sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Amor, Ana e eu

Ele estava parado na calçada, como se fosse atravessar a avenida fora da faixa de pedestres. Alto e magro, daquela magreza que faz com que a pessoa pareça mais alta do que é. A pele bronzeada e enrugada vista principalmente no pescoço e nos braços à mostra por uma camisa de mangas curtas. Um cinto fechado no último buraco (talvez até um buraco extra feito com a ponta de uma tesoura ou de uma faca) permitia que a calça jeans não fosse parar nos pés. Um boné branco cobria a cabeça careca que lembrava a ponta de um lápis. Os olhos reduzidos pelas rugas. Em vez de nariz e boca, um buraco aberto. Eu vi um buraco aberto no rosto desse homem sem nariz e sem boca. Só um buraco no meio do rosto. E aberto. E ele parecia que ia atravessar a avenida fora da faixa de pedestres. 

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Do que tenho medo de esquecer

Dos meus filhos dançando comigo na sala, os joelhinhos ligeiramente dobrados e as bundinhas balançando para lá e para cá para lá e para cá, numa noite qualquer, nada a comemorar a não ser a nossa alegria.

Da carta (sim, carta de papel dentro de um envelope fechado) da Vanessa, me explicando a razão de ter buscado a minha amizade.

Do convite para ser madrinha da Carolina.

Da risada do meu filho mais novo, que quase o leva a perder o fôlego.

Do olhar e do sorriso do meu filho mais velho quando me vê (filho, mesmo que um dia você chegue a me odiar, esse olhar e esse sorriso não escondem a giganteza do teu amor).

Da mão da Angélica na minha barriga.

Do tio Ricardo me jogando na piscina para eu aprender a nadar.

Da primeira vez que li Anna Kariênina. E da segunda que li António Lobo Antunes.

Do meu pai me contando que ele era o Super Homem.

Da primeira vez que fiquei de frente para a Torre Eiffel.

Das mãos da minha mãe sempre nos preparando alguma coisa ou doce ou quente ou macia ou saborosa ou cheirosa ou aconchegante.

Do primeiro choro da Mariana e da Isabela.

Do rap que meus colegas de escola compuseram para o meu aniversário de 16 anos.

Do olhar do Marcelo no altar.

Do gosto da bala de gergelim que minha mãe comprava ela nem se lembra onde.

Da noite sem luz na casa da Leticia.

Da mão pesada do meu avô fazendo um carinho desajeitado na minha cabeça.

Do gosto do molho de salada do tio Derek.

Do sorvete da Gelateria del Bambino que imitava um espaguete ao sugo.


De nós quatro sentados na varanda iluminada por velas, olhando os fogos que anunciavam um novo ano.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Dias






Um silêncio duro na sala choca-se contra a janela que mostra que ele não vem. Mesmo que ela fique ali, como está, caneca com chá de baunilha aquecendo as mãos. Mesmo que ela durma com as luzes acesas para mostrar, ah, quem sabe para ele, quando chegar, se chegar, que ela não dorme, e ele entre sem medo, mesmo que traga o frio lá de fora. Tenho um cobertor, ela dirá, e água quente para o chá. E ele cederá, não sem resistência, cederá. Mas ele não vem. 

sábado, 3 de janeiro de 2015

Pão amanhecido


Se você tivesse dinheiro para ir para qualquer lugar do mundo, hoje, agora, já, para onde você iria, ele perguntou, os olhos entre o rosto dela e o telefone dele, enquanto tomavam um pingado e comiam um pão na chapa no bar da esquina da casa dele, aberto no primeiro dia do ano porque o dono há muito tempo não diferenciava o primeiro de qualquer outro dia do ano. Líbano, ela respondeu, certeira, a resposta pronta para sair em razão do seu desejo mais antigo e durante muito tempo secreto porque ninguém entendia a razão de alguém ter o sonho de visitar o Líbano se sua família não tinha nenhuma passagem pelo país. Líbano?, ele afastou os olhos do celular e parece que a descobriu ali na sua frente. Líbano, ela estava segura. Ela viu os olhos dele vagarem por um mapa imaginado, na dúvida de onde ficava o Líbano, tão fora da rota Nova Iorque-Paris-Londres, por que raios alguém quer visitar o Líbano se pode ir para qualquer outro lugar, ela sabia que era o que ele pensava, até que os olhos dele se fixaram mais para a direita; ele ao menos tinha encontrado a região. E devolveu para ela um sorriso bem educado. Mas dos países que conhecemos, para qual você iria hoje, agora, já, se tivesse dinheiro? Ela pediu um café, dessa vez puro. Qualquer um. E perguntou o que ela achava do número de ministérios do novo governo.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Uma gota de pânico no meio do oceano (qual?)


Já parou para pensar que você pode viver muito tempo, cem anos, até cento e dez, por exemplo, ou seja, uma vida longa, uma vida humana inteira, sem conhecer um muçulmano que vive numa cidadezinha do Afeganistão, ou de Bangladesh, que apenas vive todos os dias como você, rezando e trabalhando pelo bem das pessoas que ama? Ou um chinês que mora em Jinan e come besouro e cachorro assim como você come ostra e porco? E um judeu em Hadera que só faz trabalhar para quitar os boletos, como você? Já parou para pensar que nessa sua vida inteira, sua vida longa, você pode nem mesmo saber onde fica Comores, muito menos imaginar que milhares de pessoas vivem lá querendo exatamente o que você, que vive aqui, quer? E poderá nunca saber como é viver da terra, com as mãos marrons e calosas e o olhos para cima, na Itália, no Brasil ou na Rússia? E viver da pesca, num rio ou num mar cuja existência você ignora? E ficar sozinho no mundo, único sobrevivente de uma cidade engolida por ondas gigantes ou destruída pela ganância de algum homem? E a música marroquina, os filmes húngaros, a literatura de Brunei? O sabor da comida feita no interior de Roraima ou num apartamento do Upper West Side? Ou seja, já parou para pensar que você pode viver muito tempo, cem anos, até cento e dez, ter viajado, lido, escutado, visto, experimentado, mas mesmo assim, mesmo tendo feito isso em cada um dos seus mais de trinta e seis mil dias, você irá morrer sem saber absolutamente nada sobre esse mundo?