quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Para Vanessa, todo 21 dia de dezembro

Ela tinha quinze anos, assim como eu, quando chorou porque tirou oito na prova de física. Eu, de frente para ela, sem entender nada. Eu, que estaria pulando de alegria se tirasse um oito em uma prova de física. Eu, para quem a física não passou dos cálculos para sabermos, afinal, em que ponto da estrada os carrinhos A e B se encontrariam. E ela chorando. Por quê?, eu perguntei com irritação na voz, você tirou oito! E ela, rosto vermelho de lágrimas: essa nota pode atrapalhar meus planos para estudar medicina, você não entende. Não entendia mesmo. Não entendi nada. O vestibular era dali a dois ou três anos, eu não tinha a mais mínima ideia de qual profissão escolher; eu, que aos sete queria ser empregada doméstica, aos oito bailarina, aos nove professora, aos dez professora de inglês, aos onze aeromoça, aos doze guia turística, aos treze diplomata e dos quatorze aos dezoito só queria mesmo saber de beijar os meninos bonitinhos da cidade, mesmo já estudando Comunicação Social desde os dezessete. Portanto, eu estava na fase do beijo e das festas e ela já preocupada, há muito tempo antes, com seu objetivo principal: ser médica. Parei. Era admirável, para mim, imediatista, ver alguém pensar com tanta antecedência. Eu, que entre a porta de casa e a padaria a três quarteirões, já pensei em mais três profissões para exercer. Eu, que entre o quarto e o banheiro, faço um desvio para a cozinha, depois para a lavanderia e depois para a sala e não me lembro mais para onde estava indo quando saí do quarto. Eu, que começo o dia determinada a fazer meu negócio crescer e vou dormir pensando que talvez ainda dê tempo de me tornar astronauta – ou psicanalista. E ela, chorando na minha frente, sabendo desde criança o que queria e o que deveria fazer para chegar lá. Em vez de chorar, vamos para uma festa! (sempre havia uma) ­– tentei animá-la, ao que ela chorou ainda mais: não sabia ir a festas, não sabia o que fazer em uma festa e era feia. Puxei-a para um espelho, fiz ela olhar bem para a cara dela, enchi-a de beijos enquanto dizia “mas olha como você é linda!” E fomos para uma festa. Se não exatamente naquele dia, em outro. E em outros, sem que ela perdesse o foco da medicina, que cursou, em uma das melhores faculdades do país (e eu estava lá, de mãos dadas com ela, esperando o resultado), mas não concluiu, porque a vida é besta. Eu, sem perder o foco das festas, entendi que não precisava ser reprovada na maioria das matérias para poder frequentá-las, ainda que sem a certeza da medicina ou do que quer que fosse (até hoje).






domingo, 18 de dezembro de 2016

Procura-se uma parteira


Como me parir aos quarenta anos, com o cordão enrolado no pescoço, os pulmões cheios de mecônio, sentada em uma posição da qual não consigo sair sem ajuda, enquanto a eu parturiente tem pressão alta e nem um mísero milímetro de dilatação? No abraço das afogadas, não identificamos a parasita e a hospedeira, eu feto preciso da não dilatação, eu parturiente da posição sentada, e seguimos unidas, fingindo uma alegria em um resto de conforto que não conseguimos mais fingir que existe. Posso sair homem, posso sair mulher, posso sair pobre ou rica, gorda ou magra, advogada ou médica, solteira ou casada, loira ou morena, burra ou inteligente, mas é tão grande o medo, com a morte pelo menos não há decisões a serem tomadas, se existisse um Deus que me tirasse o livre-arbítrio para ele eu rezava, livrai-me, Senhor, do livre-arbítrio e decida o melhor por mim, algo que me permita ao menos respirar sem esse cordão em volta do pescoço. Que eu possa me parir e chorar, agora do zero, tudo de novo.



quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Desarmamento


Aqui estão: minhas armas. Não lutarei mais e por motivo algum. Não há nada mais que eu possa carregar: uma metralhadora, um revólver, uma faca, um soco inglês, uma caneta, um sorriso, uma pena. Que tudo fique como está: gramado sem pés que o pisem, pessoas dormindo sobre jornais nas ruas, contratos vitalícios com operadoras de telefonia e TV a cabo, meninas estupradas pelos pais e padrastos e tios, automóveis acima das pessoas, crianças roubadas nas ruas, celulares sem sinal, aposentadoria aos noventa anos, trânsito em julgado após doze anos, carros com preços de imóveis, imóveis com preços que nem sei pronunciar, bolsas com preços de carros, carros carros carros, o dedo do meio dos motoqueiros e dos motoristas, lanche feito de isopor com aroma de peito de peru defumado, o fim da filosofia e da sociologia, o caixa dois, três e quatro, o dinheiro do cafezinho e das joias,  árvores derrubadas, os juros, cachorros mortos a pauladas, minhas feridas abertas, todas, que deixarei expostas às moscas, debaixo do sol no meio de um dia de verão, na rua, no asfalto, no concreto, até que explodam e vazem minha tristeza fétida por uma avenida de trinta mil reais o metro quadrado, no mínimo. 








quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Nuvens


São nuvens opacas e densas que escondem o azul. Um bloco que ameaça, mas não desagua. Agora vai, penso, mas o agora não chega. Nuvens cada vez mais prenhas, mais cinzas, mais úmidas, mas que não se permitem. Olho e vejo meu ventre no espelho, nenhuma brecha para a fuga. Por onde sairão os nossos rebentos? Nenhum tempo mais para um aborto, precisamos parir esse líquido todo, mesmo que saia uma gosma verde e cheirando a bosta, mesmo que nos matem, mesmo que nos queimem, não há volta. Vai chover. Em algum momento vai chover e estarei na rua, descabelada e nua, com as pernas abertas, entregando ao mundo, aos berros, o que carrego em mim.






terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Preciso te contar uma verdade


É por medo que seguro tua mão. É por medo que grito. E você pensando que estou te guiando. E você pensando que estou brava. O ursinho que você solta logo depois que pega no sono vem para o meu colo. E não é para deixar o quarto arrumado nem por distração que o seguro contra o meu peito. É porque não sobrou ninguém. Eu o aperto. A imagem de São Francisco, de São Bernardo, da Mulher Maravilha, do John Lennon, nada. Não sobrou nada, só o ursinho que você soltou quando entrou no sono, quando é maior a minha vontade de entrar debaixo da cama e chorar. Se você ainda usasse chupeta, talvez eu também a pegasse para a minha boca, meus olhos fechados, nem mesmo encontro alguém para quem rezar. Olho você no sono de quem acredita estar protegido. Por mim. E finjo que você pode acreditar. E diminuo diante da minha farsa, penso em me esconder na secadora, no armário do banheiro, na gaveta de meias, na mala que não levamos para viagem alguma porque não viajamos. Penso em fugir para te livrar de mim, do meu medo, da minha impotência, do meu corpo que engana. Não sei te guiar, nem mesmo quando pego na tua mão para irmos até a padaria. Nem pão há para cada um de nós. Como te explicar que não há nem pão para cada um de nós? Não explico, mas é também por isso que não encontro para quem rezar, e me afundo mais um pouco no faz de conta que criamos há tanto tempo. Te devo desculpas, um pedido de sinto muito, não sei como dizer o que te devo, nem mesmo posso dizer que fiz o melhor que pude. Porque não fiz, não faço, talvez nem farei. Por medo, principalmente por medo. O grito que não sai de mim, o grito que você não escuta, é ainda mais assustador. Nisso, você pode acreditar.




sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Adivinha


Se você tocasse violão, podia, agora, enquanto estou embrulhada na cama com medo de levantar, tocar algo para mim; eu te olharia encantada pensando como alguém consegue tirar música de um instrumento?, e talvez eu sorrisse e sentisse, por um segundo que fosse, que a vida, afinal, não pode ser assim tão assustadora. Se você cozinhasse, podia, agora, tirar esse queijo quente da minha frente, que fiz com um pão cuja idade não sei nem calcular, quando foi a última vez que fui até a padaria?, e me puxar pela mão para me mostrar o molho que tinha preparado para eu comer com uma massa levinha e um vinho que você iria abrir já, porque estamos aqui, e isso basta. Se você lesse poesia, podia, agora, me tirar desse sofá e da frente da tevê, para me ler um trecho do Helder, do Bandeira, da Cora ou da Sophia, qualquer um, qualquer trecho, desde que fosse para dizer em seguida, ou antes, que tinha lido e pensado em mim, um trecho desses que nos tiram o fôlego por um instante e nos fazem olhar o assombro. Se você. Se você soubesse que é para você que escrevo, você, viria?