Muitos.
Centenas, talvez milhares, de soldados marchavam no meu ouvido direito na mais
recente madrugada. Como era mesmo o comando para os soldados pararem a marcha
que aprendi na escola? Pelotão!, sentido!,
só me lembro desse comando no meio de uma quadra esportiva repleta de crianças
aprendendo a marchar. Crianças aprendendo a marchar? Que aprendi na escola?
Estatelei os olhos no teto: as marchas, o orgulho da bandeira, a mão no peito,
o hino, o uniforme de gala, a ordem, a obediência pela obediência, aulas de
educação moral e cívica: nada, além da aversão, ficou em mim: pude voltar ao
sono, não sem assombro.
quarta-feira, 27 de maio de 2015
terça-feira, 26 de maio de 2015
Segredo
Na sala de
espera, ele, barba recém-surgida no rosto com uma boca cheia de dentes tortos e
amarelos e óculos sobre olhos desgovernados, soltava urros a cada dois ou três
minutos que passei a contar no relógio. Não ficava sentado mais do que quatro.
Levantava, urrava, escancarava a boca pálida e tentava correr com pernas que se
entrelaçavam. A mãe ia atrás e o colocava de volta na cadeira. Mais urros e
tentativas de fugas. Numa das vezes em que se levantou veio até mim, olhos
ardentes, óculos tortuosos, boca aberta num sorriso e braços prontos para um
abraço. Eu, em pé, do outro lado da sala, sorri de volta. Ergui os braços. A
mãe se pôs entre nós: deve ter te achado bonita.
Ela não tinha
como saber que não é pela beleza que atraio os loucos. Mas também não
expliquei.
* * *
quarta-feira, 20 de maio de 2015
Freud
Sempre sonho que não conseguimos casar. Entro na igreja, caminho pela nave, mas minhas pernas travam antes de
chegar ao altar. Entro na igreja, nós dois radiantes, caminho pela nave, chego
ao altar, mas não conseguimos juntar as mãos. Ou juntamos as mãos e antes do
sim alguém vira nuvem. Há sempre uma força inconsciente que nos impede de
realizar o casamento e acordo ofegante. E é sempre você, não há exceções em mais de vinte
anos. No de hoje, eu esqueci de agendar a igreja. Você apareceu, dentro de um
carro, de terno, ao lado da sua mãe, prontíssima para te entregar a mim num
vestido prata, e eu, no meio da rua, não reconheço a rua, de bermuda e
camiseta, descabelada, levando as mãos à cabeça, tentando explicar que não
tinha reservado a igreja, ao mesmo tempo em que tentava explicar que não, de
jeito nenhum, esse esquecimento não era falta de amor, nem de vontade, nem de
desejo, era só... não sei, a força do meu inconsciente.
segunda-feira, 18 de maio de 2015
Abre-te, gergelim
Entrou, fechou a
porta com a chave, deixou a bolsa no sofá e sentou-se na poltrona com o tecido
recém-trocado, de couro branco para veludo vermelho, de frente para a porta. A
porta por onde ela poderia sair, com mala, ou malas, ou sem nada, só a bolsa
com os documentos. Não queria trocar de nome, rosto, número do RG e CPF,
passado. Queria, com o mesmo corpo, sair por aquela porta, sem data para
voltar, ainda que soubesse que voltaria. Lá fora encontraria as antigas ilusões.
Já os sonhos estavam pregados naquelas paredes e para eles ela (ainda) não
queria dizer adeus. Só um até logo. Só umas férias, um tempo para transformar o
ódio em tristeza, esse ódio duro que não deixava as lágrimas caírem enquanto
ela olhava para a porta, que não – esqueça isso, minha querida – se abriria
sozinha para ela sair.
quinta-feira, 14 de maio de 2015
Paracetamol
Uma dor de cabeça da porra que trava tudo.
Não entendo o que acontecerá com as novas regras, se virarem regras, se forem
mesmo novas, da aposentadoria. Quantos anos mais desperdiçando a segunda, a
terça, a quarta, a quinta e a sexta? Não as minhas, mas tantas por aí. A fila
de um quilômetro na porta de uma agência de empregos às oito horas de uma manhã
fria. Dentre tantos homens e mulheres, jovens e velhos, estou ali, apreensiva,
talvez desesperada. Não estou hoje, posso estar amanhã. E se a criança ficar
doente? E se o patrão reclamar da falta? Puta não pode falar, mas patrão pode.
Não entendo nada com esta maldita dor de cabeça, destruindo meu crânio a
machadadas. Um homem acordava no meio da rua, às oito horas e dez minutos dessa
mesma manhã fria. Debaixo do corpo um edredom fino e molhado. Por cima um pano
que já foi cobertor. A fome dele é a mesma que a minha. O sono. O medo do dia.
E da noite, sempre maior. Ele olha para os lados como eu. Espreguiça como eu.
Senta-se na cama como eu. E eu? Passo ao lado, de nada adianta passar e sentir
o estômago se retorcer num choro. Não paro, não volto, não falo, nada ofereço.
Eu, tão mais suja que aquele passado de cobertor. E essa dor de cabeça!
quarta-feira, 13 de maio de 2015
Contagens
Quatro e vinte e
dois. Madrugada de inverno, apesar do outono. O poeta já escreveu que na
verdadeira escuridão da alma são sempre três da manhã, a minha hoje se atrasou.
Talvez o frio. Minha cabeça dói. Calculo prazos. Reescrevo mentalmente
memorandos e petições; que desperdício para a verdadeira escuridão da alma; mas
continuo revendo os trabalhos que conseguirei e não conseguirei entregar. Quem
me desprezará? Não posso acender o abajur e continuar com o livro que me
consome (será isso?) se alguém dorme ao meu lado. Escuto a respiração. Não saio
da cama, não me animo a construir outro ninho. Os livros na cabeceira, aquele
especial que está me roubando da prática em que não me encaixo. Contas para
pagar. A vida é besta. É? E se eu fosse para debaixo da cama, como as crianças
nos filmes? E se contasse carneirinhos? Pensei em filhotes de golden retriever.
E se me lembrasse dos momentos alegres da minha vida que está chegando aos
quarenta? O primeiro choro dos meus filhos. As flores nas salas de aula. A
primeira vez em que vi a Torre Eiffel. Todas as vezes em que sentei no chão
para rir. Até eles aparecerem: então abraço os joelhos, fecho os olhos, respiro
fundo e conto meus mortos.
terça-feira, 12 de maio de 2015
Mr. H.
A quentura do
salão no fim do dia, quando eu chegava e ele já estava lá: um livro aberto
sobre o colo, o cachimbo em uma das mãos, os óculos escorregando pelo nariz, as
pernas cobertas por uma manta de lã xadrez bege e marrom. Queria entrar feito
pluma trazida pelo vento para que ele não me percebesse e eu pudesse admirá-lo
naquela posição por, não sei, mais tempo, tempo que nunca seria suficiente. Mas
nunca consegui entrar feito pluma onde quer que fosse e ele então tirava os
olhos do livro, ajeitava os óculos e levantava a cabeça para me ver. Sorria. Um
sorriso discreto, mas tão aconchegante quanto a cena à minha frente. Eu sorria
de volta um pedido de desculpas, sem nada falar, só um aceno com a mão que ele
retribuía com uma quase imperceptível reverência. E tantas vezes meus pés
quiseram correr em sua direção, meus braços desejaram enlaçar seu pescoço, meus
olhos procuraram o título do livro em seu colo e minha boca ansiou por dizer
alguma palavra, uma que fosse, “oi”, por exemplo, ou “obrigada” – um agradecimento
seria mais verdadeiro; mas não. Continuei entrando com meu silencioso pedido de
desculpas, até sobrarem apenas o cachimbo e um livro fechado sobre a poltrona.
segunda-feira, 11 de maio de 2015
A merda
E a última coisa
que te contei foi que eu tinha te traído. É estranha essa história de traição.
Como você era meu namorado, supostamente ninguém mais poderia me beijar.
Ninguém, além de você, poderia tocar meu corpo e saber de algum segredo meu.
Porque se eu gostava de você, e gostava mesmo (você era muito legal, uma das
pessoas mais legais que conheci), não devia sentir desejo por outra pessoa. Foi
assim que aprendemos e apreendemos, não? Mas você, naquele sábado, precisava
dormir cedo porque ia trabalhar no domingo, e me deixou em casa. E éramos
jovens. E era sábado e havia uma festa em algum lugar. E eu não precisava
trabalhar no domingo. E você me deixou em casa e eu fui para a festa. Porque
era sábado e eu era jovem e não trabalhava no dia seguinte. E na festa havia um
cara. Um menino. Um rapaz, sei lá, vinte e poucos ou vinte e muitos. Moreno
como gosto. Grande. E ele veio falar comigo e eu falei. E falamos. E ele quis
me beijar e eu beijei. Beijamos. E ele sentiu bem o meu corpo. Eu o dele. E
pronto, tchau. E no dia seguinte, que merda, você veio. E eu com aquela mentira
inchando dentro do meu estômago, feito bola de sabão que explodiu quando te
contei. Teus olhos tão escuros se quebrando em mim. Que merda eu fiz? E se
contei era porque gostava tanto de você, entende? E de mim, e de nós. E porque
não sei guardar mentiras. Que merda eu fiz, você indo embora sem nada dizer, ou
dizendo só “vou pensar e volto”. E voltou uma semana depois, a voz cortando a
garganta para explicar que me entendia, mas que me entender não bastava. Essa
história de xícaras quebradas que mesmo depois de coladas não voltam a ser as
mesmas. Eu tentando colher os cacos, quem sabe a nossa xícara ficasse mais
bonita com os pedaços colados, mas você foi antes que eu terminasse de
recolhê-los. E te vi de costas, eu ainda ajoelhada à procura de caquinhos. Você
se virou: somos muito jovens, vai ficar lindo o nosso mosaico ... já volto! E
quando voltou, azulado dentro de um caixão, eu estava com a xícara colada nas
mãos. Que merda eu fiz?
segunda-feira, 4 de maio de 2015
Alguém e ninguém
Sonhei com um pássaro de plumas amarelas esverdeadas, gordo,
achei que fosse pelúcia, mas ele pousou no meu braço que descansava debaixo de
tantos galhos entrelaçados e adormeceu feito um gato. Eu precisava descrever
para alguém as maravilhas daquele pássaro que ronronava sobre o meu braço, as
penas macias tocando minha pele já quente de sol, mas não havia ninguém ao meu
lado quando acordei com um cheiro doce-enjoativo no estômago. Quer dizer, havia, mas era o corpo de alguém que não
estava lá, alguém que há tanto tempo procuro que já perdi a noção do tempo, não
me assustarei se nossos cabelos já estiverem todos brancos quando nos
encontrarmos novamente. E, até lá, é provável que eu tenha me esquecido do pássaro, mas não de vomitar.
domingo, 3 de maio de 2015
Ainda te espero
As últimas palavras que te escrevi foram “te espero”. E
esperei. Não sentada. Nem roendo as
unhas com o estômago embrulhado para um presente que pelo visto nunca será
dado; mas esperei. Pintei as unhas, apesar de ter quase certeza do seu desprezo
por unhas coloridas. Mas me senti bonita, entende?, com as unhas em fogo. Vesti
meu melhor sorriso, encontrado debaixo de pó no fundo de uma gaveta, só para te
esperar. Li um livro-pérola. Escutei jazz. Pensei em palavras que gosto e
coloquei-as numa ordem capaz de te agradar. Passei tempo tentando lembrar de coisas que te
fazem sorrir: uma comida, uma paisagem,
uma ideia, um lugar, e não me lembrei de nada. Pensei em te perguntar.
Estou mais prática, queria te mostrar isso. Mas você não veio e não lamento:
gosto de olhar para as minhas unhas caprichadas e o sorriso, aquele esquecido,
continua no meu rosto.
sábado, 2 de maio de 2015
A tevê do meu pai
Meu pai assistia a todos os esportes pela tevê. Todos.
Adorava. Torcia. Futebol, tênis, basquete, vôlei, golfe, boxe, ginástica,
patinação, ciclismo, natação, surfe, handebol, hipismo, judô, karatê, sentava
na poltrona e ficava, torcedor discreto, sorriso plácido, sem cerveja e sem
petiscos. Um dia começou a reclamar: os esportistas não eram mais os mesmos,
acabou a paixão, acabou a garra, acabou o amor, é muito dinheiro, muito corpo,
muita meta, muita performance, rankings, os olhos dele cansados à procura de
algo que não víamos, levantava e ia até a cozinha abrir a geladeira para nada
pegar, voltava bufando, sentava e logo levantava, uns resmungos engasgados, até
desligar a tevê e esperar pela segunda-feira. Um dia parou de reclamar. Um dia
deixou de ligar a tevê. E um dia mandou o aparelho embora, ninguém sabe para
quem e para onde.
sexta-feira, 1 de maio de 2015
O fim da história
Por que, pai, você não me contou a história até o fim, se
aquela era uma das histórias que têm um fim? Eu era tão novinha e sofria a dor
do primeiro amor quando você disse que amor não era para causar dor, que quando
a gente ama o mundo fica mais colorido, cor de rosa brilhante, e que nem de
droga a gente precisava, bastava amar, e eu, que nem bebia, já disse que era tão novinha,
imaginei um mundo onde pôneis passariam voando em cores psicodélicas e
rodas-gigantes com luzes piscantes rodariam pelas ruas ao lado dos carros e dos
pedestres, eu que nem sabia da existência de drogas alucinógenas, imaginei
assim a visão de quem ama, só por causa do modo como você me falou do amor,
pai, e me disse que era assim que via o mundo desde que havia conhecido a minha
mãe, que tudo era um grande barato porque você a amava (e era correspondido,
claro). E a história acabou assim, sem que você me contasse que o amor poderia
também ficar rosa sem brilho, e depois rosa desbotado, depois quase branco, e
branco, e cinza, e cinzas.
Assinar:
Postagens (Atom)