Eu devia ter o
quê? Uns seis, sete anos. E voltava da escola com meu pai na direção do carro.
Quase em casa, ele abaixa o som que vinha de uma de suas fitas cassetes, com
canções de Milton, Chico, Caetano, Gil, Gonzaguinha, que eu adorava, e me
pergunta: filha, você é feliz? Que visão tinha eu da vida, tão jovenzinha, que
me fez intuir (?) que eu deveria responder sim para não deixá-lo triste, porque
claro que ele, pai tão dedicado, precisava ouvir que eu era feliz? E sim eu
disse, pedindo desculpas mudas por mentir para o meu pai. Não que eu não fosse
feliz, meu pai, não é isso. É só que alguma coisa em mim - sem nome, sem morada - já não me deixava
acreditar nessa ideia de felicidade plena. E sei que era dessa que você me
perguntava; o medo de ter me colocado no mundo em vão. O que importou, ali,
naquele dia, naquele carro, foi que ele, meu pai, depois de ouvir o meu sim,
disse: que bom!
terça-feira, 29 de abril de 2014
quarta-feira, 23 de abril de 2014
Sob o signo de gêmeos
A vida é curta,
ela pensa todos os dias, logo ao acordar, para se viver numa fazenda em Ngong
ou Ribeirão Preto, numa quitinete em Paris ou Londres, num condomínio aos
arredores de Nova Iorque ou São Paulo, numa casa com quintal em Urupês ou Berna,
para se ter uma pousada na Vela Luka ou em Mykonos, para trabalhar como médica no
Rio de Janeiro ou passeadora de cachorros em Kuala Lampur, para morrer de solidão
em Tóquio ou de amor em Lisboa, para ler Guimarães, Clarice, Pessoa, Lobo,
Joyce, Woolf, Beckett, Tolstói, Faulkner, Proust, Hélder, Dostoiévski e ver Fellini, Bergman, Godard,
Truffaut e von Trier, para comer manga sentada numa mangueira em Sorocaba e tomar um café,
mais um café, no de Flore, aprender francês, italiano, espanhol, russo, croata,
japonês, escrever, pintar, dançar, atuar, correr, nadar em Fernando de Noronha ou Tel
Aviv, ser católica, judia, muçulmana, branca, negra, amarela, vermelha, mãe, tia, avó, irmã e amiga, parar
para ver o pôr-do-sol ou uma borboleta na região de Tomsk. A vida é muito curta, ela pensa todas as
noites, antes de dormir, para tantas elas.
terça-feira, 22 de abril de 2014
Janelas
E como toda manhã de dia batizado de útil, ela passou
cheirosa de banho, perfume, hidratante e maquiagem, com os fios de cabelo no
lugar exato onde deveriam estar para se ter um cabelo penteado, com um tailleur bem cortado sobre o corpo
torneado por duas horas de ginástica diária, saltos altos com solas marcadas
por tapetes e carpetes, uma joia no pescoço e outra nas orelhas, e como toda
manhã de dia batizado de útil, ela olhou pela janela do carro e quis estar no
lugar da mulher de cabelos brancos e pele solta que olhava pela janela do
apartamento abarrotado de vasos com plantas.
quinta-feira, 17 de abril de 2014
Ivan e Marja
O marido foi pra
guerra, deixando a terra, ela, a poesia e os filhos esperando. Um dia voltou,
chorou: matei um homem...era ele ou eu e eu tenho vocês, não perguntei quem ele
tinha, se perguntasse talvez não mataria...e você estaria chorando, mais, agora.
E foi pra guerra de novo, deixando um filho na barriga dela. Quando voltou de novo, não havia mais guerra, nem terra, nem trabalho, nem comida. E do lado de
lá parece que há promessas, de terra, de trabalho, de comida, de paz. Vamos?
Mas onde é lá? Brasil. E onde fica o
Brasil? Lá. E que língua falam lá? Não sei. E foram. E das promessas, havia trabalho
na terra dos outros com dinheiro só para os outros. Ele, ela e os filhos
dividindo o curral com as vacas. Vamos embora? Como? De trem. Pra onde? São
Paulo. Onde é São Paulo? Pra lá. Lá onde? Não sei. E foram. Fugidos do dono da
terra com um pouco de dinheiro arrancado sob ameaça – não se sabe do quê. E
chegaram. E ficaram. E ali morreram: ele antes, ela muito depois, sem nunca
mais verem a Croácia.
quarta-feira, 16 de abril de 2014
Febre
São pálpebras que não conseguem se manter abertas: pesam e
raspam ásperas nos globos lacrimosos. Braços que não levantam. Patas de elefantes em pernas de saracura. Três
corações: na garganta, no peito e no estômago. Rins que não filtram gritos que
ficam perdidos pelas unhas. Chocam-se. Nenhum sinal de saída. Nenhum sinal de chegada.
Sem começo e sem fim. Uma tripa labiríntica e risonha: decifra-me ou...vá à
merda.
terça-feira, 15 de abril de 2014
Queria que ele tivesse esperado para conhecer os bisnetos
Ele me deixava comer quantos doces eu conseguisse antes do
almoço e do jantar. Me ensinou a jogar açúcar no iogurte natural, a ponto do
pastoso virar sólido. Eu tinha uns seis anos e ele me deu uma caixa com um
quilo de bombons recheados com licor de cereja. Comi todos sozinha, talvez mais
alegremente do que deveria uma criança nessa idade. E eu olhava para ele,
careca e barrigudo, e pensava: que graça teria a vida sem ele? E fantasiava que
quando ele morresse eu entraria no caixão sem que ninguém me visse, me esconderia
por baixo do corpo dele e lá iríamos nós para o inferno continuar a diversão, porque eu sei que ele detestava a ideia de um céu com anjos e um deus o esperando de braços abertos. E
quando ele morreu, eu com quatorze anos, ele com a idade que meu pai, filho
dele, completará amanhã, eu não fui ao velório, nem ao enterro e só chorei
muitos anos depois. Mas vira e mexe ele invade o meu pensamento, cheio de
açúcar, e eu escrevo a mesma história. Assim como aconteceu hoje, logo que
acordei.
segunda-feira, 14 de abril de 2014
Sumiços de páscoa
O café passado com o dia ainda dormindo. A atenção para que o leite fervido não
esparramasse pelo fogão, o que ela, apesar da prática, nem sempre conseguia.
Distraía-se pensando em quanto tempo o ônibus atrasaria e no sonho perdido de
ser secretária, tão bonito cuidar da agenda de alguém; não, o Senhor Mendonça
já tem compromisso nesse horário; ele não está, por favor, deixe recado; e se
aprendesse a falar inglês, então... A luz fraca da cozinha e a respiração
inocente da filha no quarto ao lado, mesmo com o pai sumido junto com o sonho
do secretariado, faziam nascer no seu estômago a sensação de que tudo valia a
pena, mas que também sumia tão logo ela chegava na loja e era obrigada a vestir
uma tiara com orelhas de coelho vermelhas. Vender brinquedos para crianças
mimadas por meio de pais esnobes até que lhe trazia alguma alegria, mesmo que
efêmera. Mas as orelhas...e vermelhas? E lá se foi mais um leite derramado.
sexta-feira, 11 de abril de 2014
Palavras
Serão as mesmas as nossas
memórias ou é só um desejo fantasiado meu o dia em que você cantou para mim,
sentado numa calçada debaixo de um sol de janeiro no hemisfério sul, enquanto
me olhava para eu entender que você me amava? Eu me lembro da música, e você? E
se me responde que nem mesmo cantou? Onde vivi essa cena que há tanto tempo me
acalenta? Você se lembra de cheiros, eu me lembro de olhares e toques. Nunca de
palavras, doces ou amargas – eu, que tanto preciso
delas! – não foi com elas que construímos um amor. Foi?
quinta-feira, 10 de abril de 2014
Só a arte nos salva
A árvore do
outro lado da janela balança. Pouco, mas balança. Ela olha com atenção, tem os
olhos sonolentos, tudo está meio a balançar, mas a árvore balança mesmo. Alguém
em algum lugar ali perto toca Moon River no saxofone. Por que Moon River? Só
para aumentar a vontade de largar as obrigações e sentar-se mais próxima da
janela? A árvore agora balança mais forte, já não teme estar sendo enganada
pelos olhos; Moon River acabou, nenhuma música veio em seu lugar. Não quer mais
se aproximar da janela: pensa em se lançar contra uma árvore, agarrar-se a um
galho e gritar a tarde toda: voglio una donna! voglio una donna!
quarta-feira, 9 de abril de 2014
Na parede
Como se uma bola
de fogo crescesse ao som do tema de 2001: Uma Odisséia no Espaço, foi assim que
ela percebeu seu estômago durante a noite. Embrulhou-se no próprio corpo
com frio e gemeu. Se pudesse arrancar um osso do corpo e arremessá-lo contra a
parede que passava a noite a lhe dizer: não há ninguém. Mas não podia. Não
conseguia. Correu para o banheiro. Era preciso vomitar até ver o próprio
estômago boiando na água amarelada da privada. Só depois conseguiria dormir por
mais algumas horas. E conseguiu. Mas quando acordou, a parede continuava a lhe dizer: não há ninguém.
domingo, 6 de abril de 2014
No criado-mudo
Era ele ali, congelado num momento, tentando abrir os olhos
contra o vento, o mar quase verde ao fundo, um pedaço de areia bege quase branca, o pescoço e os ombros
nus e bronzeados, sorrindo não só porque aquele segundo poderia ser visto, se
bem guardado numa gaveta, até o mundo acabar, mas porque estava feliz; sim,
feliz, como acontece às vezes de nos sentirmos felizes algumas vezes ao dia.
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