sexta-feira, 30 de maio de 2014

A maldição


Quando eu nasci o diabo decretou: você será capaz de amar com cada poro da tua pele o homem que dormirá com você, a criança que sairá do teu ventre e a que dorme na rua, teus amigos, teus irmãos, o gari que sorri desdentado enquanto trabalha, a mulher que vende bolo fresco na calçada para quem acordou às quatro da amanhã para pegar quatro conduções e ganhar um salário mínimo no fim do mês. Mas com a mesma intensidade – e cuidarei disso pessoalmente tua vida inteira –  você sentirá a dor, como uma agulha incandescente entrando em cada um desses mesmos poros. E você se contorcerá, gritará, implorará e não pegarei na tua mão. E você não vai entender quando alguém te pedir para pensar menos porque te farei pensar com as palmas das mãos, com as solas dos pés, com as pontas dos dedos, com a nuca, com o estômago, com os rins, com o coração, com a espinha dorsal, com a vagina, com o ânus, com os pulmões, e só um pouco, muito pouco, com o cérebro.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Pião


Nasceu condenada a enganar quem para ela olhasse. Não se sabe se pela genética ou pelo meio. Fato é que sorria e até cantava e sorrisos e cantos levam as pessoas à ideia de uma felicidade concreta e permanente. Talvez não fosse ela quem enganasse. Talvez ninguém engane ninguém. Talvez...talvez na tentativa de entender alguma coisa, qualquer coisa, ela fique rodando feito pião, daqueles de madeira, sem cores, sem luzes, sem sons. Talvez seja essa sua condenação: passar a vida a rodar, no escuro da madrugada, chocando-se contra as paredes geladas de um quarto vazio, para na manhã seguinte sorrir e cantar. 

terça-feira, 27 de maio de 2014

O vizinho

Um homem dorme na porta do meu prédio. Está escuro, mas é um homem. Uso calça com meias compridas debaixo dela, botas de cano longo, blusa de lã e um casaco. Ele está debaixo de uma pilha de jornais e farrapos e fora isso só vejo sua cabeça envolta num gorro de lã: verde claro, desse verde que se usa para enxoval de bebês. O homem dorme. Eu fico parada. O porteiro abre o portão para eu entrar, não entro, pois um homem dorme na rua debaixo de jornais e farrapos. Ele deve sentir a minha presença ali, não disfarço, ele acorda e me olha. Boa noite, eu digo. Boa noite, ele responde. E se vira para a parede. 


De manhã, ele continua ali. Agora sentado. Lendo o jornal.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Mofo


Apague a luz, feche a janela, deixe o cobertor aqui até eu me sentir sufocada. O queijo que estava na geladeira está todo verde, assim como os morangos. Acabou o leite e o pão. Não sei fazer bolo. Se soubesse, acabaram os ovos também. Shiiiii, minha cabeça dói se tiver que responder como estou, então não pergunte, a não ser que queira me ver doendo. Mais. Talvez isso te faça bem. Então, pergunte.

domingo, 25 de maio de 2014

Bom dia


Manhã branca e gelada, eu podia ver pela janela, deitada na cama debaixo de um daqueles cobertores que parecem feitos de nuvens. Nas mãos, um daqueles livros de leitura doída. Como se naquele quarto já não houvesse dor suficiente para uma respiração truncada. Então ele me distraiu com seu chamado. Olhei, mas ele já havia se virado. Voltei para o livro. Ele me chamou de novo. Dessa vez olhei a tempo de ver sua carinha. Virou a cabecinha para a esquerda, para a direita, para a ... . Não tenho nada para te oferecer, eu disse, café, chá, leite; nada quente. Ele virou a cabecinha para a esquerda, para a direita, ... . O que é?, perguntei, olhe pra mim, olhe!, nada a oferecer, além da minha dor; aceita? E ele voou para outra varanda.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Quando o nunca mais é mesmo nunca mais


Fui cedo para a praia naquela manhã. Você estava para chegar. As férias estavam no fim e eu ainda não tinha visto o mar antes do meio-dia. Mas você estava para chegar, ia chegar cedo, queria que me visse ali, te esperando, a praia ainda vazia, nem de guarda-sol eu precisava, apenas uma cadeira de alumínio para te esperar sentada e contemplativa. Eu queria te dizer tantas palavras, desculpe-me e te amo eram algumas, apesar de você ter me dito uma vez que eu te amo era muito banal para traduzir o que você sentia por mim. Acho que você me escreveu isso, não? Já não consigo me lembrar, posso procurar nas cartas e bilhetes guardados. Onde mesmo? Porque eu queria te dizer essas e outras palavras, olhando nos teus olhos, fui para a praia cedo. Então eu pensava nisso, com aquela sensação de um grampo na boca do estômago, quando o porteiro do prédio em que eu estava hospedada me cutucou: eu precisava retornar uma ligação recebida da cidade em que eu morava, em que nós morávamos, e de onde você sairia para vir até a praia. Se eu soubesse assobiar, teria ido até o prédio assobiando. Como não sei, nunca soube, devo ter ido cantarolando mesmo. Retornei a ligação, os dedos tranquilos no teclado do telefone, e fui informada de que você não viria naquela manhã. Nem na outra. Nem na outra. Nem na outra e na outra e na outra e na outra e na outra... Ouvi as palavras lago, gelado, pulo, parada, cardíaca, choque...como até hoje não entendi o que aconteceu? Naquela manhã só entendi o significado de “nunca mais” e o que me sobrou foi essa ânsia de ter de dizer tudo o que se quer dizer no momento em que se pode dizer. Pode não haver outra chance. Nunca mais.