Minha filha,
não sei o que
terá mudado entre o dia de hoje e o dia em que você lerá essa carta. Alguma
coisa. Mais provável que muito pouca coisa.
Talvez ainda te
queiram magra e sem curvas, para caber nas roupas fabricadas por empresas
incentivadas por tecelagens que precisam desovar alguns tecidos que não deram
muito certo, que por sua vez precisam colocar suas peças em revistas e sites que mostram para as mulheres como
elas deveriam ser e não são. Você verá, minha filha, que vivemos em nome de
convenções tidas como verdades absolutas, sem que ninguém se questione de onde
elas vieram e porquê foram inventadas. Inventadas, sim, por uma pessoa ou um
grupo de pessoas que chegou antes de nós e decidiu, para benefício dela ou do
grupo, que deveria ser desse jeito: teu corpo; teu cabelo; tua pele; a cor que
você vai usar no verão ou no inverno; aliás, se você vai usar ou não roupa e
qual roupa; o que você vai estudar; o que você vai fazer da vida. Mas
lembre-se: tudo não passa de invenção. E se alguém, algum dia, em algum lugar, inventou,
outro alguém, em outro dia, em outro lugar, pode desinventar.
Você vai se
apaixonar, isso é certeza. E vai amar. E aí te virá uma ideia de casamento,
outra convenção. Talvez você se apaixone por um homem e isso te trará menos problemas
(quer dizer, só perante a tal sociedade que acredita nas convenções, porque
dentro de casa, minha querida...). Talvez você se apaixone por uma mulher.
Talvez você se apaixone várias vezes, por homens e mulheres. Eu, infelizmente,
só me apaixonei por homens. E me casei, acreditando talvez na convenção mais
furada de todas. Amor não é casamento. E não há fidelidade no casamento. Talvez
haja lealdade. Ah, e filhos não fortalecem o casamento, pelo contrário. Ficar
barriguda incomoda. Amamentar nem sempre é um quadro de Mary Cassatt. Talvez
você nem queira filhos. Ser mulher e ser mãe, espero que você perceba isso, são
situações diferentes. E válidas.
Se quiser casar
com um homem, ou morar com um homem, e quiser ter filhos com esse homem, o que
posso te dizer: olhe para o teu sogro. O teu companheiro e pai dos teus filhos
será o companheiro e o pai que ele foi. E posso estar errada. E tomara que esteja,
se isso for bom para você.
Talvez ainda te
chamem de louca e histérica. E de vaca. Não ligue e continue gritando e
esperneando sem medo. E transe com quem quiser. Não se limite. Talvez só haja uma
única regra a ser seguida: trate os outros como você gostaria de ser tratada. E
ainda assim vai dar merda. De qualquer forma, ainda acho que é a melhor regra.
Mas de tudo o
que já mencionei, há algo mais importante: a amizade. Só os amigos te tirarão
da solidão. Só os amigos te farão rir quando você achar que o melhor da vida
será se enfiar numa cama para nunca mais sair. Aliás, você vai ver, “nunca mais”
é muito tempo, geralmente a gente não chega até lá. Mas, sim, os amigos: cuide
deles como você cuidará de algo que gosta mais do que tudo no mundo. Eu, por
exemplo, de livros. Meus amigos são minha biblioteca. Você elegerá algo também:
há livros, plantas, filmes, bichos, música, tintas e telas, papeis e lápis,
água do mar, chocolate, dança, café, árvores, teatro, selos, lagos, carros,
computadores, muita coisa para comer e beber. Algo surgirá e aqui também não se
limite. Porque também é paixão. Em muitos casos amor. E amor, minha filha, O
amor, é raro. Você vai ouvir falar muito dele, muita gente te dirá que age em
nome dele, mas preste atenção para não confundir: amor não é paixão, amor não é
apego, amor não é medo, amor não é posse, amor não é vaidade, amor não é tesão.
E amor não é traição. Por isso, minha filha amada, tenha pelo menos uma amiga para
te servir um café a qualquer hora do dia. Quanto a você, tenha também sempre um
bule à disposição. E tenha segredos.
Talvez tudo isso
dê para um começo.
Mamãe
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