Mamãe pode estar morta. Ele nunca
mais, desde os seus quatro anos de idade, havia se referido a ela como mamãe, mas foi esse pensamento que o
invadiu naquela tarde modorrenta de domingo, com essas exatas palavras: mamãe
pode estar morta.
O telefone tocava há dois dias.
Ninguém. Nem no fixo nem no celular. Mamãe abandonada pelo marido, com dois
filhos ainda diariamente de joelhos ralados chegando da rua e gritando mãe, tô com fome! Mamãe abandonada pelos
vizinhos porque com mulher largada, sabe-se lá, melhor não falar. Mamãe
abandonada pelos filhos, ele e o irmão mais velho, vida ocupada, sem mais tempo
para ... mamãe.
Mamãe ocupando o vazio com seus
cães, que só sabem dar amor, ela explicava quando, nas raras vezes em que a
visitavam, reclamavam da sujeira do quintal e do cheiro da sala. Mamãe e seus
pit bulls deitados no sofá, em frente à TV, dividindo os assombros diante da
vida em tela plana. Na última visita, dois meses antes, nem bolo de fubá e café
para os filhos. O dinheiro foi quase todo para a ração, ela tentou mentir. O
mais velho levantou, precisava passar na padaria antes de voltar para casa com
mulher esperando. O mais novo foi em seguida, um beijo murcho na testa da mãe.
Mas o telefone ela ainda atendia,
nem que fosse só para tudo bem e fique com Deus. Agora dois dias de
silêncio. Ele foi, sem avisar o irmão, sem avisar a namorada, sem avisar o
colega de pensão. Mamãe pode estar morta, era só nisso que ele pensava quando
tocou a campainha da casa da mãe, depois de uma hora de trajeto num ônibus
surpreendentemente vazio, tarde de domingo, uma chuva ameaçando, o cobrador
esperando o jogo começar no rádio de pilha, lembrou-se do pai sentado no
quintal, também à espera do início da partida, o quintal que hoje fedia a mijo,
merda e carência.
Tocou a campainha e nada além dos
latidos. Nada dos passos pesados da mãe, arrastando os chinelos sob as pernas
varizentas. Nada da sua voz fumante há trinta anos gritando quem é? Mamãe abandonada pelos vizinhos,
ninguém a viu.
Lembrou-se do muro do quintal, as
bolas que caíam para dentro e para fora. Ele e o irmão ralando os joelhos, o
pai ainda sonhando com um craque, alguns vizinhos ameaçando furar a bola,
outros sorrindo, a mãe no fogão, nenhum cachorro na casa, nem gato, nem
passarinho, nem coelhos e hamsters, eles ainda se bastavam.
Pulou o muro. Não teve tempo de
contar quantos foram os cachorros que o mataram assim que caiu no chão do
quintal, a pergunta mamãe, mamãe?
incompleta no meio da garganta estraçalhada.
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