Uma senhora. Ou: uma mulher com aparência de senhora: gorda,
daquelas com braços e pernas que transbordam uma gordura mole e cheia de
ranhuras; pés inchados que não cabem nos chinelos; cabelos ralos e grisalhos
presos no que um dia foi um coque, algo que um dia foi cabelo. Sentou no
meio-fio. A noite começava a cair sobre uma das maiores cidades do mundo, a
cidade onde nessa manhã dois corpos foram encontrados dentro de um freezer
largado de madrugada numa de suas principais avenidas. Corpos encontrados por
moradores de rua. De dentro de uma sacola plástica a senhora tirou alguns
gravetos. Não: muitos gravetos, havia outra sacola. Fez com eles um montinho.
Sim, uma pequeninha montanha de gravetos construída na calçada por onde
passavam centenas de pessoas apressadas para pegar o ônibus e o metrô. De uma
sacola maior, de pano, tirou alguns tijolos e protegeu o montinho de gravetos
com três paredes. Três pequenos muros protegendo a pequena montanha. Um homem
quase chutou a construção na pressa de ultrapassar outro transeunte. A senhora
riscou um fósforo e pôs fogo no montinho. Por cima do que agora era um
fogareiro colocou uma panela. Uma panela que se equilibrava nesse pequeno fogão
montado na calçada. Da sacola de pano tirou uma garrafa com água, que jogou
dentro da panela. E depois alguns pedaços de sabonetes gastos. Com uma colher
de pau começou a mexer a mistura. Fazia um calor insuportável nessa noite,
nessa cidade, nessa calçada. E a mulher mexia a mistura. Mexia, mexia, mexia,
um calor da porra mesmo. Mexia, mexia, mexia e a água foi ficando menos
transparente, esbranquiçada, grossa. Mexia, mexia, mexia, três universitários
quase derrubaram a cozinha armada na calçada. Mexia, mexia, mexia, o líquido
foi ficando mais sólido, um branco azulado ou esverdeado. Mexia, mexia, mexia e
a pasta começou a borbulhar. Ela tirou a panela do fogo, deixou-a de lado,
apagou o fogo com os tijolos, olhou em volta, esticou as pernas, abanou-se com
o encontrou de um jornal, ergueu o rosto para poder ventilar melhor no pescoço,
guardou seus apetrechos de volta nas sacolas, mexeu mais uma vez a massa que
cozinhou e tomou tudo. Num só gole. Fazia muito calor. Um calor da porra mesmo.
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