terça-feira, 29 de novembro de 2016

Spa executivo

Meio-dia. Google. Clínicas de massagem. Tem horário? Em dez minutos estava lá, com o cabelo solto, sem anéis, brincos, pulseiras e colares e com a roupa mais confortável que me deram, um calção que serviria para um jogador de basquete e uma camiseta dessas boas para dormir. Ela toca os meus ombros. Tensos, não? Hum-hum. Fecho os olhos. Ela continua nos ombros. Isso é bom, muito bom, tenho vontade de chorar, mas é massagem e não terapia, apesar de eu não saber mais o quê é o quê. Eu devia voltar para a terapia, mas e a preguiça de falar tudo de novo? Lembro do meu marido ligando para a amante dele na minha frente. E depois da amante que ele marcou no celular com nome de homem. E depois a amante com quem ele jantava enquanto dizia que estava no trabalho até mais tarde blá blá blá, ela massageia meus braços e minhas mãos. Tão bom massagem nas mãos, não para, não para, minhas mãos sempre apertadas, comprimidas, doloridas. Acordo no meio da noite para esticar os dedos. Para quê tudo isso se vou morrer? Os cus de Judas, Lobo Antunes, é isso, os cus de Judas, estamos todos nos cus de Judas, uns mais no fundo, outros mais na borda. Acabou a massagem nas mãos, mas tinha tanto mais para soltar. Preferia estar sem roupa e coberta de óleos. Eu devia arranjar um amante. Aquele pai gostoso que conheci na porta da escola de natação, ele divorciado com um filho alegre e eu com os meus tentando escalar meus braços, engasgando para dizer que era casada, devia ter mentido, burra, mas eu estava tão feia naquele dia, e o pai era uma coisinha linda e gostosa, cheiroso, e eu sempre com o rímel borrado, metade do cabelo preso, naquele dia com uma saia que não combinava em nada com a blusa, nem com o sapato, naquele dia eu passei as horas achando que ia enfartar, e ainda tive que levar as crianças para a natação, sobrou para mim, sempre sobra, a natação, o futebol, o pediatra, o dentista, meu deus, há quanto tempo eles não vão ao dentista?, e os presentes para as festinhas, e os lanches para os passeios, as autorizações para os passeios, as lições de casa, e o pai gostoso ali, sorrindo, conversando, eu fingindo que tinha um mínimo de normalidade em mim, e o cliente no fechamento de um contrato, posso assinar mesmo, doutora?, conferiu tudo?, e o pai gostoso dizendo que eu não tinha cara de advogada, claro que não, eu sei que não, mas acredite, posso me vestir como uma, e também me dizendo que não tenho cara de brasileira, o que ele quis dizer com isso?, eu devia ter dito por que não saímos da porta dessa escola de natação cheia de vírus e bactérias e vamos para um canto limpo, acabei de me lembrar que não sou mais casada, é o costume, e agora ela está na minha lombar, dói, dói muito, dói de tanto carregar criança para a cama, do sofá para a cama, do carro para a cama, da minha cama para a cama deles, da cama deles para a minha porque eu também sinto medo, também tenho pesadelos, há sempre alguém rindo da e na minha cara nos meus pesadelos, e sim, sou risível, não suporto mais fingir que não, por isso a lombar dói desse jeito, a bunda, a bunda das amantes, mas eu também já tive uma bunda boa, ô, mas tudo cai, meu pai sempre me lembrava disso quando percebia que eu tinha um orgulho além da conta da minha bunda, então a gente cuida da cabeça, agora nas pernas, não sinto nada nas pernas, às vezes penso em quebrá-las para ler Em busca do tempo perdido ou Ulisses com a ajuda do Galindo, preciso ler o último livro do Laub, e do Bernardo Carvalho também, quero acabar meus dias como Forrester, alguém passando comida para mim por debaixo da porta, me deixem quieta com meus livros, ah, e ela chegou nos pés, finalmente a massagem nos pés, é melhor que sexo, é melhor que Lobo Antunes, A filha perdida da Elena Ferrante, As avós de Lessing, não tenho essas coragens, eu seria capaz de viver só para a massagem nos pés, agora eu preciso esvaziar a cabeça e pensar só nisso, só nas mãos dela nos meus pés, os polegares dela saindo da ponta do meu calcanhar e subindo pela lateral externa até chegar aos dedos. Uma vez, duas, três. Os polegares dela no centro da sola dos meus pés. Nunca fui tão feliz. E ela avança para os dedos dos meus pés, um por um, até eu dar um berro, um berro acompanhado de um pulo que fez voar o travesseirinho com lavanda que cobria meus olhos. Sua cabeça está muito cansada, ela diz, nunca vi alguém gritar assim. Não sou mais feliz. Ela busca o travesseirinho que caiu no chão, longe da maca em que eu estava. Cobre meus olhos de novo, tenta mais um pouco de novo, eu fecho os olhos e tento também, de novo. A massagem vai sair cara, nunca me senti tão pobre, vivo para pagar boletos, por isso o álcool é liberado para os adultos, teria gastado menos se tivesse ido almoçar, aquele prato executivo no japonês acompanhado do livro que está na minha bolsa, qual é mesmo?, preciso sair daqui e ir para um lugar que não conheço.

Pronto! Deu para relaxar um pouco?


Sim. Obrigada!



domingo, 27 de novembro de 2016

Padaria


Não tem mais bom dia. Não tem boa noite. Flores, na casa, agora só em papeis de parede nos computadores. Está com fome?, quer comer alguma coisa?, quer um vinho?, vamos dividir o sorvete?, nenhuma gentileza mais é dita. Você é linda, ele só diz para as outras. E ela sabe. Vamos viajar?, também só outras escutam. E ela sabe. As pernas fraquejam de cansaço, então ela fica, ouvindo um eco surdo batendo contra as paredes. A água que escorre do chuveiro enquanto ele pensa em um corpo que não é dela. E ela sabe. Mas hoje, tirada de um pesadelo pelo grito do filho que pedia ajuda para limpar o bumbum sujo de cocô, ela decidiu: iria à padaria. Voltou com seis pãezinhos, duzentos gramas de presunto, trezentos de queijo prato e um sonho. Só para ela.



quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Nada

O motorista, terno preto, estacionou em frente à floricultura e abriu a porta de trás do carro, de onde saiu o homem grisalho, terno azul marinho, óculos de aro vermelho em uma das mãos, a ponta de uma das hastes na boca, leves mordiscadas. O motorista se afastou e o homem grisalho, pele enrugada, mas ainda firme, continuava a mordiscar a haste dos óculos enquanto apontava para as flores e falava com o vendedor, abaixando-se em frente a cada um dos vasos, quase a tocar as plantas com a ponta do nariz. Não para as rosas. Não para os lírios. Não para as gérberas. Uma bromélia? Quase a flor-de-outubro. Até que reparou na véu-de-noiva, vaso frondoso, as flores brancas naquele fim de tarde com ameaça de chuva. Ele fez sinal para o motorista, que levou o vaso para o carro enquanto o homem grisalho escrevia um cartão. E eu, ali, por um instante, não tão breve, talvez até longo, desejei que tudo aquilo fosse para mim. 




quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Parabéns a você


Na foto, o filho entre ela e o marido, os três atrás de um bolo com quatro velinhas azuis acesas, ela sorriu. Tomou o cuidado de olhar bem para a câmera e sorrir, o melhor sorriso que ela poderia dar para uma foto que o filho poderia ver dali a quarenta, cinquenta anos, ela já morta ou esquecida de quem foi, as duas mãos nos braços da criança, questão de mostrar que o filho era o único ali merecedor do seu afeto. Daquele dia em diante, seria o filho seu único destinatário. O resto, o resto ali naquela mesa, naquela foto, naquela vida de família reunida em torno de um bolo de aniversário, era só um resto que dali a quarenta ou cinquenta anos ela também esquecerá. 






terça-feira, 15 de novembro de 2016

Queima de estoque


Queimar minhas roupas, todas, uma por uma. Calças há vinte anos no meu armário, uma menina boba as usava, não gosto mais dela, delas: da menina e das calças. Blusas que não falam quem sou, só quem fui, sou essa descabelada de moletom convicta de que só perco. Se há roupas para pessoas como eu nesse mundo, ainda não as descobri. Nasci para o fundo do armário. Em que momento alguém me puxou de lá? Queimar minhas calcinhas e meus sutiãs sem esperança alguma. Minhas meias, finas ou grossas, longas ou curtas, eu com tantas dores nos pés que não saem do lugar. Sinto dores de quem fica. Casacos que não fecham. Sou capaz de odiar a magra que fui. Sou capaz de odiar quem se apaixonou pela minha magreza. Queimar meus pijamas com marcas de leite escorrido. Pijamas de fêmea, com abertura fácil para uma boca banguela e faminta e egoísta. Queimar meus sapatos, minhas malas inúteis. E cintos! Cintos! Bermudas, biquínis, saias, vestidos: queimá-los não me saciará. Rasgá-los antes, talvez. Picotá-los. Tesoura. Faca. Nada cortaria mais do que minhas mãos nesse momento. Queimá-las todas com sangue, unhas e cutículas. E quem sabe, com tudo vazio, começar de novo.



quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Café da manhã


Comprar cigarros. Agora, que a casa escureceu e silenciou, eu poderia comprar cigarros. Um roupão sobre a camisola, pantufas sobres as meias, o cabelo solto e os olhos inchados, o borrado do rímel que nunca consigo tirar, eu poderia sair sem que ninguém me visse, todos dormem, ouvi as respirações. E compraria um isqueiro porque não tenho isqueiros já que não fumo. O amor custa caro. E fumaria o primeiro cigarro em alguma padaria aberta vinte e quatro horas. Não se pode mais fumar em padarias. Então um bar. Vodka ou whisky em vez de café e coxinha. E mais um cigarro. E alguém poderia perguntar se estou acompanhada. Não, eu diria. E sorriria. E mexeria no cabelo. E soltaria a fumaça espremendo os lábios e os olhos. E talvez abriria minhas pernas para sentir que o amor pode não custar tão caro assim. E fumaria mais um cigarro na espelunca em que estivesse. Tem pizza fria? Não, não sei seu nome e não preciso saber. Também não sei o meu. Suzana ou Vanessa. Rita ou Marília. Não gosto de azeitonas. Você já leu Tolstói? Uma cerveja com a pizza fria. Não, não preciso dessa sua mão na minha ou no meu cabelo. É só isso e não é nada demais. Mais um cigarro. Uma varanda. Um canal. Uma cachoeira. Uma rua de pedras. E voltaria com as meias nas mãos, ainda mais descabelada, fedida, pronta para me enfiar na cama e estar em pé logo em seguida com o café da manhã pronto para eles. Porque é só disso que se trata.