezar.
Não prometo acordar antes das oito. Nem a dormir antes da meia-noite.
Não prometo parar de comer carne, enlatados, gordura trans, conservantes, adoçantes, açúcar refinado, corantes e frituras.
Não prometo não beber.
Não prometo parar de fumar.
Não prometo não matar.
Não prometo tentar ser uma pessoa melhor todos os dias. Talvez uma vez por ano, no Natal.
Não prometo ajudar.
Não prometo ler um livro por mês.
Não prometo trocar as lâmpadas queimadas até semana que vem.
Não prometo consertar o buraco do ar condicionado. Nem chamar alguém que possa fazê-lo.
Não prometo combater a celulite.
Não prometo publicar um livro. Nem plantar uma árvore. Nem ter filhos. Muito menos prometo ter filhos de parto normal.
Não prometo pensar em você. 
Acredite: você me ensinou a pensar só em mim. E talvez essa tenha sido a última lição que prometi aprender.