Ele pediu o
carro dela emprestado. Ela emprestou. Ele tomou duas multas em uma semana. As
notificações chegaram. Ela ia indicá-lo como o motorista responsável. Mas não
tenho habilitação válida, ele a alertou. O que eu faço?, ela perguntou, se te
indicar ainda tomo mais multas por ter emprestado o carro para quem não podia.
Pare de arranjar problema, foi o conselho dele.
Ela ficou sem
entender e pediu para ele passear com as crianças, no carro dele, de
preferência, mesmo sem habilitação, ela também nunca foi habilitada para
dirigir a educação de dois seres humanos e eles estavam ali, em torno dela,
monopolizando a televisão, ela nunca mais viu um filme inteiro, nem mesmo no
computador, pois é interrompida a cada dez minutos até desistir de vez, “foda-se,
vamos ver Naruto” porque também não aguenta mais lutar, sozinha, contra três
seres do sexo masculino para os quais o controle remoto é uma espécie de pau,
mais importante que qualquer outro objeto, natural ou artificial, na face da
Terra. E quem é que gosta tanto assim de pau, anyway? Mas eles foram, ela nem
quis saber para onde, nem se foram de pijama, com os dentes sujos e os cabelos
desgrenhados. O mundo vai continuar girando mesmo. E ela vai morrer e ninguém
vai se lembrar dela mesmo.
Então nasceu o silêncio
no apartamento. Ela tomou banho ouvindo música sem que qualquer ser masculino
reclamasse do volume (e da música, claro; afinal, quem quer ouvir Nina
Simone?), abriu uma garrafa de vinho, eram três da tarde, e daí?, deitou no
sofá e colocou um filme, um clássico, em preto e branco, daqueles que os homens
daquela casa reclamam. E quando a primeira imagem apareceu, a gata subiu em cima
dela, não nas pernas, não na barriga, não nos braços. Na cabeça, no rosto, nos
olhos. Ela colocava a gata no tapete e a bicha voltava a subir. Gata-desgraçada
que não a deixava ver um filme, gata-alinhada-com-seus-filhos-dominadores-da-programação-da-televisão.
Então fez o que faz de melhor desde que se conhece por gente: chorou. E a gata
entendeu (a gata entendeu!) e aninhou-se aos pés dela. E ela conseguiu ver o
filme, sentindo a alegria de uma pessoa que se sente dona do próprio nariz.
Ele e os filhos
voltaram quando ela até se perguntava o que fazer naquela casa silenciosa, o
que, claro, foi resolvido (como sempre, em qualquer lugar, em qualquer hora)
com um livro. Dez páginas e eles estavam de volta. Queriam ver televisão.
Precisa mudar o idioma do áudio, ela esclareceu, deixei no inglês porque vi um
filme...eu vi um filme!
Ai, o menor irritou-se: por que você arranja tanto problema?