terça-feira, 24 de março de 2015

Suficiência

Ainda que não soubesse, eu iria. Iria porque em toda vida, por mais miserável que seja, há ao menos um motivo para ir. Ele era o meu, desde há tanto tempo que não me lembro mais de como era quando não era ele o meu motivo para ir, por isso eu iria, ainda que não soubesse que ele também lá estaria. Iria para o vazio porque era preciso tentar, era só o que me movia; iria ainda que não soubesse dos braços dele abertos, do sorriso largo e dos olhos mareados, tudo para mim. Iria ainda que não soubesse o que iria ouvir; mas ouvi o que desejava, ouvi o que precisava para pode dizer que agora já basta. 

sexta-feira, 20 de março de 2015

Enquanto isso...

Enquanto não sei o que fazer, faço nada. Passo os dias assim: fazendo nada. Nada olhando para essas paredes que já não me parecem tão brancas. Nada olhando para as minhas mãos que a cada manhã ganham uma nova e discreta risca. Nada olhando para as unhas dos meus pés, que demoram para crescer, pode ser falta de vitamina, acho que é isso que minha mãe diria se olhasse o lento crescimento das minhas unhas. Nada olhando para a janela que me mostra pessoas fingindo que têm algo de importante para fazer. Bando de merdinhas. Pessoas apressadas para a minha direita, para a minha esquerda e eu aqui, honesta acima de tudo, sem saber o que fazer porque não há o que ser feito quando se entende que só o nada nos cerca e nos preenche. 

quarta-feira, 18 de março de 2015

Frio

Ela não encontrou as meias. Deveriam estar na gaveta, na gaveta de meias, mas há quanto tempo suas coisas não estavam onde deveriam estar?

Sentou-se na cama, os pés descalços, as botas de cano curto nas mãos, o frio do lado de fora, tentando lembrar-se da última vez em que encontrou o que queria no lugar onde deveria. Era difícil lembrar-se, pensou que uma xícara de café quente a ajudaria, mas onde estava mesmo a cafeteira? Talvez ele a tivesse levado em meio a tantas caixas com roupas, sapatos, cintos, livros, discos, envelopes, bolinhas de tênis, chaveiros, relógios, pastas com documentos, álbuns de fotos, meias!, talvez fosse isso, talvez as meias estivessem lá, ela não sabe onde, com ele, com a cafeteira, com tantos outros pedaços da vida dela.


Deitou-se na cama de onde tinha saído há pouco, os pés gelados, cobriu-se com a manta xadrez vermelho e azul, da qual ele tanto reclamava. Logo mais ligaria para o chefe. Teria febre. Teria mesmo. 

terça-feira, 17 de março de 2015

A visita

Mamãe pode estar morta. Ele nunca mais, desde os seus quatro anos de idade, havia se referido a ela como mamãe, mas foi esse pensamento que o invadiu naquela tarde modorrenta de domingo, com essas exatas palavras: mamãe pode estar morta.

O telefone tocava há dois dias. Ninguém. Nem no fixo nem no celular. Mamãe abandonada pelo marido, com dois filhos ainda diariamente de joelhos ralados chegando da rua e gritando mãe, tô com fome! Mamãe abandonada pelos vizinhos porque com mulher largada, sabe-se lá, melhor não falar. Mamãe abandonada pelos filhos, ele e o irmão mais velho, vida ocupada, sem mais tempo para ... mamãe.

Mamãe ocupando o vazio com seus cães, que só sabem dar amor, ela explicava quando, nas raras vezes em que a visitavam, reclamavam da sujeira do quintal e do cheiro da sala. Mamãe e seus pit bulls deitados no sofá, em frente à TV, dividindo os assombros diante da vida em tela plana. Na última visita, dois meses antes, nem bolo de fubá e café para os filhos. O dinheiro foi quase todo para a ração, ela tentou mentir. O mais velho levantou, precisava passar na padaria antes de voltar para casa com mulher esperando. O mais novo foi em seguida, um beijo murcho na testa da mãe.

Mas o telefone ela ainda atendia, nem que fosse só para tudo bem e fique com Deus. Agora dois dias de silêncio. Ele foi, sem avisar o irmão, sem avisar a namorada, sem avisar o colega de pensão. Mamãe pode estar morta, era só nisso que ele pensava quando tocou a campainha da casa da mãe, depois de uma hora de trajeto num ônibus surpreendentemente vazio, tarde de domingo, uma chuva ameaçando, o cobrador esperando o jogo começar no rádio de pilha, lembrou-se do pai sentado no quintal, também à espera do início da partida, o quintal que hoje fedia a mijo, merda e carência.

Tocou a campainha e nada além dos latidos. Nada dos passos pesados da mãe, arrastando os chinelos sob as pernas varizentas. Nada da sua voz fumante há trinta anos gritando quem é? Mamãe abandonada pelos vizinhos, ninguém a viu.

Lembrou-se do muro do quintal, as bolas que caíam para dentro e para fora. Ele e o irmão ralando os joelhos, o pai ainda sonhando com um craque, alguns vizinhos ameaçando furar a bola, outros sorrindo, a mãe no fogão, nenhum cachorro na casa, nem gato, nem passarinho, nem coelhos e hamsters, eles ainda se bastavam.


Pulou o muro. Não teve tempo de contar quantos foram os cachorros que o mataram assim que caiu no chão do quintal, a pergunta mamãe, mamãe? incompleta no meio da garganta estraçalhada. 

quinta-feira, 12 de março de 2015

Crendice

Leite com manga dá dor de barriga. Gato preto traz azar. Bolsa no chão leva o dinheiro. Ovo no telhado espanta chuva. Nunca acreditei em nada disso, mas um mês depois dele ter sonhado com seus próprios dentes caindo, ele morreu. Ele no caixão e eu pensando nos dentes caindo no sonho. Continuei a não acreditar, mas no meu sonho dessa noite, vinte e três anos depois da morte dele, eram os meus dentes que desfolhavam e deixavam minha gengiva feito árvore em inverno rigoroso. Eu tentava colocá-los de volta, mas o vento batia ainda mais e levava os meus dentes. Todos. À minha frente, a risada da amante do meu marido, feliz por me ver desesperadamente banguela. Tão feliz. Meu marido, o amante dela, o nosso mesmo homem impávido. Acordei e corri para o espelho, todos – dentes e medo – ainda ali, fortes. Um amor já enterrado por causa de dentes caídos; não sei, pode ser que funcione, mas se for para vir, que venha a morte da amante, para que eu possa viver até curar minha dor, ao menos. Amém. 

quarta-feira, 11 de março de 2015

Sei lá

Era o único lugar que servia comida na hora do almoço naquele quarteirão. E nos quarteirões próximos. Então eu me sentava numa cadeira bamba, desviando dos buracos na calçada, firmando a mesa com uma das minhas pernas, e pedia o frango à passarinho com salada, ambos encharcados de óleo, o frango esturricado que deixava meus lábios e as pontas dos meus dedos lubrificados, as folhas de alface e as fatias de tomate lustrosas. E não sei porquê, depois de tantos anos (dezessete, dezoito ou dezenove?) eu ainda me lembro desse frango.