sábado, 27 de abril de 2013

Helena!


Ele tinha noventa e um anos e o lado esquerdo do corpo paralisado há dez. Cuidado diariamente pela esposa com oitenta e nove. Todas as noites dos últimos dez anos ela deitava ao lado direito dele. Ficavam de mãos dadas até ele adormecer. E quando isso acontecia, ela soltava a mão devagar, para tomar um banho mais demorado, com tempo para chorar. E logo voltava para a cama, receosa de que ele percebesse a falta. Nunca percebeu. Numa noite, ela gritou. Um grito que o fez acordar a tempo de vê-la sendo levada por um ataque do coração.

Já faz três anos, mas ainda é possível escutá-lo nas madrugadas. Helena!...Helena!

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Bexigas


- Ai, que demora.

- É.

- E minha bexiga já está cheia. Não sei se vou aguentar até me chamarem.

- Eu tô enchendo a minha.

- Vai fazer ultrassom?

- Vou.

- E o transvaginal, também?

- Também.

- Ai, detesto.

- Eu também.

- Outro dia fiz um papanicolau que quase me rachou no meio. Perguntei se tinha lâmina no aparelho que eles usam. Que dor!

- Credo!

- Mulher sofre, né?

- Sofre. Mas antes sofrer por prevenção, né?

- É. Homem não aguentaria.

- Não.

- Pra você ver: uns anos atrás, uns doze anos, meu marido me deixou pra viver com a amante. Foi todo feliz, né, viver a paixão. Eu fiquei sozinha com meu filho e minha filha. E trabalhando pra ganhar meu dinheiro, porque amante não quer dividir nada com ex-mulher. Meu marido já era diabético. Aí seis anos atrás meu filho morreu...

- Meu Deus! Como?

- Acidente de moto.

- Sinto muito.

- Pois é, chegou sexta-feira da faculdade, deixou a mochila no quarto, pegou a moto e foi ver uma amiga. Tinha vinte e quatro anos. Um carro passou por cima dele. Até hoje a mochila dele está no mesmo lugar... os livros, os cadernos, os CDs, as roupas, a cama. Vai que ele volta, encontra tudo no lugar que deixou.

- Eu sinto muito.

- Acredita que até hoje eu saio no quintal e grito? É uma dor...uma dor assim...desesperadora...aí tenho que gritar.

- Posso imaginar... mas não quero. Desculpa.

- Tudo bem. Agora eu começo a acreditar que ele não volta mesmo, mas acho melhor as coisas ficarem lá, por via das dúvidas.

- Eu sinto muito.

- Mas então... aí meu filho morreu e meu marido, ex-marido, o pai dele, entendeu?, não aguentou. A diabete agravou e ele ficou mal, muito mal mesmo, quase morreu. Depois perdeu o emprego, não quis fazer mais nada. E a amante largou, né? Quem quer cuidar de velho doente? Aí, adivinha... voltou pra casa. Não como marido, entende?, mas como pai do meu filho. Eu já tinha perdido o filho mesmo, o que podia ser pior? Agora ele fica lá, mas não dorme comigo, não. Dorme no quarto do nosso filho. Todos os dias limpa, deixa arrumado. Mas você vê, não aguenta. Pelo menos agora a gente tem um netinho. Minha filha é solteira, engravidou e mora com a gente. O Pedro tá com oito meses. Meu marido, quer dizer, o avô do meu neto, entendeu?, pelo menos se ocupa com ele. Sai passear. Fica o dia inteiro, se deixar, com o bebê no colo.

- Que bom.

- Ah, pelo menos distrai, não fica só jogado pelos cantos. Eu sou filha única, perdi minha mãe faz dois meses, é tanta dor, nem sei mais qual é qual. E a casa, minha filha, meu neto, meu marido... quer dizer, ex-marido doente, o trabalho. Você vê: homem não aguenta...

- Sra. Bárbara...

- Ah, sou eu. Já não tava aguentando essa bexiga cheia.

- ... Até logo... Boa sorte.

- Pra você também. Foi um prazer, viu?

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Vida útil


Quem dividiu os dias em úteis e inúteis? Para ela, o sábado era tão mais útil do que a segunda. Ou a terça. Ou a quarta. Ou a quinta. Ou a sexta. Um abraço dos filhos no parque versus um aperto de mão do chefe. Ah, quem inventou essa classificação não pode mesmo entender qualquer coisa da vida. A vida que não se conta, não se mede, não se classifica. A vida. Olhou a sua volta, pena que não se penduram mais folhinhas na parede. Queria rasgar um mês inteiro. Dois. Três. Talvez doze. Foi até a sala do chefe, matou um tio distante e saiu para fazer daquele um dia útil.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Manhãs de outono


Ela sentia falta das manhãs silenciosas. E quando se viu sozinha em casa, com a claridade entrando pelas janelas da sala, passou as mãos pelo sofá, olhou para a mancha deixada por uma xícara de café em mãos distraídas, chutou para debaixo do tapete uma casca de pão e deitou. Olhou para o relógio, estava atrasada para fazer o que faz todos os dias, mas pelas janelas entrava também um ar fresco que arrepiava a pele. Então ela escondeu o relógio debaixo da almofada e fechou os olhos. 

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Uma carta, uma bisavó e muitos medos


Baba Marja,

 

tenho pensado muito em você. Estranho, já que você tinha 91 anos quando eu nasci e nos dez anos que viveu mais nunca nos falamos, apesar de nos vermos. Eu só entendia português e você falava iugoslavo, me explicavam, enquanto traduziam o que você me perguntava: ela quer saber quantos anos você tem. E se vai na escola.

O fato de eu ter medo de você também não ajudava. E convenhamos, eu era uma menina em frente a uma velhinha enrugada e nariguda, com a cabeça branca coberta por um lenço preto e o corpo franzino escondido debaixo de uma camisa, um xale, sete saias longas, meias e sapatos. Tudo preto. Sem contar as lentes grossas e embaçadas dos óculos.

E cá estou eu, quase trinta anos depois, mãe de dois trinetos teus, pensando muito em você.

Desde que me tornei mãe, sou uma mulher medrosa. Medo das doenças, dos acidentes, das tristezas, da violência urbana, das guerras, do ódio, da competição, da crueldade, da pobreza, da falta de caráter. Que mundo, meudeus, que mundo! Mas eu já sabia disso tudo antes de engravidar, por que tanto medo e assombro? Sim, eu já sabia. O que eu não sabia, baba, era o tamanho e a intensidade do amor de uma mãe. Então fico na dúvida se fui ingênua ou irresponsável. E nesse ponto você surge.

Imagino você e meu bisavô, o Veli Ivan que não conheci, vendo filhos nascerem durante uma guerra. Imagino você parindo sozinha enquanto o pai da criança estava matando para não ser morto. Quatro filhos durante e após uma guerra que foi chamada de Primeira Guerra Mundial. Por que, baba? Obrigação, ignorância ou esperança? Quando um filho chegava e rebentava teu peito, você também sentia medo? Ah, baba, quando as perguntas cruciais surgem nossas bisavós se foram.

Então penso em vocês dois assustados deixando a pátria com quatro crianças, rumo a um lugar que mal sabiam onde ficava no mapa. E nesse lugar desconhecido teus filhos cresceram, trabalharam, amaram, sofreram, casaram, procriaram e morreram. E teus netos nasceram, cresceram, estudaram, trabalharam, amaram, sofreram, casaram e procriaram. E teus bisnetos nasceram, cresceram, casaram, procriaram, amam, sofrem, trabalham, estudam, viajam. E teus trinetos nasceram e crescem.

E por alguns minutos, baba, pensar em você faz meu medo sumir.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

O sorriso da baleia


Uma baleia verde no mar azul como o fundo de tela do seu computador emitia um som grave e longo que a fazia sentir sono, muito sono, um sono que ela jamais imaginou existir. E com as pálpebras pesadas como âncoras, ela descia quase em narcose. O som da baleia cada vez mais longe. O mar cada vez mais escuro. Sem céu e sem estrelas. Com algas enroscadas no cabelo, ela sentiu medo, um medo grande e negro como o mar, mas a baleia sorriu. Entre um som e outro, a baleia sorriu.

domingo, 14 de abril de 2013

A bunda moderna


Chegou em casa com a calça suja. Onde teria sentado na graxa? No táxi? No metrô? No ônibus? No próprio carro? No carro do marido? Na cadeira da sala de reuniões do cliente? Na cadeira do seu escritório? No restaurante? No café? Na cadeira da sala de reuniões do seu escritório? No cinema? No teatro? No sofá da sua sala? Na cadeira da sua cozinha? Afinal, quantas sentadas cabem no dia de uma mulher? 

terça-feira, 9 de abril de 2013

Alguns dias...


Alguns dias não nascem. Ficam presos na madrugada fria, sem a luz de um abajur para aconchegar. O homem que dorme ao lado quer tatuar no braço o símbolo do Batman, mas não quer dormir pendurado com a cabeça para baixo. Do outro lado, uma mulher coberta de jóias em seu apartamento de oitocentos metros quadrados canta que só quer é ser feliz na favela em que nasceu. A criança de dois anos enfia a cabeça debaixo do cobertor na hora de dormir, com medo do palhaço. A mãe explica que não é preciso ter medo de palhaços, e chora desesperada à procura de um cobertor para se esconder. E numa van uma menina é estuprada por um...dois...três...quatro...cinco...não se sabe quantos homens, porque é noite de caça aos gringos no país do samba e da alegria. E toda pessoa só quer é ser feliz, mas alguns dias não deixam.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

O penúltimo capítulo


Se a senhora quiser se despedir, a hora é agora. E ela fixou o olhar nos lábios do médico à sua frente. A frase escorria como baba pelos cantos do bigode. O médico que há três anos trata do seu marido e que, a cada seis meses, reporta-lhe com detalhes a aniquilação do corpo humano. A mandíbula paralisou-se em catarse frente ao obstáculo agudo. Os lábios do médico, com a baba ainda escorrendo, num sorriso parado no meio do caminho, como se só depois de iniciá-lo ele se lembrasse de que num momento como esse ninguém deve sorrir, nem – ou, principalmente, por piedade.
Como nos despedimos de alguém com quem dividimos a cama e a solidão por vinte e sete anos e cinco meses?
A...ho...ra...é...a...go...ra.... A frase já escorria pelo chão, ela com a mandíbula catártica olhando para a gosma nojenta, o médico à espera de uma reação, aflito para tirar o celular do bolso e checar as horas, ainda tinha visitas naquela noite. Que horas são, doutor? Ele respirou aliviado e puxou o telefone. Oito e quarenta. A novela está começando, ela pensou, e fixou novamente o olhar no rosto do médico que não babava mais. E na UTI não tem televisão. Por que não colocam um aparelho, pequeno que seja, nesse lugar? Será possível que já passadas as bodas de prata ele vai me deixar bem no penúltimo capítulo da novela? Porque, veja bem, o penúltimo é mais importante do que o último. O penúltimo é decisivo. Nele as possibilidades ainda existem. Dá tempo de não entrar na igreja, reconhecer um filho, matar a mãe, conhecer um novo amor, ir atrás de um antigo amor, comprar uma passagem só de ida, roubar um banco, se trancar num mosteiro. No último, não. Para o último só sobra o desfecho do que se tornou inevitável.  
O médico ainda à sua frente, agora já respondendo mensagens e emails pelo celular, fez um gesto de quem pediria licença, não sem antes alertá-la. A visita acaba em vinte minutos.
Ela agradeceu. Muito obrigada, doutor...por tudo. E saiu, silenciosa, pelo corredor.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Coelhinho da Páscoa, que trazes pra mim?


Era domingo. E era Páscoa. E ela acordou com um coelhinho branco felpudo pulando sobre sua barriga. Carregava uma cestinha cheia de ovinhos de chocolate embalados em papéis coloridos e brilhantes. Ah, como mexia rápido o focinho. Ela riu alto. O coelhinho deu um salto ainda mais alto, quase uma cambalhota. Ela afagou as orelhas macias do bichinho e tentou pegar um ovinho – quem não gosta de acordar com um sabor doce?, mas o coelhinho puxou a cestinha para si. E olhou para ela com o focinho paralisado. Ela ficou com o rosto vermelho. O coelhinho sentou ao seu lado e tirou o papel dourado (a cor preferida dela) de um ovinho. Ela sorriu e esticou a mão. E o coelhinho comeu o ovinho de uma só vez, rindo enquanto esfregava a barriguinha com uma das patinhas. E fez isso de novo, mas com o ovinho embalado no papel prata (a segunda cor preferida dela). Ela ficou com o rosto ainda mais vermelho. E quando as lágrimas iam pular, diante do sorriso do coelhinho, ela o agarrou pelas orelhas, soltou um grito sem frase e sufocou o coelhinho com um travesseiro branco como ele. E antes de levantar para o café da manhã, esvaziou a cestinha que ficou caída no chão.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

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Porque ela precisava pedir reembolso das consultas do ginecologista, urologista, oftalmologista, neurologista, cardiologista, otorrinolaringologista e para isso precisava entrar no site da seguradora e informar sua senha. Não, não era a data do aniversário de casamento, nem do aniversário do seu filho mais velho, nem do mais novo, nem do meio (e onde estão os recibos do pediatra?), nem do cachorro, nem do dia em que beijou pela primeira vez e nem a senha extravasada que ela criou – nãolembroaporradessasenha, porque esse site exige letras maiúsculas e minúsculas e números, e ela saiu apertando todos os botões do teclado e nenhum servia. Nenhum. Sem senha, só um acesso de raiva era permitido. E ela pegou o telefone e marcou uma consulta com um psiquiatra indicado por uma mulher que conheceu num elevador na semana passada.