E aí, cansou?
Ah, dando um tempo...
Estranho, né?
O quê?
Essa gente toda com quem convivemos anos, um monte de
histórias, aí cada um para um lado e de repente a gente se reúne de novo.
Por que veio, então?
Pra ver quem engordou, quem emagreceu, quem casou, separou, teve
filhos, enfim, pra ver se tem alguém pior que eu. E você?
Eu o quê?
Por que veio se é pra se esconder num
canto?
Não estou me escondendo, só estou dando
um tempo.
E enrolando um baseado...
Nossa, você vê coisa, né?
Que tipo de coisa?
Coisa que não existe. Tô dando um tempo. Cansa contar a mesma
história pelo menos trinta vezes.
Que história?
Ih, você continua inconveniente, não? Disso eu me lembro bem,
você sempre perguntando, indo além, vendo coisas que não existem.
E você continua bonita, “a mais bonita da
escola”... e metida, claro.
Viu como você tá sempre indo além? A gente não se vê há uns
vinte, mais até, vinte e três anos, e você...
“Quem quer namorar a Anita põe o dedo aqui que já vai fechar...”.
E os meninos todos correndo pra enfiar o dedo, da primeira a oitava série.
Não me lembro disso.
Não se lembra porque não era você a
correr com o dedo esticado.
E você se lembra por quê? Ficava de olho, num cantinho,
morrendo de inveja? Ou corria com os meninos?
E se eu corresse?
O que sempre disseram de você iria se
confirmar.
O quê?
Que você gostava mesmo é das meninas, apesar daquele namorico
com o Zé Meleca. Que nojo! Fala aí, o que foi aquele namoro com o Zé Meleca?
Não é da tua conta.
As perguntas não valem pra você, Tereza?
Fácil pra você falar, Anita. Só mulher bonita tem direito de
arranjar namorado, né? As gordinhas dentuças quatro-olhos cabelo ruim, como é
mesmo que falavam de mim, “a mãe da Tereza jogou o filho fora e criou a
placenta”? Essas não podem namorar, né?
Não é isso...
Claro que é. Você sempre à vontade naquele shortinho de
educação física, as pernas morenas compridas e lisinhas. Eu ficava me
perguntando se você passava alguma maquiagem, se era algum tipo de pó mágico
que deixava as pernas assim. Quem não parava pra te olhar?
Ô, Tereza...
Até hoje, olha aí seus pernão esticados nessa cadeira. Não
precisa encolhê-las, não. São bonitas mesmo, todo mundo gosta de ver. E você
gosta de mostrar, sempre gostou, mostre.
Ah, Tereza!
Sempre se movendo como uma gata, esses cachos soltos que
nunca se descabelavam, negros como os de Iracema, era assim que aquele
professor falava, né? Anita, a domadora de professores!
Por que isso, Tereza? Veio aqui pra me
provocar? Passou anos esperando um encontro pra isso? Você não me assusta
mais...
Uaaauuu! Eu te assustava?
Não. Me provocava, me irritava.
Você falou assustar.
E eu não posso errar?
Não foi erro. Eu te assustava, confessa.
O que você quer, Tereza?
Que você confesse.
Você não tinha nada a perder, Tereza. A placenta que a mãe
criou podia jogar bola, suar, falar palavrão, discutir com os professores,
namorar o Zé Meleca, ir às festas dos anos sessenta vestida de homem, dançar de
qualquer jeito, ficar bêbada que ninguém falava nada, enquanto eu...
Ah, não, Anita, você não vai me convencer que era um martírio
ser a encantadora de homens e mulheres, meninos e meninas, que é difícil
carregar essas pernas, esses peitos, essa bunda, esse cabelo... saia desse
papel.
Você acha que sabe alguma coisa sobre
mim?
Além do que sempre vi nos teus olhos
tristes?
Não tenho olhos tristes.
Já olhei pra eles mais do que você.
Chega, Tereza, vou voltar pra lá, contar mais algumas vezes
que não, não casei, não tive filhos; sim, tenho alguns namorados, nada que dure;
sim, trabalho com meu pai nas lojas; não, nunca saí daqui, apesar de reclamar
do interior...é isso, Tereza? Quer ir comigo, ouvir os detalhes de uma vida
besta?
Não preciso, Anita, continuo olhando nos teus olhos. Vai lá,
conte tudo isso mais uma vez, e volte com o baseado. Eu te espero.
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