Decidiu que ela própria prepararia o jantar de comemoração
dos quarenta anos de casados. Coq au vin, para lembrar a lua de mel em Paris,
ela disse para ele. Ele deu a resposta que ela sabia que ele daria: ótimo. A
mesma resposta que ele daria se ela tivesse dito que pediria algumas pizzas,
algo bem simples, para não gastarem muito e ainda lembrarem a primeira vez em
que ele a chamou para comer fora. Decidiram, ou melhor, ela sugeriu e ele disse
ótimo, que chamariam apenas a prima dele, que se tornou a melhor amiga dela,
acompanhada do segundo marido, não tão agradável quanto o primeiro, mas paixão
é paixão, eles entenderam e aceitaram; a irmã dela com o marido, do qual ela gostava
mais do que ele – fala pouco, não bebe nada, sempre observando ... – é, mas
nunca deixou faltar nada em casa ... ; a amiga dela, madrinha de casamento
deles, sem acompanhante desde que ficou viúva – coitada, marido como o dela
ninguém acha mais, apaixonado até o último suspiro, nunca a traiu, sabia?; e o
irmão dele com a terceira mulher, quer dizer, segunda no papel, boazinha,
melhor do que a segunda, se não contarem os papéis. Decidiram, ou melhor, ela
sugeriu e ele disse ótimo, que não chamariam as filhas, já casadas e com filhos
pequenos, tão mais difícil para sair à noite. E a noite não seria para isso, não é? Decidiram, ou melhor, ela
sugeriu e ele disse ótimo, que comemorariam com as filhas, genros e netos no
dia seguinte, no almoço. Decidiu que ela própria prepararia a lasagna, sem
presunto, como ele prefere.
domingo, 30 de março de 2014
sábado, 29 de março de 2014
Todos os medos e uma coragem
Tenho medo de rato, cobra e aranha; viajar de avião e ficar
presa dentro de um carro caído numa ribanceira; assalto, sequestro, estupro;
ser encontrada morta dentro de um apartamento só quando estiver fedendo; câncer; comer salsicha
envenenada; ficar numa cadeira de rodas, ou cega; envelhecer como meus pais;
não envelhecer como meus pais; tomar manga com leite; atravessar a rua fora da
faixa; perder o emprego; não ter a casa própria; ficar sem convênio médico; motorzinho de dentista; morrer e não deixar você saber
que desde aquele último abraço, há vinte e um anos, cinco meses e dezessete
dias, eu penso, diariamente, e se?
quinta-feira, 27 de março de 2014
Nunca
Um dia..., ela
pensava parada em frente ao computador enquanto desviava o olhar para a praça
do outro lado da janela, onde um mendigo fazia palavras cruzadas, um aposentado
ainda de pijama lia o jornal, um homem tentava ganhar dinheiro tocando
saxofone, um engraxate trabalhava, uma criança escalava uma estátua que ninguém
deve saber de quem é, um gari tomava café, um menino babava depois de uma noite
de crack, um dia...
quarta-feira, 26 de março de 2014
Março
Ler é cobrir a cara. E escrever é mostrá-la.
Alejandro Zambra
Porque é outono e a brisa esfria o rosto. Porque ela usa
meias e pode sentir a pele arrepiar. Porque há um pedaço de sol na varanda; uma
cadeira; um livro; uma xícara de chá; uma saudade de quando as carnes eram
compradas em açougues e as frutas em quitandas e os pães em padarias e o arroz
e o feijão em mercearias e as casas tinham roseiras no jardim e uma piscina de
plástico no quintal. Porque é outono e há uma varanda e uma brisa gelada, ela
se permite fechar os olhos, assim, por alguns minutos, e ver o açougue, a
quitanda, a padaria, a mercearia, o jardim, o quintal e ele. Sempre ele.
terça-feira, 18 de março de 2014
Nas janelas da cidade
Enquanto falava ao celular, ela
agitava o braço livre. Estava na varanda. Tinha o cabelo curto – raspado nas
laterais e na nuca - pintado de um vermelho que lembrava cerejas na época do
Natal. A pele muito branca, talvez ainda mais clara por causa da vermelhidão no
cabelo. Estava nua: as mamas cheias e moles chegavam até o umbigo perdido numa
barriga proeminente; o quadril fino em contraste; a carne do braço gesticulante solta. Ela não me viu. E se tivesse visto, eu sei, teria me ignorado.
segunda-feira, 17 de março de 2014
Assim...
A vida é
ordinária, acontece no sorvete derretido nas mãos de uma criança numa tarde de
verão (ou de outono, ou de primavera...por que não de inverno?), no bolo quente
com café num final de tarde na casa da sua tia-avó que você não sabe se verá de
novo, no banho demorado, no beijo na bochecha (tchau, mãe!), numa piscada de olhos que você não esquecerá porque
não entendeu bem o que quis dizer e guardará para si a interpretação do seu
agrado porque a vida é ordinária.
quinta-feira, 13 de março de 2014
Monstrogadas
Madrugada. Ela, mais uma vez, sentada no chão do quarto dos
filhos, ouvindo suas respirações; procurando a imagem de outras mulheres
abandonadas que lhe pudessem dar o conforto da solidariedade; a filha se mexe
na cama, enrosca os pezinhos no lençol, ela levanta para ajudar, mas não foi
preciso, a menina é mais esperta que a mãe até dormindo; o chão está frio, ela
enrolou o tapete e não o levou para a lavanderia, deve fazer uns três meses,
mais um item para a lista das coisas não feitas; tenta afastar a imagem do
chefe cobrando metas que mais lhe parecem um ornitorrinco; malditas histórias
de princesas, não conta nenhuma para a filha, a menina não pede, é mesmo
esperta, prefere as histórias de monstros do irmão mais velho – sim, em
monstros podemos acreditar, meus filhos.: um vive dentro de mim, mas essa parte
ela nunca contou para as crianças.
quarta-feira, 12 de março de 2014
Que sapatos usar?
Como é mesmo a frase?... devemos
ter cuidado com o que sonhamos?...o
perigo está no que sonhamos?; seja como for, entendi agora, na pele, o
significado, assustador; conhecer o Papa em breve será sonho riscado da lista, mas
confessar-me com ele...era item sem lista; não, não era nem item; não tinha –
não tenho – lista para desejos incogitados; seria isso falta de fé?, uma
primeira confissão perante o Papa?; seria isso...mas em que língua nos
confessamos com o Papa?; como só me pergunto isso agora?; não sou capaz de
colocar-me diante de Deus e da Igreja em língua estrangeira...tem tradução
simultânea?... ah, que pergunta!; mas faz sentido...sério, em que língua vou me
confessar?...fui avisada pelo Padre Arlindo da escolha, chorei, beijei sua mão,
disse que depois conversaríamos melhor e fui para o banco...quem vai pagar
conta atrasada depois de receber essa notícia?; só me expresso bem em português...bom,
o Papa é argentino, deve entender; mas e se com o nervosismo começo com Santo Papa, estoy tan embarazada, e ele
me pergunta se sou casada, querendo me parabenizar, e digo que não, ele
suspira, não foi isso que quis dizer,
Papa, un momentito...até explicar....se até ele soltou um cazzo na benção dominical no Vaticano, o
que será de mim?...posso escrever, mandar traduzir e ler a confissão; antes
treinar a leitura, claro, pronúncia correta...cazzo é diferente de caso...mas
traduzir para qual língua?...que falta de atenção a minha, que preocupação
incabível, que falta de merecimento; tanta gente querendo estar no meu lugar e
eu preocupada com....aaahhh, por que eu?; eu...tão comum; eu tão pequenininha;
eu tão sem graça; eu trabalhadora, cumpridora de deveres, temente, fiel... eu
tão mal agradecida, isso sim!; faça-me o favor de ter uma preocupação digna de
quem foi uma das escolhidas para se confessar com o Papa; o Papa!; é por aqui
que devo começar, então, pela falta de confiança no caminho traçado por Deus
para mim, Papa?; Santo Papa?; Vossa Santidade?; Papa Francisco?...isso não vai
dar certo será um vexame quero segurar na sua mão apenas e chorar pedir perdão abaixar
a cabeça e abrir o coração sem precisar pronunciar qualquer palavra; mas confissão
não é uma conversa com Deus, está lembrada?; é sacramento, é assumir a vergonha
pelos erros e pecados cometidos perante a Igreja e meus irmãos, é para eles que
pedirei perdão pela minha humanidade...por mais que eu tão sofridamente tente,
nem sempre sou só amor, só fé, só humildade, só generosidade...la verdad es que tengo miedo, Papa, mucho miedo...
segunda-feira, 10 de março de 2014
Acabou nosso carnaval
O coração se
contraía no mesmo ritmo do alaranjar das montanhas. Talvez não fosse só isso.
Talvez fosse também o céu que passava do azul para o rosa. Talvez fosse o fim
de um dia que nunca mais – nunca mais, que coisa! – voltaria a existir. Ou a
música que tocava no carro, how long will
I love you?, as long as stars are above you, misturada à risada das
crianças e às mãos do marido no volante (ou rolante, como diz o menino mais
novo). Quem sabe – quem sabe, afinal? – o menino que andava de skate num parque
montado na orla; a mulher que corria atrás do ônibus com um bebê chacoalhando
no colo; o vendedor de pipocas por trás da luz do lampião solitário no carrinho; a banca
de jornais sendo fechada; tudo findando com o dia, até seu coração virar um nó.
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