Um cachorro. Uma casa com quintal onde as paredes fiquem sujas. Marcas da bola chutada pelas crianças. Uma casa com um abacateiro nos
fundos. E uma mangueira. Ou uma mexeriqueira. E uma
piscina onde eu possa mergulhar e ficar mergulhada até não suportar mais o
silêncio. Ou um rio com cachoeira. E talvez dois cachorros. Um casal: Zica e
Cartola. Uma biblioteca, sempre, antes de tudo. A mesinha para o chá. A porta
aberta para os amigos. Férias em Paris, ou Havana, ou Zagreb, ou Salvador, ou
Moscou, ou Piedade mesmo. Mas férias. Dias de quietude. Dias de adivinhar nuvens. Pausa para o café no fim da tarde. Uma mesa cheia de vizinhos. Uma
calçada cheia de vizinhos. Crianças nas ruas. Ruas riscadas de giz. Um relógio
parado. Um banho de mar em plena segunda. Ou terça. Ou quarta. Qualquer dia.
Acarajé e cerveja. Caipirinha em plena segunda. Ou terça. Ou quarta. Um sono de
dez horas. Um cigarro e um bom papo. Sobre cinema. Sobre literatura. Sobre
teatro. Sobre histórias. Sobre dor. Sobre amor. Sobre existir. Sobre não existir.
Risadas. Gargalhadas, daquelas de dor de barriga e pernas amolecidas. Xixi na calça. Uma
esticada na rede. Uma tarde de sexo. Ou duas. Ou três. Ou mais, sempre. Uma
taça de sorvete com farofa. Um gato perto do computador. Nina Simone. Uma infância esticada. Mais três
anos de adolescência. Nenhum boleto. Por uma semana, ao menos.
terça-feira, 11 de agosto de 2015
quinta-feira, 6 de agosto de 2015
Cotidiano
Apesar de, a gente sai da cama. Apesar de, a gente toma
banho. Apesar de, a gente escova os dentes. Apesar de, a gente penteia o
cabelo. Apesar de, a gente se veste. Apesar de, a gente passa batom. Apesar de,
a gente se perfuma. Apesar de, a gente põe uma música. Apesar de, a gente sorri
para o vizinho no elevador. Apesar de, a gente busca as crianças na escola.
Apesar de, a gente paga as contas. Apesar de, a gente come. Apesar de, a gente
toma um copo d’água. Apesar de, a gente vai ao supermercado. Apesar de, a gente
toma um remédio para dor de cabeça. Apesar de, a gente vai ao médico. Apesar
de, a gente abraça as crianças. Apesar de, a gente trepa. Apesar de, a gente
dorme. Apesar de, a gente responde “tudo bem”.
quarta-feira, 5 de agosto de 2015
Cigarros
Ele saiu para comprar cigarros. E ela, uma semana depois,
olhando a cama ainda desarrumada, o travesseiro dele que agora ela usava para
apoiar os joelhos, a marca de cigarro que ele deixou no sofá, aquele buraquinho
bem onde ela gostava de apoiar o braço, as cervejas na geladeira, ela preferia
vinho, as crianças perguntando onde,
quando, por quê, ainda, já, os brinquedos espalhados pela sala, ela não
iria mais pedir para recolherem, nem os brinquedos, nem as meias, nem os
papéis, nem as canetinhas, nem os sapatos, nem as fantasias, nem os documentos, nem sua dignidade, nem sua autoestima, nem as fotos
picotadas pela mais genuína raiva, nada, não recolham nada, e ela, uma semana
depois, olhando os próprios pés, iria sair para comprar o quê?
terça-feira, 4 de agosto de 2015
Nunca para os pés
Estou deitada. Olho para as minhas pernas e vejo as pernas da minha avó. Não
as pernas da minha avó numa fotografia, mas as pernas da minha avó quando ela
já era minha avó. Velha, portanto. O mesmo tom do branco, um branco rosado, um
branco rosado pálido. As mesmas veias aparentes, umas bem azuis outras
esverdeadas. A mesma espessura de coxas, quase um abraço de duas mãos. O mesmo
redondo nos joelhos. As mesmas manchas vermelhas, como uma alergia de nascença.
Não olho para o resto, não por hoje, deixo o nariz e o queixo para amanhã.
Amanhã e depois de amanhã e depois de depois de amanhã até não precisar mais
olhar, até não parar os olhos em nenhum detalhe porque a partir de agora – já –
serei a cada dia mais a minha avó.
segunda-feira, 3 de agosto de 2015
Nós
Eu gosto de dormir com as janelas fechadas. Ele, abertas.
Eu não saio de discussões. Ele, nem entra.
Eu gosto de dormir com o corpo coberto, mesmo no verão. Ele,
descoberto, mesmo no inverno.
Eu gosto de livros. Ele, de televisão.
Eu fumo e bebo. Ele corre maratonas.
Eu durmo tarde. Ele, cedo.
Eu acordo cedo. Ele, tarde.
Eu gosto de asas. Ele, de raízes.
Eu sou mil em um só dia. Ele é um todos os dias.
Eu berro. Ele sussurra.
Eu gosto do miolo do pão. Ele também.
Eu sinto medo, de tudo. Ele não, de nada.
Eu nunca sei. Ele, sempre.
Eu gosto de cães. Ele, de gatos.
Eu gosto de arroz doce. Ele, de canjica.
Eu quero as paredes coloridas. Ele, brancas.
Eu quero o sofá branco. Ele, colorido.
Eu, sempre. Ele, jamais.
Eu, à esquerda. Ele, à direita.
E assim, não sei como, vivemos.
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