quinta-feira, 4 de junho de 2015

Primavera



                    Para ele, o pior de mim sobre uma bandeja no café da manhã, acompanhado apenas por um copo d’água temperatura ambiente. Entrego a bandeja, ele ainda na cama, e observo com prazer – que não tento mais esconder, cada pedaço meu descendo embolado  com aquela água quase quente. Ele, e eu, à espera de um perdão que não temos de onde tirar. Enquanto engole, ele abaixa os olhos, talvez em autoflagelo. Já não fazemos perguntas e damos respostas, e assim seguimos nos cafés da manhã sob goles duros, o oposto daquele primeiro, eu e ele numa mesa de bar disfarçado de boteco, depois de tantas cervejas com amigos em comum, a risada solta de imbecis aos vinte anos de idade, quando ele me perguntou “e aí, arrisca uma cachaça? Nega Fulô geladinha?” e eu aceitei um shot, dois shots, três shots, “você não é fácil de derrubar, não” e não nos soltamos mais, na crença ingênua de que com a gente seria diferente porque, bem, éramos nós, eu e ele, porque havia uma liberdade nunca encontrada em outra pessoa, como se já tivéssemos procurado por todos os anos possíveis em todos os cantos do mundo, como se dali a dez anos não pudesse haver alguém em Jacarta para mim ou para ele, mas a crença de que éramos unidos por algo tão invisível e colossalmente concreto que seria desperdício procurar em qualquer outro lugar ou tempo. E falávamos, sem vergonha, que éramos felizes e que juntos enfrentaríamos qualquer desafio, como só os tolos são capazes de dizer, na certeza de que ninguém mais conteria o que contínhamos ali, como se qualquer coisa surgida aos vinte fosse capaz de durar aos quarenta. Com exceção, talvez, dos meus pais, que também se conheceram aos vinte e aos oitenta ainda servem para o outro o melhor de si na bandeja do café da manhã. Minha mãe ainda rindo das piadas do meu pai, há tantos anos – uns trinta, pelo menos – as mesmas; claro, não há fonte inesgotável do que quer que seja no mundo, mas minha mãe ri como se houvesse, e meu pai ainda elogia o bumbum dela com uma piscada enquanto olho para meu irmão, sim, até hoje, sem entender como pode tamanha idiotice no mundo; ainda que a idiotice seja sincera. É que para eles era mais fácil, foi o que comecei a pensar quando desmoronei dos vinte anos: acordar antes do sol, preparar o café, tirar a nata do leite, colocar quatro xícaras e quatro pratos na mesa, uma cesta de pães comprados na noite anterior, um beijo na testa das pessoas que se ama, desejar um bom dia, levar os filhos para a escola, os uniformes com cheiro de amaciante, preparar o almoço, deixar a casa e as roupas limpas e a geladeira cheia, conseguir o dinheiro para pagar as contas, preparar o jantar, trazer as crianças da escola, checar as lições e os banhos, deixar todos cheirosos para a hora da janta, os quatro à mesa, “como foi seu dia?”, “e o seu?”, “ah, que bom”, “que legal”, e a louça na pia e um pouco de tevê e uma oração na cama e os almoços nas avós e nas tias nos finais de semana e quinze dias na praia uma vez por ano e talvez houvesse algo ali que da minha altura eu não enxergava, algo que minhas mãos infantis não conseguiam segurar, talvez os sussurros no quarto ao lado que eu não decifrava, talvez as barragens dos olhos que nunca rompiam, talvez as tardes em que minha mãe se trancava na salinha de costura e saía sem nenhuma roupa nova, as dores de cabeça do meu pai fechado no quarto escuro e as tentativas diárias de servir no café da manhã o melhor que se pode ser, com geleia e manteiga no pão quente e a água gelada de que ele tanto gosta, como a nossa primeira cachaça, todas as manhãs, aos vinte, aos quarenta, aos oitenta, insistentemente, apesar de.

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