Sempre tem a morte, um câncer, um grito, um apaixonar-se, uma
xícara que cai com o café quente, uma tromba d’água, um carro sem freio, um
tropeço, um pão mofado, e ele continua deixando a torneira do banheiro aberta,
todos os dias, e ela continua esperando pisar em calçadas desconhecidas, e tem
uma dor de barriga, uma dor de ouvido, uma dor de cabeça, uma dor de estômago,
uma dor de dente, cistite, e ele continua deixando a torneira do banheiro
aberta, todos os dias, e ela continua esperando pisar em calçadas
desconhecidas, e tem uma chuva de vento, um incêndio, uma enchente, uma geada,
uma seca, uma nevasca, um ditador, e ele continua deixando a torneira do
banheiro aberta, todos os dias, e ela continua esperando pisar em calçadas
desconhecidas, e tem o corte de verba, o corte de emprego, o corte de luz, o
corte de água, o corte do amor, o corte do gás, o corte da internet, o corte das calorias, o
corte da infância, e ele continua deixando a torneira do banheiro aberta, todos
os dias, e ela continua esperando pisar em calçadas desconhecidas.
quarta-feira, 30 de dezembro de 2015
domingo, 27 de dezembro de 2015
Red roses
Estava sozinha. No banheiro, descalça, sem vontade de vestir
roupa alguma, derrubou o vidro de perfume que pegou por engano. Os cacos no
chão; os olhos, o pescoço, os peitos e o que já foi uma cintura no espelho; a
escova de cabelo que há dias não escovava cabelo algum; o cheiro do perfume
subindo pelos pés; o lado dele no banheiro, vazio há anos, mesmo com a escova
de dentes ali; as toalhas úmidas jogadas sobre a banheira que ela só enche nas
madrugadas; uma pomba que se aproximou da janela, bicha nojenta, vem aqui só
para ver o que está restando de mim. Levantou um pé para pular os cacos, desistiu: colocou os dois pés sobre o frasco quebrado, vidro grosso,
pisou mais forte, até a pele abrir, até a pele grossa rasgar, até o sangue sair e se misturar com o líquido cítrico, nada doce.
Ficou ali, olhando o sangue espalhar, sem chorar. Estava cansada.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2015
A mãe
Sexta-feira,
nove da noite. Era a quinta vez, naquela semana, que ela, aos oitenta anos,
colocava os netos na cama e saía de casa. Da casa dela. Da casa para onde a
filha voltou com seus próprios filhos, depois de perder o marido para a mulher
da mesa ao lado, mais magra e menos estressada, e o emprego para a crise, essa mais
gorda. E como era dessas mães incapazes de dizer não, ao menos nesses momentos
em que a filha chegava a ela em pedaços, disse sim, sejam bem-vindos. E abraçou
a filha, segurando o choro, e beijou cada uma das três crianças na testa,
rezando em silêncio para que ficassem bem. A escravidão imposta pela
maternidade, afinal, não tinha fim. Talvez só um descanso. E gastou mais no
supermercado, e cozinhou, limpou e lavou para cinco, sempre rezando, sempre em
silêncio, abrindo a boca apenas para sorrir. Deixava a filha vendo a novela
enquanto contava a mesma história para os netos, a única que ela sabia, na
esperança de que as crianças fossem obedientes e conseguissem, um dia,
distinguir o bem do mal. Ela não soube. Sua filha também não. Mas calava. E
depois da história beijava cada um na testa, os olhinhos arregalados
perguntando se tudo ficaria bem. Mas ela saía antes de dar a resposta que não
queria, beijava a filha na bochecha e seguia até a padaria mais próxima.
Um café, um misto quente e um pouco de
esquecimento, por favor.
segunda-feira, 21 de dezembro de 2015
Vinte e um de dezembro OU o para sempre que existe
Mais um vinte e um de dezembro, mais uma manhã em que, desde
mil novecentos e noventa e oito, eu só penso naquele telefonema, o telefonema
em que uma voz me contou que ela, ela minha amiga, ela minha melhor amiga,
estava morta, assim, dormiu e não acordou. Amigas não deviam dormir e não
acordar, não acordar nunca, não acordar nunca mais. Amigas não deviam dormir
para sempre com as respostas que queríamos ouvir. Eu, gritando e rodando por um
apartamento à procura de algo ou alguém que me segurasse, o telefone no chão.
Ela, ninguém podia nos salvar, sem acordar. Ela, que tinha voltado no dia
anterior da primeira viagem que fez com o namorado, que nem me contou se tinham
comido muito acarajé e frutos do mar; se gostaram das praias; se ele era uma
boa companhia em outras terras; se ela ficou à vontade com ele na primeira vez
juntos num hotel, num avião, num táxi de ida e volta para o aeroporto. Ela não
acordou e fiquei sem saber dessa viagem. Fiquei sem poder contar a ela das
minhas. Fiquei, assim, com a garganta interrompida desde aquela manhã em mil
novecentos e noventa e oito, quantos anos atrás?, perdi as contas quando minha
amiga não acordou. Para sempre.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2015
Seis da tarde
Não sei se é homem ou mulher. Seios, se houver, são pequenos.
Um homem com poucos pelos ou uma mulher com muitos. Um rosto de cicatrizes, a
boca rasgada a faca, o nariz espalhado, os olhos espremidos, o cabelo à navalha grudado na testa e nas têmporas. O quadril
estreito. As pernas finas. E fede.
Fede a mijo. Fede a bosta. Fede a pinga. Fede a óleo. Fede a
limão. Fede a pus. Fede a peido. Fede a sangue. Fede a suor. Fede a carne. Fede
a porra. Fede a cigarro. Fede a menstruação. Fede a crack. Fede a fumaça. Fede a esgoto. Fede a
baba. Fede a cera de ouvido. Fede a catarro. Fede a ranho. Fede a chulé. Fede a mofo. Fede a
couro. Fede a tripas. Fede a enxofre. Fede a cola. Fede a vômito. Fede a cárie. Fede a sarna. Fede a pau. Fede a boceta. Fede a bexiga. Fede a sebo. Fede a banha. Fede a corrimento.
E todos os dias levanta da calçada e pula na minha frente, atrapalhando minha passagem, me pedindo uma moeda.
Só uma moeda.
Indicações
Onde,
afinal, há um lugar onde se possa viver? Simplesmente: assim: viver. Comer
quando se tem fome ou se quer juntar os amigos e a família. Beber quando se tem
sede ou quando se quer celebrar: o nascer de mais um dia, uma noite com lua, um
nascimento, uma morte que não tenha chegado antes do fim. Ouvir uma música.
Ler. Abraçar. Correr com uma criança. Virar estrelas num descampado sem cercas.
Morar numa casa sem trancas, com sala, cozinha, banheiro e alguns quartos. Um.
Ou dois. Três, no máximo. Dormir perto de quem se ama. Chorar. Limpar sua
própria sujeira. Encontrar o silêncio na esquina. Descansar quando o sol diz “até
amanhã”.
Simplesmente:
assim: viver: nascer, ser amado, aprender, ensinar, trabalhar pouco, amar
muito, morrer dormindo.
Onde,
afinal?
quinta-feira, 10 de dezembro de 2015
Happy birthday to you
Eu passei um aniversário – meu – em Nova Iorque, mas não me
lembro de nada além disso – estar em Nova Iorque no meu aniversário,
beliscando-me. Não sei quantos anos fiz no aniversário que passei em Nova
Iorque. Não me lembro do que comi, do que bebi, por quais ruas andei. Ah, uma
amiga ligou no meu celular para me desejar um feliz aniversário, eu estava em
alguma esquina esperando o sinal abrir para os pedestres, disse para ela que
estava em Nova Iorque, devo quase ter gritado, e ela desligou rápido. Não me
lembro da roupa que usava – era primavera lá – isso eu sei porque ainda me
lembro do mês em que nasci. De resto, mesmo, não me lembro de mais nada; mas em
dias como hoje, em que me senti engolida por vinte milhões de pessoas e
quarenta e sete horas, gosto de me lembrar de que já passei um aniversário –
meu – em Nova Iorque. Nem que seja só isso.
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