Ele disse: eu te
amo. Assim, eu-te-amo, olhando para ela. E ela imaginou as letras se juntando,
o E agarrado ao U, o U ao T, o T ao E, o E ao A, o A ao M, o M ao O, o O ao E,
formando um círculo, e esse círculo sendo recheado de afagos, beijos, abraços, olhares,
telefonemas, promessas, pães quentes, pernas entrelaças, até virar uma bola, dessas
bolas gigantes e coloridas que as crianças ganham (ou ganhavam) em parques de
diversão, e ela viu ele jogando a bola para ela, euteamoeuteamoeuteamoeuteamo,
mas a bola não chegava até ela. Você entende? Ele jogou a bola, mas a bola não
chegou. Ficou parada em algum lugar inacessível entre os dois.
quinta-feira, 30 de outubro de 2014
terça-feira, 28 de outubro de 2014
O silêncio
Chegaram em seis, divididos em três carros. A rua estava
cheia, era quase hora do almoço, o sol amolecia as pessoas. Na calçada um
tabuleiro. No tabuleiro fatias de melancia, pêssegos inteiros e cachos de
bananas. Ao lado do tabuleiro um homem, mais menino do que homem, mas um homem.
Eles chegaram em seis, o mais gordo dizendo não
pode, não pode, não pode. O homem quase menino pôs as mãos na cabeça, é
assim que eles pedem. O policial mais gordo abriu os sacos plásticos que o
homem quase menino oferecia para os fregueses e começou a enchê-los com as
fatias de melancia, com os pêssegos, com as bananas. Os transeuntes passavam
devagar. Não pode!, o homem quase menino devia saber. Nunca ouviu falar em
CNPJ, cadastros, alvarás, licenças, impostos, taxas, fiscais? Ô, menino quase
homem, para vender por aqui tem que pegar fila e ganhar carimbos. E eu... Vi as
frutas nos sacos plásticos, o homem quase menino entrando no carro, as viaturas
saindo e não gritei. Não gritei quero
comprar todas as frutas. Não gritei deixem
o homem quase menino vender as frutas, elas estão tão bonitas! Não gritei.
Não criei caso. Não criei caso porque já tinha criado caso com o bancário.
Porque já tinha criado caso com os dois guardas que cuidam das portas
giratórias que não deixam ninguém entrar tranquilo num banco. Porque já tinha
criado caso com o cartorário. Porque já tinha criado caso com o chefe do
cartório. Porque já tinha criado caso com o juiz. Porque sempre crio caso com
quem se identifica com uniforme e crachá. Porque sempre me perco em número de
vias e códigos e taxas e palavras como colenda, egrégio, excelentíssimo e
vênia. Porque se persigo a justiça deveria ter gritado na rua em vez de
preencher corretamente um formulário e uma petição. Porque devo estar muito
cansada. Essa noite sonharei com os pêssegos, vermelhos; com as fatias de
melancia, orvalhadas; com os cachos de bananas, verdes e amarelas; com as mãos
do homem quase menino na cabeça, ...;
domingo, 26 de outubro de 2014
O velório
Está vendo aquele corpo duro e arroxeado dentro de um caixão,
com algodão nas narinas? Foi de um homem. A mulher ao lado chora:
vivia com ele há trinta e dois anos, jurou-lhe amor eterno e cumpriu sua
promessa. Com ele teve três filhos, dois meninos e uma menina, e agora se
pergunta como serão os dias sem a companhia dele no café da manhã, o silêncio
das folhas de jornal não viradas, nenhum elogio para o suco de laranja, muito
menos um beijo na testa com o desejo de um bom dia. E o telefonema no meio da
tarde apenas para perguntar se ela estava bem? A cama sem quentura, só ela e o
frio dos lençóis, um travesseiro a mais que ela provavelmente vai abraçar e
molhar. A lâmpada do abajur dele que continuará queimada. Mas o dia fora desse salão abafado de morte e flores, veja, é o mesmo que estava destinado a ser,
morra quem morrer, viva quem viver. Nenhuma nuvem escondeu o sol, nem mudou seu
formato de cavalo-marinho para ursinho de pelúcia. Na Índia, por exemplo, por
onde ele nunca passou, ninguém deixará de dormir porque ele morreu. O mesmo no
Japão. E Chile, tão mais perto. Nem mesmo os vizinhos perderão o sono. No
máximo dirão, antes de apagar as luzes, que
coisa, não?, enquanto agradecem por ainda estarem ali para contar a
história, ainda que em silêncio, ainda que envergonhados. É o que fica nas entrelinhas, o outro lado da moeda: todos queremos ser o último, ainda que a solidão nos assuste. E o dia seguinte
pode amanhecer quente ou frio, seco ou molhado, com uma vaca atolada na porta
de casa ou um carro enguiçado na esquina, nada mudará o fato de que ele morreu
e nós continuamos aqui, sem saber até quando, vivendo como se soubéssemos.
sábado, 18 de outubro de 2014
Quarto 1236
Por que você foi embora daquele quarto? As alianças
nas nossas mãos esquerdas, eu e você pensando nos nomes gravados nelas, nem o
meu nem o seu, ao mesmo tempo em que nos olhávamos pedindo que sim mas sabendo
que não. Amor é nome de paçoca, mas não é só isso, é tanto que também não
sabemos o que é. É a vontade que unia nossos olhares naquele momento. É também
o nome que carregamos nas nossas alianças. Se não sabemos o que é, pode ser
nada. Pode mesmo nem existir. E você então poderia ter ficado para fazermos
nada com as nossas não-existências. E hoje teríamos uma boa lembrança. Porque
estou desconfiada de que a vida é só isso mesmo: uma boa lembrança.
sexta-feira, 17 de outubro de 2014
A praia do meu futuro
Nãããooo! Mil vezes não!, seu despertador desgraçado. Você não
sabe o que é ter um sonho interrompido porque não tem pele. Desgraçado! Era o
Wagner Moura no meu sonho, puta que pariu era o Wagner Moura com aquela carinha
de bebê pedindo a mamãe. E sabe o que ele me falava? Que nunca tinha encontrado
uma pessoa tão incrível como eu. Que nunca imaginou que pudesse querer ficar
tanto perto de alguém como queria ficar perto de mim. E falava isso e pegava
nas minhas mãos, nos meus braços, no meu rosto, para ter certeza de que eu
estava ali, ao alcance dele. E me dizia que mesmo que fôssemos dois divorciados
com filhos pequenos nós merecíamos aquela história (que você desgraçadamente
interrompeu). E tudo bem porque divorciada aos quarenta com dois filhos
pequenos eu já não espero nenhum virgem solteiro mesmo. E talvez seja melhor
assim, que venha com o pacote. E ele me dizia isso e me beijava, meudeus, eu
beijava aquela boquinha safada do Wagner Moura, e ele estava com o cabelo mais
comprido, a barba por fazer, como A Praia do Futuro, meudeus, eu queria aquela
dança da Praia do Futuro e você, despertador desgraçado, não me deixou chegar
lá. Paramos na praia, eu e Wagner, à noite. Ele me deitou numa pedra dourada de
areia e luar, colocou o corpo dele por cima do meu, mais uma vez disse que não
acreditava na minha existência. Estava feliz. Eu mais ainda, tenho certeza. E
foi então que você chegou.
quinta-feira, 16 de outubro de 2014
O jantar grego
Voltaram da lua-de-mel.
Primeiro jantar em casa. Eu faço, ela disse, pulando como criança
que ganha um chocolate.
Depois do jantar, ela levantou para
lavar a louça.
Deixa
que eu lavo, amor,
ele disse acariciando as costas dela.
Ela deixou a louça na pia, que
continuou no mesmo lugar no dia seguinte.
Segundo jantar em casa, a louça ainda
na pia. Antes de preparar uma massa com molho branco, ela lavou a louça do dia
anterior. Eu falei que ia lavar, amor,
deixa aí, ele disse abrindo uma garrafa de vinho.
Depois do jantar, ela levantou para
lavar a louça.
Deixa
que eu lavo, amor,
ele disse acariciando as costas dela.
Ela deixou a louça na pia, que
continuou no mesmo lugar no dia seguinte.
Terceiro jantar em casa, a louça ainda
na pia. Pediram pizza.
Depois do jantar, ela levantou para
lavar a louça, incluindo a da noite anterior.
Deixa
que eu lavo, amor,
ele disse acariciando as costas dela.
Ela deixou a louça na pia, que
continuou no mesmo lugar no dia seguinte.
Quarto jantar em casa, a louça ainda
na pia. Ele preparou uma salada, ela uma carne grelhada.
Depois do jantar, ela levantou para
lavar a louça, incluindo a da noite anterior.
Deixa
que eu lavo, amor,
ele disse acariciando as costas dela.
Ela deixou a louça na pia, que
continuou no mesmo lugar no dia seguinte.
Quinto jantar em casa: sexta-feira. Chamaram
uns amigos para comer lasanha. Ela resolveu lavar a louça da noite
anterior, antes que os amigos chegassem.
Deixa
que eu lavo, amor,
ele disse acariciando as costas dela.
E o primeiro prato da casa foi quebrado.
quarta-feira, 15 de outubro de 2014
Consolação x Caio Prado
Eu
não vi.
Quando
cheguei, o fato que eu não sei qual é já tinha acontecido.
Eu
só vi um homem de meia-idade, negro, tórax bem forte, parado na rua, ao lado de
um carro que esperava o semáforo ficar verde, onde dentro estava uma mulher
velha, mas ainda apegada à juventude, com cabelos tingidos de loiro, uma boca
que lembrava a da Angelina Jolie, óculos escuros sobre os cabelos presos,
sombra, rímel, lápis de olho, blush e batom derretendo – tudo derretendo, com
uma blusa de alças finas e decotada.
Eu
vi uma mulher jovem, essa sim jovem, com saia curta, blusinha colada ao corpo
magro, meias até as batatas das pernas e botas, segurando um canudo bem grande,
desses canudos que guardam plantas de casa, desenhos, essas coisas, debaixo de
um dos braços, parada na calçada, quase em frente ao homem que estava na rua parado
ao lado do carro com a mulher velha que queria ser jovem.
O
homem gritava para a mulher jovem que ela deveria respeitar a mulher velha que
queria ser jovem porque era uma mulher de idade, você não está vendo?
A
mulher jovem gritava que a mulher velha que queria ser jovem deveria respeitar um
cachorro porque cachorro também merece
respeito, sabia? E que se dane a idade dela!
Vi
um cachorro que devia ser cachorra porque estava com uma coleira rosa, ao lado
de uma mulher gorda e suada que também estava na calçada, mas que não abriu a
boca.
O homem
continuava pedindo respeito. A mulher jovem continuava pedindo respeito. A
mulher velha que queria ser jovem pediu respeito. Os transeuntes começaram a
assobiar e a gritar e a tomar partido, mas não sei de quem, porque todos
gritavam uns com os outros pedindo respeito.
A
cachorra, eu vi, aproveitou para fazer xixi e cocô na calçada. E sentou para
esperar a mulher gorda e suada se mexer.
Depois
disso, não sei. Estava com pressa e atravessei a rua.
terça-feira, 7 de outubro de 2014
Onze horas
Meus ombros não seguram minhas bolsas. Alças longas ou
curtas. Mesmo as das mochilas: todas escorregam. O esquerdo mais escorregadio
que o direito. Não sei se nasceram assim ou se foram cedendo à gravidade da
vida adulta, minuto a minuto. O esquerdo mais que o direito: não sei explicar.
Só sei que não seguram bolsas e mochilas. As onze horas da noite daqui não são
como as onze horas da noite de lá. E eu nunca estou em um só lugar. Vejo uma
luz da janela da sala que ontem não existia: as copas das árvores estão roxas
hoje. Não ontem. Fecho todas as janelas, mesmo as pequenininhas dos banheiros.
Mesmo no vigésimo andar: tenho medo que as pombas invadam meu sono depois de
tanta luta para conseguir estar em um único lugar: só sei ser no inconsciente. Todo o resto, me
escute: não sou eu. Não consigo dar voltas suficientes nas chaves para que o
medo fique do lado de fora. Sou só, eu e ele: eu o conteúdo. Não acredito no
sapato de salto, no terno e gravata, nos diplomas, no avião, na impressora, na
fidelidade, no relógio, no mapa da Rússia, na memória do meu pai, em todas as
decisões que tomei ontem, na constituição, na nota promissória, na confissão,
na palavra dele, na contabilidade e no um mais um. Que hoje, aqui, nesse
quarto, são três. E meus ombros não suportam essa conta.
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