Padre?...Como começa? Padre, eu pequei? Ou...venho pecando? Só
sei rezar o Pai-nosso, e não rezo desde que minha mãe morreu: treze anos e
quatro meses. E ela me ensinou essa oração com tanta paciência...mas eu não
rezo, só entro na igreja para casamentos e batizados, como muita carne sem me
preocupar com o sofrimento do animal, não compro orgânicos, uso desodorante
aerossol, não reciclo, imprimo os e-mails que gosto, não dou caronas, detesto transporte
público e amo como se fosse gente o carro com ar-condicionado que comprei em
sessenta parcelas. E se tivesse dinheiro comprava um casaco bem peludo, de pelo
de bicho mesmo, que nem um de coelho que vi outro dia. Ah, comprava. O que mais
é pecado, padre? Hein? Eu adoraria ver os peitos da minha vizinha caírem só pro
meu namorado não olhar mais pra eles. Ficaria feliz se as coxas dela virassem
duas rolhas. Não entendo porque meu chefe é chefe e o salário dele não é o meu.
Já cuspi no copo d’água que ele me pediu pra buscar no meio de uma reunião, eu
e ele sentados um ao lado do outro, mas quem teve de levantar fui eu, como eu
pedia pra minha mãe, coitada, que se levantava do sofá e me trazia o copo
cheio, toda sorridente, enquanto eu não perdia uma cena sequer da novela. O
senhor entende do que estou falando, padre? Quem tira a bunda da cadeira quando
o senhor sente sede? Perdão, padre, perdão, não é disso que se trata. Passo o
dia elaborando planilhas e calculando impostos pra no fim do mês não sobrar nem
pra um casaco de pelo de coelho. Minha coluna não suporta mais apoiar meu pai.
Meus olhos não sustentam mais a visão daquele homem torto do sofá para a cama e
da cama para o sofá. E eu acabei de fazer trinta anos, padre. Culpa da minha mãe que se casou com alguém tão
mais velho. E me deixou aqui, eu e ele. Ou melhor, só eu. Ele não morre? Como
são feitas essas escolhas, padre? Alguém assinala um xis vermelho na vítima
para que a Morte a encontre sem dificuldade? Por que colocaram essa marca na
minha mãe antes dos cinquenta anos? Será que não era pro meu pai, não tem
possibilidade de erro? Viu, padre? O que vocês farão comigo? Quantos Pais-nossos?
Ave Maria não adianta que eu não sei, esqueci, não achava graça na Maria cheia
de graça, dizia benditos sóis,
imaginando mais de um a iluminar a Terra, era uma confusão na minha cabecinha,
minha mãe ria e me corrigia, mas eu não guardava, tantos sóis ali brilhando, a
quentura da minha mãe ao meu lado na cama e eu me perdia e me esqueci, por isso
minha remissão não pode vir com a Ave Maria, padre, invente outra coisa. Chibatadas,
talvez. Cem. Mil. Eu vim aqui pra isso, peito e costas nus, não podia criar um
filho agora, o senhor não entende, não é? Acha que a vida começa na concepção,
um espermatozoide invadindo um útero, mas e aqueles meninos que vi no caminho
pra cá, carcaças enroladas em cobertores, olhos perdidos em cachimbos, babas
escorrendo de bocas congeladas em sorrisos idiotas, já começaram a viver, padre?
E suas mães e seus pais, já terminaram? As crianças internadas com câncer, abraçadas
a bonecas carecas como se isso diminuísse a dor, vão sentir o vento no rosto quando?
E a vida do meu pai, paralisado num gemido, já acabou? Quando começa e quando
termina? A vida acontece nos descansos da dor, é isso? Alguém tinha que
decidir, padre, fui eu. Porque só eu sei o quanto aguento carregar no meu útero.
Foi rápido e o médico sorriu: será como
se nada tivesse acontecido. Como se nada tivesse acontecido...Agora é a sua
vez, padre, de sentenciar, mas eu já disse: nada de Ave Maria, pois os sóis
ainda giram dentro de mim.
Tristelindo
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