O café derramado na página cinco do livro. Literatura portuguesa
faz a alma verter as águas do Tejo. Ela se despedaça, como a luz de Lisboa,
para em seguida se juntar e expandir. A leitura de um fole. Ela não se importa
com as páginas molhadas e amarronzadas. São as marcas de uma manhã que ela
classifica de feliz.
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
segunda-feira, 25 de novembro de 2013
A invenção da segunda-feira
Sabe o que é? A
gente se cansa. Uns dias mais, outros menos, mas a gente se cansa de ver,
ouvir, falar, sentir, tentar, agir e gozar tão pouco. E então a gente vai pro
banco da praça, debaixo de chuva, a praça vazia de pessoas, só alguns
passarinhos cantando nas árvores, como a gente canta no chuveiro, sabe, para
desanuviar? Porque até passarinho cansa. Meu cachorro não se levanta algumas
manhãs, só me olha, nossos desânimos cruzados, e se mantém deitado. Sinto muito
por você ter consciência, ele diz. Hoje, por exemplo, ele não se levantou.
domingo, 24 de novembro de 2013
Você
Na impossibilidade de se extrair o pus do mundo, com os dedos
vermelhos ela espreme uma espinha em frente ao espelho rachado. Você vive como
se não fosse morrer, ela com a morte colada às orelhas. É por isso que ela
chora e você não entende. A morte gri-ta!: vamos todos acabar com vermes no cu.
Num mundo de putas e banqueiros, foram elas que tiveram os filhos ofendidos.
Você não entende porque não é justo – ao menos para ela. E daí? E daí? E daí?!
- de quem é essa voz? Ela tenta tapar os ouvidos, não sabe para onde ir –
porque não há para onde ir. Entra no banho e as vozes não derretem com o vapor. Outro vidro rachado e mais um amanhã como tantos hoje.
sexta-feira, 22 de novembro de 2013
Chuva de verão
A pomba veio
para o peitoril tentando se esconder da chuva. Já estava molhada. Ela, com uma
xícara de café recém-feito nas mãos, achou a pomba feia. Molhada, ficava tão
magrela. Mas os olhos se cruzaram. O castanho dela e o arroxeado da pomba. Ela
pensou em oferecer um café, um chá, mas parece que uma pequena cobertura
bastava para o aquecimento da pomba. E para o dela, nem café, nem chá, nem bolo
de fubá saído do forno.
quinta-feira, 21 de novembro de 2013
Extinções
Ele quer viver
uma aventura sozinho, anuncia com um dinossauro nas mãos, enquanto o mais novo
pergunta se ele é um papagaio. Não, sou um dinossauro, já disse! Você não tem
cauda, não pode ser um dinossauro. É claro que tenho: se sou um dinossauro, eu
tenho cauda. Você não tem, então não pode ser um dinossauro. Eu tenho porque eu
sou. Ei, você é meu pai? Não, sou o Homem de Ferro. Então eu sou o Batman. Não,
você é o Lanterna Verde. Não, se sou verde eu sou o Hulk.
[...]
Sobramos na
sala, eu e o dinossauro caído. Extintos. Não se coloca pessoas na vida impunemente.
terça-feira, 19 de novembro de 2013
To do list
E da
lista dos afazeres, ela não apagava nada, nenhum deles, mesmo aqueles que não
faria num futuro próximo ou nem tão próximo. Só para lembrar que não tomou a
vitamina B12 que lhe foi recomendada pela vizinha (ou irmã?), não se matriculou
num curso de japonês, não comprou uma coleira nova para o cachorro, não
pesquisou sobre uma viagem para a Índia, não comprou um CD da Cesaria Évora,
não assinou o jornal, não fez o curso de cozinha rápida e prática, não foi ao
dermatologista, não se inscreveu num site de relacionamento amoroso, mas comprou uma rede e a instalou na varanda do apartamento.
Que bom.
terça-feira, 12 de novembro de 2013
Maratona e saudade numa tarde de verão
Sempre chega um
tempo, um tempo qualquer para uma sucessão de atos, que a gente só sabe que
chegou quando já foi. E chegou o tempo de eu não ter mais tempo para os almoços
com minha avó. As noites de sábado só terminavam nas manhãs de domingo e os
almoços viravam cafés da manhã e as tardes eram preenchidas com lembranças e telefonemas
prometidos na noite anterior e eu ainda não conhecia a agonia do início do que
se determinou semana útil (?) e não pensava sobre a impossibilidade de se voltar
para o ponto em que havíamos deixado a corrida. Eu não sabia que corríamos. Numa
tarde à toa, quando também não sabia que tardes à toa correm, eu te liguei só para
dizer que te amava. Você suspirou surpresa, agradecida e tímida disse que também
me amava. É claro que sim, você lambia as solas dos meus pés infantis. Mas o
que eu devia mesmo ter feito era ter te levado para tomar um sorvete numa tarde
quente como a de hoje.
segunda-feira, 11 de novembro de 2013
Caleidoscópio
Na maioria das
vezes são estrelinhas amarelinhas como os piscas-piscas de dezembro que ela
tanto gosta. Às vezes raiozinhos verdes e rosas, ah, a Estação Primeira que
tanto deseja ver de perto a ponto de tocar. Mas agora são figuras triangulares
e circulares, olha, parece uma flor, laranjas, tão difícil aparecer essa cor,
amarelas, verdes, azuis...Ela ri sozinha na cama, lembra do avô que lhe trazia
aqueles tubos de presente, como chamam mesmo? Os olhos fechados não vêem as
orelhas do cachorro em sinal de interrogação, ele deve pensar que ela é boba,
mas não, não é não.
sexta-feira, 8 de novembro de 2013
Bendita sois vós
Padre?...Como começa? Padre, eu pequei? Ou...venho pecando? Só
sei rezar o Pai-nosso, e não rezo desde que minha mãe morreu: treze anos e
quatro meses. E ela me ensinou essa oração com tanta paciência...mas eu não
rezo, só entro na igreja para casamentos e batizados, como muita carne sem me
preocupar com o sofrimento do animal, não compro orgânicos, uso desodorante
aerossol, não reciclo, imprimo os e-mails que gosto, não dou caronas, detesto transporte
público e amo como se fosse gente o carro com ar-condicionado que comprei em
sessenta parcelas. E se tivesse dinheiro comprava um casaco bem peludo, de pelo
de bicho mesmo, que nem um de coelho que vi outro dia. Ah, comprava. O que mais
é pecado, padre? Hein? Eu adoraria ver os peitos da minha vizinha caírem só pro
meu namorado não olhar mais pra eles. Ficaria feliz se as coxas dela virassem
duas rolhas. Não entendo porque meu chefe é chefe e o salário dele não é o meu.
Já cuspi no copo d’água que ele me pediu pra buscar no meio de uma reunião, eu
e ele sentados um ao lado do outro, mas quem teve de levantar fui eu, como eu
pedia pra minha mãe, coitada, que se levantava do sofá e me trazia o copo
cheio, toda sorridente, enquanto eu não perdia uma cena sequer da novela. O
senhor entende do que estou falando, padre? Quem tira a bunda da cadeira quando
o senhor sente sede? Perdão, padre, perdão, não é disso que se trata. Passo o
dia elaborando planilhas e calculando impostos pra no fim do mês não sobrar nem
pra um casaco de pelo de coelho. Minha coluna não suporta mais apoiar meu pai.
Meus olhos não sustentam mais a visão daquele homem torto do sofá para a cama e
da cama para o sofá. E eu acabei de fazer trinta anos, padre. Culpa da minha mãe que se casou com alguém tão
mais velho. E me deixou aqui, eu e ele. Ou melhor, só eu. Ele não morre? Como
são feitas essas escolhas, padre? Alguém assinala um xis vermelho na vítima
para que a Morte a encontre sem dificuldade? Por que colocaram essa marca na
minha mãe antes dos cinquenta anos? Será que não era pro meu pai, não tem
possibilidade de erro? Viu, padre? O que vocês farão comigo? Quantos Pais-nossos?
Ave Maria não adianta que eu não sei, esqueci, não achava graça na Maria cheia
de graça, dizia benditos sóis,
imaginando mais de um a iluminar a Terra, era uma confusão na minha cabecinha,
minha mãe ria e me corrigia, mas eu não guardava, tantos sóis ali brilhando, a
quentura da minha mãe ao meu lado na cama e eu me perdia e me esqueci, por isso
minha remissão não pode vir com a Ave Maria, padre, invente outra coisa. Chibatadas,
talvez. Cem. Mil. Eu vim aqui pra isso, peito e costas nus, não podia criar um
filho agora, o senhor não entende, não é? Acha que a vida começa na concepção,
um espermatozoide invadindo um útero, mas e aqueles meninos que vi no caminho
pra cá, carcaças enroladas em cobertores, olhos perdidos em cachimbos, babas
escorrendo de bocas congeladas em sorrisos idiotas, já começaram a viver, padre?
E suas mães e seus pais, já terminaram? As crianças internadas com câncer, abraçadas
a bonecas carecas como se isso diminuísse a dor, vão sentir o vento no rosto quando?
E a vida do meu pai, paralisado num gemido, já acabou? Quando começa e quando
termina? A vida acontece nos descansos da dor, é isso? Alguém tinha que
decidir, padre, fui eu. Porque só eu sei o quanto aguento carregar no meu útero.
Foi rápido e o médico sorriu: será como
se nada tivesse acontecido. Como se nada tivesse acontecido...Agora é a sua
vez, padre, de sentenciar, mas eu já disse: nada de Ave Maria, pois os sóis
ainda giram dentro de mim.
terça-feira, 5 de novembro de 2013
Made in China
Um amor feito na
China, para não durar, como as cadeiras que fazem desabar quem nelas senta pela
décima vez. Ou as malas que espalham roupas e frascos de perfume na quinta
viagem. Só ela – ingênua ou desesperada? – não percebeu. E não adianta tentar
consertar, sua boba. Compre outra cadeira e outra mala. Você nem escuta, não é?
E caminha na chuva – cena tão clichê – sem perceber as crianças descobertas na
calçada agarradas a mamadeiras cheias de Coca-Cola. O veneno se espalha pelas
veias – delas e dela – , galerias e marquises, nem todos conseguem se esconder.
Só a senhora com chapéu turquesa e quatorze anéis em oito dedos sorri.
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
Dicionário
O hoje que
poderia ser nunca. Ou para sempre. Certo e errado. Branco e preto. Amor e ódio.
Pinguins no norte. Renas no sul. Derrube cada tijolo colocado em você até hoje.
Tente tocá-los: eles não existem. Sol e chuva. Frio e calor. Há balas no meu
jardim. E flores na minha geladeira. Não há jardim, mas azeitona. Não é uma
geladeira, mas uma gurumela. Xurumim. Pitiburu. Curutuco. Eu e você: eles. Eles:
nós. Tenho escamas. Nasci amanhã. Morrerei ontem.
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