6505-10
Terminal Guarapiranga – Terminal Bandeira. Os dias ficaram ainda mais tediosos
depois da implementação dos cartões. Seis horas olhando pessoas aproximando-os da
leitora, nenhum bom dia ou boa tarde, pouco troco, quase nenhum dinheiro para
contar, dinheiro assim um dia vai acabar, não vai, não?, o motorista nunca respondia,
só fazia riscar os dias para a aposentadoria próxima e xingar os ciclistas,
motoristas, pedestres e os motociclistas: que azar, pensou desde o primeiro dia
de parceria com o condutor.
O ponto da
Fundação Getúlio Vargas se aproximava e ele se empertigava todo; o motorista
meneava a cabeça, ele fingia que não via e se preparava para a entrada dela,
segundanista que ele acompanhava desde o primeiro dia de aula por causa do
sorriso direcionado a ele, acompanhado de um boa tarde todas as tardes. O sorriso
dela dando existência para alguém transparente na maior parte dos dias.
O perfume que
ele não identificava (parece de nuvem, de flor branca, de chuva, não sei...), o
esmalte claro e brilhante em dedinhos ágeis – o cartão de volta na carteira, a
carteira de volta na mochila, a mochila de volta para as costas, o celular para
fora da bolsa, a senha, duas ou três mensagens rápidas, os fones de ouvido de
dentro da bolsa para as orelhas, a mecha de cabelo negro queimado de sol sobre
a testa – até se acalmarem sobre o colo e começarem a tamborilar num ritmo que
ele acompanhava com os próprios dedos, sem nunca descobrir de que tipo de
música, afinal, ela gostava.
Cinco pontos e
ela descia, às vezes absorta na música, os dedinhos agora tamborilando a coxa
direita ou a coxa esquerda, coxas esguias e brancas que ele imaginava macias e
quentes a um toque que deveria ser delicado, precedido de uma pequena
reverência, suas mãos em coxas tão claras, coxa direita que os shorts
ou a saia usados no verão mostravam abrigar uma tatuagem nunca inteiramente
revelada: onde começava onde terminava? Um caule? Uma letra? Um tribal? O nome
de um amor? Era preciso muito menos tecido ou medo para ver tanto mais. Quando ela
descia assim, nem se lembrava de olhar para ele e se despedir com um sorriso
acompanhado de um imperceptível movimento de cabeça, insuficiente para tirar aquela
mecha de cabelo do lugar. Mas ele, sempre, ainda que ela não olhasse para trás,
ainda que ele estivesse dando troco ou conferindo um cartão, ainda que
estivesse com os braços para fora pedindo passagem para os carros, ainda que
estivesse orientando um passageiro onde descer, se despedia dela com um sorriso
de palhaço.
No terceiro dia
consecutivo em que ela não subiu no 6505-10, ele fez contas nos dedos: não era
dezembro nem janeiro nem fevereiro; nem julho; nenhum feriado para ser
emendado; só uma das quartas-feiras daquele mês de agosto; e ela entrou no
ônibus todos os dias da semana anterior, descendo na sexta como se fosse subir
na segunda.
Na
quarta-feira seguinte já eram seis dias de ausência. Muito cedo para pensar em
desistência da faculdade e na morte. Razoável pensar em doença, nada grave. Nenhum
crime noticiado que pudesse levá-lo a ela.
No décimo
segundo dia, a doença grave tornou-se possível.
No vigésimo, a
desistência da faculdade (foi ser cantora ou bailarina ou cuidar de flor).
Dois meses
depois, talvez tivesse mudado de cidade. Ou de estado. Ou de país.
Em seis meses,
a morte era uma opção.
Passado um ano
– ele marcou no calendário aquela quarta-feira de agosto – seus dedos ainda
tamborilavam uma música desconhecida ao passar no ponto da Fundação Getúlio
Vargas.