Está vendo aquele corpo duro e arroxeado dentro de um caixão,
com algodão nas narinas? Foi de um homem. A mulher ao lado chora:
vivia com ele há trinta e dois anos, jurou-lhe amor eterno e cumpriu sua
promessa. Com ele teve três filhos, dois meninos e uma menina, e agora se
pergunta como serão os dias sem a companhia dele no café da manhã, o silêncio
das folhas de jornal não viradas, nenhum elogio para o suco de laranja, muito
menos um beijo na testa com o desejo de um bom dia. E o telefonema no meio da
tarde apenas para perguntar se ela estava bem? A cama sem quentura, só ela e o
frio dos lençóis, um travesseiro a mais que ela provavelmente vai abraçar e
molhar. A lâmpada do abajur dele que continuará queimada. Mas o dia fora desse salão abafado de morte e flores, veja, é o mesmo que estava destinado a ser,
morra quem morrer, viva quem viver. Nenhuma nuvem escondeu o sol, nem mudou seu
formato de cavalo-marinho para ursinho de pelúcia. Na Índia, por exemplo, por
onde ele nunca passou, ninguém deixará de dormir porque ele morreu. O mesmo no
Japão. E Chile, tão mais perto. Nem mesmo os vizinhos perderão o sono. No
máximo dirão, antes de apagar as luzes, que
coisa, não?, enquanto agradecem por ainda estarem ali para contar a
história, ainda que em silêncio, ainda que envergonhados. É o que fica nas entrelinhas, o outro lado da moeda: todos queremos ser o último, ainda que a solidão nos assuste. E o dia seguinte
pode amanhecer quente ou frio, seco ou molhado, com uma vaca atolada na porta
de casa ou um carro enguiçado na esquina, nada mudará o fato de que ele morreu
e nós continuamos aqui, sem saber até quando, vivendo como se soubéssemos.
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