domingo, 30 de março de 2014

Bodas


Decidiu que ela própria prepararia o jantar de comemoração dos quarenta anos de casados. Coq au vin, para lembrar a lua de mel em Paris, ela disse para ele. Ele deu a resposta que ela sabia que ele daria: ótimo. A mesma resposta que ele daria se ela tivesse dito que pediria algumas pizzas, algo bem simples, para não gastarem muito e ainda lembrarem a primeira vez em que ele a chamou para comer fora. Decidiram, ou melhor, ela sugeriu e ele disse ótimo, que chamariam apenas a prima dele, que se tornou a melhor amiga dela, acompanhada do segundo marido, não tão agradável quanto o primeiro, mas paixão é paixão, eles entenderam e aceitaram; a irmã dela com o marido, do qual ela gostava mais do que ele – fala pouco, não bebe nada, sempre observando ... – é, mas nunca deixou faltar nada em casa ... ; a amiga dela, madrinha de casamento deles, sem acompanhante desde que ficou viúva – coitada, marido como o dela ninguém acha mais, apaixonado até o último suspiro, nunca a traiu, sabia?; e o irmão dele com a terceira mulher, quer dizer, segunda no papel, boazinha, melhor do que a segunda, se não contarem os papéis. Decidiram, ou melhor, ela sugeriu e ele disse ótimo, que não chamariam as filhas, já casadas e com filhos pequenos, tão mais difícil para sair à noite. E a noite não seria para isso, não é? Decidiram, ou melhor, ela sugeriu e ele disse ótimo, que comemorariam com as filhas, genros e netos no dia seguinte, no almoço. Decidiu que ela própria prepararia a lasagna, sem presunto, como ele prefere.

sábado, 29 de março de 2014

Todos os medos e uma coragem


Tenho medo de rato, cobra e aranha; viajar de avião e ficar presa dentro de um carro caído numa ribanceira; assalto, sequestro, estupro; ser encontrada morta dentro de um apartamento só quando  estiver fedendo; câncer; comer salsicha envenenada; ficar numa cadeira de rodas, ou cega; envelhecer como meus pais; não envelhecer como meus pais; tomar manga com leite; atravessar a rua fora da faixa; perder o emprego; não ter a casa própria; ficar sem convênio médico; motorzinho de dentista; morrer e não deixar você saber que desde aquele último abraço, há vinte e um anos, cinco meses e dezessete dias, eu penso, diariamente, e se?

quinta-feira, 27 de março de 2014

Nunca

Um dia..., ela pensava parada em frente ao computador enquanto desviava o olhar para a praça do outro lado da janela, onde um mendigo fazia palavras cruzadas, um aposentado ainda de pijama lia o jornal, um homem tentava ganhar dinheiro tocando saxofone, um engraxate trabalhava, uma criança escalava uma estátua que ninguém deve saber de quem é, um gari tomava café, um menino babava depois de uma noite de crack, um dia...

quarta-feira, 26 de março de 2014

Março

Ler é cobrir a cara. E escrever é mostrá-la. 
Alejandro Zambra





Porque é outono e a brisa esfria o rosto. Porque ela usa meias e pode sentir a pele arrepiar. Porque há um pedaço de sol na varanda; uma cadeira; um livro; uma xícara de chá; uma saudade de quando as carnes eram compradas em açougues e as frutas em quitandas e os pães em padarias e o arroz e o feijão em mercearias e as casas tinham roseiras no jardim e uma piscina de plástico no quintal. Porque é outono e há uma varanda e uma brisa gelada, ela se permite fechar os olhos, assim, por alguns minutos, e ver o açougue, a quitanda, a padaria, a mercearia, o jardim, o quintal e ele. Sempre ele.

terça-feira, 18 de março de 2014

Nas janelas da cidade

Enquanto falava ao celular, ela agitava o braço livre. Estava na varanda. Tinha o cabelo curto – raspado nas laterais e na nuca - pintado de um vermelho que lembrava cerejas na época do Natal. A pele muito branca, talvez ainda mais clara por causa da vermelhidão no cabelo. Estava nua: as mamas cheias e moles chegavam até o umbigo perdido numa barriga proeminente; o quadril fino em contraste; a carne do braço gesticulante solta. Ela não me viu. E se tivesse visto, eu sei, teria me ignorado.  

segunda-feira, 17 de março de 2014

Assim...

A vida é ordinária, acontece no sorvete derretido nas mãos de uma criança numa tarde de verão (ou de outono, ou de primavera...por que não de inverno?), no bolo quente com café num final de tarde na casa da sua tia-avó que você não sabe se verá de novo, no banho demorado, no beijo na bochecha (tchau, mãe!), numa piscada de olhos que você não esquecerá porque não entendeu bem o que quis dizer e guardará para si a interpretação do seu agrado porque a vida é ordinária. 

quinta-feira, 13 de março de 2014

Monstrogadas


Madrugada. Ela, mais uma vez, sentada no chão do quarto dos filhos, ouvindo suas respirações; procurando a imagem de outras mulheres abandonadas que lhe pudessem dar o conforto da solidariedade; a filha se mexe na cama, enrosca os pezinhos no lençol, ela levanta para ajudar, mas não foi preciso, a menina é mais esperta que a mãe até dormindo; o chão está frio, ela enrolou o tapete e não o levou para a lavanderia, deve fazer uns três meses, mais um item para a lista das coisas não feitas; tenta afastar a imagem do chefe cobrando metas que mais lhe parecem um ornitorrinco; malditas histórias de princesas, não conta nenhuma para a filha, a menina não pede, é mesmo esperta, prefere as histórias de monstros do irmão mais velho – sim, em monstros podemos acreditar, meus filhos.: um vive dentro de mim, mas essa parte ela nunca contou para as crianças.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Que sapatos usar?

Como é mesmo a frase?... devemos ter cuidado com o que sonhamos?...o perigo está no que sonhamos?; seja como for, entendi agora, na pele, o significado, assustador; conhecer o Papa em breve será sonho riscado da lista, mas confessar-me com ele...era item sem lista; não, não era nem item; não tinha – não tenho – lista para desejos incogitados; seria isso falta de fé?, uma primeira confissão perante o Papa?; seria isso...mas em que língua nos confessamos com o Papa?; como só me pergunto isso agora?; não sou capaz de colocar-me diante de Deus e da Igreja em língua estrangeira...tem tradução simultânea?... ah, que pergunta!; mas faz sentido...sério, em que língua vou me confessar?...fui avisada pelo Padre Arlindo da escolha, chorei, beijei sua mão, disse que depois conversaríamos melhor e fui para o banco...quem vai pagar conta atrasada depois de receber essa notícia?; só me expresso bem em português...bom, o Papa é argentino, deve entender; mas e se com o nervosismo começo com Santo Papa, estoy tan embarazada, e ele me pergunta se sou casada, querendo me parabenizar, e digo que não, ele suspira, não foi isso que quis dizer, Papa, un momentito...até explicar....se até ele soltou um cazzo na benção dominical no Vaticano, o que será de mim?...posso escrever, mandar traduzir e ler a confissão; antes treinar a leitura, claro, pronúncia correta...cazzo é diferente de caso...mas traduzir para qual língua?...que falta de atenção a minha, que preocupação incabível, que falta de merecimento; tanta gente querendo estar no meu lugar e eu preocupada com....aaahhh, por que eu?; eu...tão comum; eu tão pequenininha; eu tão sem graça; eu trabalhadora, cumpridora de deveres, temente, fiel... eu tão mal agradecida, isso sim!; faça-me o favor de ter uma preocupação digna de quem foi uma das escolhidas para se confessar com o Papa; o Papa!; é por aqui que devo começar, então, pela falta de confiança no caminho traçado por Deus para mim, Papa?; Santo Papa?; Vossa Santidade?; Papa Francisco?...isso não vai dar certo será um vexame quero segurar na sua mão apenas e chorar pedir perdão abaixar a cabeça e abrir o coração sem precisar pronunciar qualquer palavra; mas confissão não é uma conversa com Deus, está lembrada?; é sacramento, é assumir a vergonha pelos erros e pecados cometidos perante a Igreja e meus irmãos, é para eles que pedirei perdão pela minha humanidade...por mais que eu tão sofridamente tente, nem sempre sou só amor, só fé, só humildade, só generosidade...la verdad es que tengo miedo, Papa, mucho miedo...

segunda-feira, 10 de março de 2014

Acabou nosso carnaval

O coração se contraía no mesmo ritmo do alaranjar das montanhas. Talvez não fosse só isso. Talvez fosse também o céu que passava do azul para o rosa. Talvez fosse o fim de um dia que nunca mais – nunca mais, que coisa! – voltaria a existir. Ou a música que tocava no carro, how long will I love you?, as long as stars are above you, misturada à risada das crianças e às mãos do marido no volante (ou rolante, como diz o menino mais novo). Quem sabe – quem sabe, afinal? – o menino que andava de skate num parque montado na orla; a mulher que corria atrás do ônibus com um bebê chacoalhando no colo; o vendedor de pipocas por trás da luz do lampião solitário no carrinho; a banca de jornais sendo fechada; tudo findando com o dia, até seu coração virar um nó.