sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Lanche da tarde

A barata ia passando pela sala a caminho da cozinha quando seus olhares se cruzaram: só preciso de um pouco de açúcar. A mulher balançou os ombros, os olhos ainda cravados no inseto: que leve o que puder carregar. O som da tevê ao fundo, alguém ensinando uma receita prática com queijo e goiabada. A barata mostrou-se interessada, a mulher percebeu nos olhos do bichinho: não tenho mais queijo e goiabada, há muito tempo. As anteninhas se abaixaram. Não tenho mais crianças que gostem desse doce, a mulher tentou explicar, mas a barata já estava caminhando de novo. Ei!, a mulher precisava continuar; mas a barata já estava na despensa, equilibrando-se debaixo de um quilo de açúcar. 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Dia de Natal

Às vezes, penso que escrevo para este pé.
(António Lobo Antunes)





Porque um coração de mãe vive rasgando, milimetricamente sendo rasgado, diariamente, mente, mente, mente, as perninhas magrelas sendo ajeitadas na prancha pelos bombeiros, uma estrada vazia, um carro amassado com as rodas para cima, uma mulher tremendo no canteiro, e as perninhas, as perninhas na prancha, as perninhas amarradas, as perninhas que não poderiam ser machucadas, deus?, é dia de natal, deus?, as crianças deveriam ganhar abraços, beijos, presentes e comida quentinha, as perninhas vistas de longe mas o suficiente para aparecerem no meu sonho, na salada do meu almoço, no sabonete na pia, nas linhas de um caderno em branco. 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A grande prisão

Poder ver o mundo só a partir dos próprios olhos é como viver numa prisão



E se, num só dia, algumas poucas horas para uma vida inteira, ela pudesse ver o que vê aquela mulher com o cabelo per-fei-ta-men-te penteado? Como é o mundo de uma mulher que não tem um único, nem mesmo um meio fio de cabelo fora do lugar? E os óculos feitos para aquele formato de rosto que não escorregam pelo nariz? Nenhuma glândula capaz de produzir uma gota de suor. Unhas milimetricamente pintadas e brilhantes. O ouro certo nas orelhas e dedos certos. A mulher conduzida por um motorista que deixou Bangladesh com os pés ainda tão pequenos, apedrejado pelos coleguinhas na nova escola: FOB! O menino largado na fronteira pelo exportador, sem importador que por ele quisesse ser responsável. Como seria? Por um só dia.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Temperos

Segunda-feira. O telefone toca às dez da manhã, pontualmente, como nos últimos dez anos: filha, vou fazer peixe, quer vir almoçar com o papai? Eu não como peixe, papai, lembra?, mas eu vou e como a salada e o arroz e o feijão. Então vou caprichar no tempero do feijão, minha filha, com coentro e linguiça. E pontualmente, como nos últimos dez anos, ela chega à casa paterna ao meio-dia, carregando a salada, o arroz e o feijão com coentro e linguiça. Além da pescada branca, o peixe preferido do pai. 

...

Gostou do peixinho, minha filha?

Muito, papai.

E ele a serve de uma fatia de pudim de leite, que ela deixou pronto no domingo. 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Descanso

Um dia de cama desarrumada e roupas sujas no chão. Descanso para a escova de cabelo e a bolsa de maquiagem. Perfume da pele. Tempo para beijar e abraçar bem apertado, doído até; quem sabe um sorvete que pingasse no sofá ou no tapete para testemunhar que ali, numa tarde preguiçosa, o amor respirou. 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Prometo dizer a verdade

Invejei o sono dele desde a primeira vez em que dormimos juntos. Dezenove anos e dez meses. O dia ainda não havia me deixado e já ouvia a respiração ao lado, profunda e compassada, como se nunca nada fosse capaz de aborrecê-lo. Dezenove anos e dez meses com uma respiração sempre com...pas...sa...da...men...te indolor. Tantas noites me contorci na cama para terminar com a cabeça sufocada entre os joelhos envoltos nos meus braços. E ele respirava. Naquela noite, eu só precisava ouvir um grito dele, desesperado e derradeiro, com um pedido de desculpas. Eu queria aquele grito, precisava daquele grito: estava cansada dos seus silêncios. E se não o salvei foi porque o arrependimento veio com o mesmo atraso inócuo do pedido de desculpas.


Que me levem a júri, me condenem, me encarcerem, me batam, me pisem, me arranquem a pele. O meu alívio é saber que o mundo não o carrega mais.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Apelação

Nove badaladas na Sé cinza, garoenta e fedida. Dois pombos roliços disputam o mesmo buraco no beirado do Palácio da Justiça. Um desembargador precisa de um café quente, forte e sem açúcar: uma pauta com duzentos e cinquenta julgamentos e uma noite mal dormida por causa da tosse da esposa. Um jornaleiro que deseja boa sorte a quem passa por ali não sabe que a sorte só estará de um lado. O desembargador que dormiu mal ainda não sabe se responsabilizará o médico que apertou demais o fórceps no parto da mulher cujo nome ele nem mesmo lembra. A mulher que tentou engravidar por cinco anos e saiu da maternidade com os braços vazios. A mulher que está no fundo da sala de julgamento, mas que ele não conhece. 


terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Pequena prece

Se acreditasse em Deus, talvez meu único pedido a ele (Ele?) fosse para que me ajudasse a não acreditar em mim. Não nos meus desejos e sentimentos. Não, não é isso. É a descrença naquilo que a minha pessoa pode e está. Que me restasse apenas a crença no que sou. E o que sou ninguém vê, ninguém toca, ninguém escuta, ninguém alcança. O que sou é vapor. E nada além disso me interessa. 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Filhos do acaso

Lá vem ela de novo, as veias cinzas e gordas dos pés quase rasgando a pele, um saco plástico transparente sobre camadas de roupas escuras da sujeira das ruas, os cabelos duros como pelos de ratazanas, a pele do rosto sulcada e em cada sulco o cheiro da indigência: mijo, merda e feijão podre. Ela me estende a mão, a náusea se enrola na minha língua, ela me chama de filha, o que eu não sou - minha mãe tem a pele clara e limpa e cheirosa e não anda pelas ruas com as mãos estendidas - mas poderia ter sido. Por que eu não poderia ter sido?

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Um momento de Luciana Gerbovic, por Juliana Giantin OU [...]

O que se é só se pode encontrar no que não é dito, nas culpas deixadas dentro, nos castigos que se vão escolhendo.
(Nuno Camarneiro, em Debaixo de Algum Céu)


Mamãe, faz meu tetê, mamãe, também quero tetê, mamãe, já fez meu tetê?, mamãe, quero fazer xixi no vaso, mamãe, cadê as minhas petas?, mamãe, fiz xixi no chão, mamãe, e o meu tetê?, mamãe, quero tetê já!, mamãe, ele pegou as minhas petas, mamãe, ele me empurrou, mamãe, ele me bateu primeiro, mamãe...

Nesse momento ela se sente presa numa teia de aranha estridente, olha para a porta do elevador, para as janelas enredadas, corre para o banheiro e tranca a porta. O grito na iminência de escapar pelos vãos dos dentes, por isso o esforço para manter a boca fechada.

Eu me lembro da minha mãe assim, como Luciana, trancada no banheiro, pedindo um momento de paz para mim e minha irmã dois anos mais nova. Eu me lembro do dia em que ela demorou para abrir a porta, eu e minha irmã nos enfrentando por causa de uma boneca, uma puxando o cabelo da outra, ela me jogando contra a parede, eu revidando e empurrando-a contra a escada, ela caindo, eu gritando, ela chorando, minha mãe abrindo a porta, minha irmã gritando, eu chorando, minha mãe berrando, minha irmã lá embaixo, eu correndo em círculos, minha irmã gemendo, minha mãe descendo, eu atrás, minha irmã indo para um hospital com alguma coisa quebrada que não consertou mais.

[...]

Eu, minha mãe e meu pai também presos numa teia, só que silenciosa. E venenosa. Uma célula assassinada a cada minuto.

Minha irmã num caixão e minha mãe conseguiu me dizer não foi sua culpa, com um abraço duro. O abraço do meu pai foi macio, porém mudo.

[...]

Vivi anos sem palavras. Era como uma tartaruga presa num aquário sem água. Éramos. Ainda sou, agora trancada numa UTI infantil em busca de cura e sorrisos – oi, tia Juliana! Obrigada, Doutora Juliana!; cada fracasso um novo tombo na escada.

[...]

Sua irmã teria orgulho de você, minha mãe conseguiu me dizer uma vez, ao me ver chegando de um plantão de setenta e duas horas. Não, ela não teria. Se eu não a tivesse empurrado, ela não teria uma irmã médica, mas pintora. Ao menos uma tentativa de artista plástica.

É insuportável chegar ao extremo do silêncio, meus quadros ficam pela metade, como o corpo da minha mãe. Pinceladas inacabadas, como o sorriso do meu pai quando foi embora de casa. Ele, que ainda tenta me ver todo Natal: não vai dar, pai. É nessa época que conheço o mundo fora do aquário. Passaportes carimbados e passagens sem acompanhantes.

[...]

Não consegui ter filhos. Há muito silêncio dentro de mim. Não o silêncio que minha mãe procurava naquela tarde. Não o silêncio que Luciana procura trancada no banheiro, mas o outro:

[...]

aquele que a apavora.

Aquele em que Luciana pensa quando os meninos finalmente silenciaram, que a faz sair correndo do banheiro com o coração paralisado por uma mente materna cruelmente imaginativa – uma criança embaixo de uma estante, uma rede de proteção que não funciona e um filho despedaçado no ar - aquele que minha mãe sentiu e que Luciana julga ser incompatível com o ato de respirar. Mas minha mãe respira. Tantas mães respiram. Eu respiro.


Luciana podia ter aproveitado mais a quietude no banheiro, até um banho com água bem quente seria possível, os meninos apenas tinham encontrado o programa favorito na tevê, sentados lado a lado como dois amigos, incapazes de entender a mãe parada na sala, com o pavor nos olhos por causa de um silêncio que ela mesma havia pedido.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Mentiras de domingo


Esqueci um documento impresso na gaveta do escritório, foi o que ele disse para ela no domingo à tarde. Ela enxugava a louça do almoço quando ele a beijou na testa. Volto logo foi a última frase dele antes de fechar a porta.

Ela largou tudo por terminar na pia e foi se olhar no espelho. O culote crescia a cada dia, e a cada dia mais mole. Dobras na barriga. Unhas descascadas e cabelos brancos esperando uma folga para o cabeleireiro. Estava feia. E chata. Só reclamava do salário que não dá conta dos boletos. E da culpa de não ficar tão perto dos três filhos como queria. E do cansaço do final de semana, com filhos, faxina e tanta comida para fazer. E do cansaço do resto da semana. O eterno cansaço de uma vida adulta.

Ele iria demorar, ela sabia, e pela primeira vez, na frente daquele espelho, sentiu-se feliz por ele.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Manchas


O café derramado na página cinco do livro. Literatura portuguesa faz a alma verter as águas do Tejo. Ela se despedaça, como a luz de Lisboa, para em seguida se juntar e expandir. A leitura de um fole. Ela não se importa com as páginas molhadas e amarronzadas. São as marcas de uma manhã que ela classifica de feliz. 

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A invenção da segunda-feira

Sabe o que é? A gente se cansa. Uns dias mais, outros menos, mas a gente se cansa de ver, ouvir, falar, sentir, tentar, agir e gozar tão pouco. E então a gente vai pro banco da praça, debaixo de chuva, a praça vazia de pessoas, só alguns passarinhos cantando nas árvores, como a gente canta no chuveiro, sabe, para desanuviar? Porque até passarinho cansa. Meu cachorro não se levanta algumas manhãs, só me olha, nossos desânimos cruzados, e se mantém deitado. Sinto muito por você ter consciência, ele diz. Hoje, por exemplo, ele não se levantou. 

domingo, 24 de novembro de 2013

Você


Na impossibilidade de se extrair o pus do mundo, com os dedos vermelhos ela espreme uma espinha em frente ao espelho rachado. Você vive como se não fosse morrer, ela com a morte colada às orelhas. É por isso que ela chora e você não entende. A morte gri-ta!: vamos todos acabar com vermes no cu. Num mundo de putas e banqueiros, foram elas que tiveram os filhos ofendidos. Você não entende porque não é justo – ao menos para ela. E daí? E daí? E daí?! - de quem é essa voz? Ela tenta tapar os ouvidos, não sabe para onde ir – porque não há para onde ir. Entra no banho e as vozes não derretem com o vapor. Outro vidro rachado e mais um amanhã como tantos hoje.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Chuva de verão

A pomba veio para o peitoril tentando se esconder da chuva. Já estava molhada. Ela, com uma xícara de café recém-feito nas mãos, achou a pomba feia. Molhada, ficava tão magrela. Mas os olhos se cruzaram. O castanho dela e o arroxeado da pomba. Ela pensou em oferecer um café, um chá, mas parece que uma pequena cobertura bastava para o aquecimento da pomba. E para o dela, nem café, nem chá, nem bolo de fubá saído do forno. 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Extinções

Ele quer viver uma aventura sozinho, anuncia com um dinossauro nas mãos, enquanto o mais novo pergunta se ele é um papagaio. Não, sou um dinossauro, já disse! Você não tem cauda, não pode ser um dinossauro. É claro que tenho: se sou um dinossauro, eu tenho cauda. Você não tem, então não pode ser um dinossauro. Eu tenho porque eu sou. Ei, você é meu pai? Não, sou o Homem de Ferro. Então eu sou o Batman. Não, você é o Lanterna Verde. Não, se sou verde eu sou o Hulk.

[...]



Sobramos na sala, eu e o dinossauro caído. Extintos. Não se coloca pessoas na vida impunemente. 

terça-feira, 19 de novembro de 2013

To do list

E da lista dos afazeres, ela não apagava nada, nenhum deles, mesmo aqueles que não faria num futuro próximo ou nem tão próximo. Só para lembrar que não tomou a vitamina B12 que lhe foi recomendada pela vizinha (ou irmã?), não se matriculou num curso de japonês, não comprou uma coleira nova para o cachorro, não pesquisou sobre uma viagem para a Índia, não comprou um CD da Cesaria Évora, não assinou o jornal, não fez o curso de cozinha rápida e prática, não foi ao dermatologista, não se inscreveu num site de relacionamento amoroso, mas comprou uma rede e a instalou na varanda do apartamento. Que bom. 

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Maratona e saudade numa tarde de verão

Sempre chega um tempo, um tempo qualquer para uma sucessão de atos, que a gente só sabe que chegou quando já foi. E chegou o tempo de eu não ter mais tempo para os almoços com minha avó. As noites de sábado só terminavam nas manhãs de domingo e os almoços viravam cafés da manhã e as tardes eram preenchidas com lembranças e telefonemas prometidos na noite anterior e eu ainda não conhecia a agonia do início do que se determinou semana útil (?) e não pensava sobre a impossibilidade de se voltar para o ponto em que havíamos deixado a corrida. Eu não sabia que corríamos. Numa tarde à toa, quando também não sabia que tardes à toa correm, eu te liguei só para dizer que te amava. Você suspirou surpresa, agradecida e tímida disse que também me amava. É claro que sim, você lambia as solas dos meus pés infantis. Mas o que eu devia mesmo ter feito era ter te levado para tomar um sorvete numa tarde quente como a de hoje. 

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Caleidoscópio

Na maioria das vezes são estrelinhas amarelinhas como os piscas-piscas de dezembro que ela tanto gosta. Às vezes raiozinhos verdes e rosas, ah, a Estação Primeira que tanto deseja ver de perto a ponto de tocar. Mas agora são figuras triangulares e circulares, olha, parece uma flor, laranjas, tão difícil aparecer essa cor, amarelas, verdes, azuis...Ela ri sozinha na cama, lembra do avô que lhe trazia aqueles tubos de presente, como chamam mesmo? Os olhos fechados não vêem as orelhas do cachorro em sinal de interrogação, ele deve pensar que ela é boba, mas não, não é não. 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Bendita sois vós

Padre?...Como começa? Padre, eu pequei? Ou...venho pecando? Só sei rezar o Pai-nosso, e não rezo desde que minha mãe morreu: treze anos e quatro meses. E ela me ensinou essa oração com tanta paciência...mas eu não rezo, só entro na igreja para casamentos e batizados, como muita carne sem me preocupar com o sofrimento do animal, não compro orgânicos, uso desodorante aerossol, não reciclo, imprimo os e-mails que gosto, não dou caronas, detesto transporte público e amo como se fosse gente o carro com ar-condicionado que comprei em sessenta parcelas. E se tivesse dinheiro comprava um casaco bem peludo, de pelo de bicho mesmo, que nem um de coelho que vi outro dia. Ah, comprava. O que mais é pecado, padre? Hein? Eu adoraria ver os peitos da minha vizinha caírem só pro meu namorado não olhar mais pra eles. Ficaria feliz se as coxas dela virassem duas rolhas. Não entendo porque meu chefe é chefe e o salário dele não é o meu. Já cuspi no copo d’água que ele me pediu pra buscar no meio de uma reunião, eu e ele sentados um ao lado do outro, mas quem teve de levantar fui eu, como eu pedia pra minha mãe, coitada, que se levantava do sofá e me trazia o copo cheio, toda sorridente, enquanto eu não perdia uma cena sequer da novela. O senhor entende do que estou falando, padre? Quem tira a bunda da cadeira quando o senhor sente sede? Perdão, padre, perdão, não é disso que se trata. Passo o dia elaborando planilhas e calculando impostos pra no fim do mês não sobrar nem pra um casaco de pelo de coelho. Minha coluna não suporta mais apoiar meu pai. Meus olhos não sustentam mais a visão daquele homem torto do sofá para a cama e da cama para o sofá. E eu acabei de fazer trinta anos, padre.  Culpa da minha mãe que se casou com alguém tão mais velho. E me deixou aqui, eu e ele. Ou melhor, só eu. Ele não morre? Como são feitas essas escolhas, padre? Alguém assinala um xis vermelho na vítima para que a Morte a encontre sem dificuldade? Por que colocaram essa marca na minha mãe antes dos cinquenta anos? Será que não era pro meu pai, não tem possibilidade de erro? Viu, padre? O que vocês farão comigo? Quantos Pais-nossos? Ave Maria não adianta que eu não sei, esqueci, não achava graça na Maria cheia de graça, dizia benditos sóis, imaginando mais de um a iluminar a Terra, era uma confusão na minha cabecinha, minha mãe ria e me corrigia, mas eu não guardava, tantos sóis ali brilhando, a quentura da minha mãe ao meu lado na cama e eu me perdia e me esqueci, por isso minha remissão não pode vir com a Ave Maria, padre, invente outra coisa. Chibatadas, talvez. Cem. Mil. Eu vim aqui pra isso, peito e costas nus, não podia criar um filho agora, o senhor não entende, não é? Acha que a vida começa na concepção, um espermatozoide invadindo um útero, mas e aqueles meninos que vi no caminho pra cá, carcaças enroladas em cobertores, olhos perdidos em cachimbos, babas escorrendo de bocas congeladas em sorrisos idiotas, já começaram a viver, padre? E suas mães e seus pais, já terminaram? As crianças internadas com câncer, abraçadas a bonecas carecas como se isso diminuísse a dor, vão sentir o vento no rosto quando? E a vida do meu pai, paralisado num gemido, já acabou? Quando começa e quando termina? A vida acontece nos descansos da dor, é isso? Alguém tinha que decidir, padre, fui eu. Porque só eu sei o quanto aguento carregar no meu útero. Foi rápido e o médico sorriu: será como se nada tivesse acontecido. Como se nada tivesse acontecido...Agora é a sua vez, padre, de sentenciar, mas eu já disse: nada de Ave Maria, pois os sóis ainda giram dentro de mim. 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Made in China

Um amor feito na China, para não durar, como as cadeiras que fazem desabar quem nelas senta pela décima vez. Ou as malas que espalham roupas e frascos de perfume na quinta viagem. Só ela – ingênua ou desesperada? – não percebeu. E não adianta tentar consertar, sua boba. Compre outra cadeira e outra mala. Você nem escuta, não é? E caminha na chuva – cena tão clichê – sem perceber as crianças descobertas na calçada agarradas a mamadeiras cheias de Coca-Cola. O veneno se espalha pelas veias – delas e dela – , galerias e marquises, nem todos conseguem se esconder. Só a senhora com chapéu turquesa e quatorze anéis em oito dedos sorri. 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Dicionário

O hoje que poderia ser nunca. Ou para sempre. Certo e errado. Branco e preto. Amor e ódio. Pinguins no norte. Renas no sul. Derrube cada tijolo colocado em você até hoje. Tente tocá-los: eles não existem. Sol e chuva. Frio e calor. Há balas no meu jardim. E flores na minha geladeira. Não há jardim, mas azeitona. Não é uma geladeira, mas uma gurumela. Xurumim. Pitiburu. Curutuco. Eu e você: eles. Eles: nós. Tenho escamas. Nasci amanhã. Morrerei ontem. 

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Bons dias

É preciso comprar uma flor. Sorrir para um desconhecido. Segurar a porta do elevador para quem entra. Ou sai. Dar licença. Desejar bom dia, boa tarde, boa noite. Não buzinar. Ou não buzinar tão logo o semáforo esverdeie. Tomar café. Ou chá. Escolher um amigo e dizer-lhe eu te amo. Imaginar-se no lugar da faxineira. E dos presidentes (qualquer um). Comer doce. Ou gordura, mesmo que pouco.  Ler uma poesia sem querer entendê-la. Enxergar-se em outro corpo. Enxergar-se sem corpo algum. Enxergar-se dentro de um caixão, duro, seco, mor-ti-nho. E se perguntar: e daí?

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Vitrine

O sapato vermelho envernizado brilhava como um planeta. Ela chegou tão perto que gelou a ponta do nariz na vitrine. Virou a cabeça pequena e delicada para a esquerda, depois para a direita, numa tentativa frustrada de ver o planetinha em trezentos e sessenta graus. Olhou para seus pés metidos em sapatilhas desbotadas, sorriu um sorriso que me fez pensar que ela saltitaria; mas não. O sorriso também descoloriu e ela me deixou ali. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Depois do meio...


Sim, você era desafinado e arranhava o violão, mas eu gostava. Você ali, numa ponta do sofá, eu na outra, com os dedos dos meus pés quase encostados na tua perna. Você ficava nervoso, avermelhava, sorria para mim como quem se desculpa. Eu gostava, seu bobo, não precisava daquele sorriso. No auge da tua tensão eu beliscava tua coxa com o dedão e o segundo dedo só para ouvir você dizer pô, isso é sério. Eu sei que era. Você fez uma música para mim: Depois do meio. Como eu não acharia isso sério? Sabe o que vem depois do meio?, foi a tua pergunta afogada. Eu sei, eu entendi, mas você não deixou a música escrita em nenhum papel, e isso é ainda mais sério.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Delas ou do café da tarde


Quatro da tarde, hora do bolo, das mulheres em volta da mesa, só elas, talvez as crianças. Quatro da tarde, a força feminina ocupa todos os cantos das casas, do mais alto ao mais baixo. Do mais à esquerda ao mais à direita. Quatro da tarde, quando elas são donas das paredes e de cada uma de suas células.  Quando as risadas estão livres das lágrimas. O ar faz uma reverência quando elas, só elas (talvez as crianças), estão em casa. O sol começa a perder o brilho e a quentura para o bolo e as risadas na mesa. Diz até amanhã, elas não escutam. Às quatro da tarde, a certeza do dia seguinte não interessa.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Fome

Olha, aquela nuvem parece um dinossauro.

E aquela um pão de mel recheado com doce de leite.

E Deus?

...

E Deus?


Olha, acho que ele comeu um pedaço do pão de mel.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Aqui na terra como no céu

Eu não entrei aqui para rezar, mesmo porque não sei. Mesmo porque não creio num Deus e me deprimo com os rostos dos santos. Não quero ser santa, só procuro um silêncio capaz de desfragmentar meus pensamentos. Esqueci a ordem dos fatos: você me chamou de leoazinha antes ou depois de me beijar? Para uma menina com uma flor com voz de Cortázar no meu ouvido foi antes ou depois da minha nudez? Eu ri quando você pronunciou Nounouse, lembra? Ou chorei? E sonhamos com uma Paris aonde nunca chegamos. Choro com a imagem da Torre Eiffel e não gosto mais de ursinhos de pelúcia. Aqui é escuro. Talvez eu precise aprender a rezar. 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Vapor

É que o vapor da água quente me faz bem, fico numa tentativa de transformar em gotículas essa agonia de não saber se trocaram o curativo na testa do meu filho porque passei o dia fora cuidando de problemas alheios para pagar o convênio médico. E outras contas mais. Mas o que se liquefez foi a minha ilusão de que os adultos são donos do próprio coração. Não eu, que tenho um coração que dorme com tosse em duas caminhas. Não eu, que tenho um coração esmagado por um cansaço que eu desconhecia. Minha mãe parecia ser mais sorridente cuidando do nosso almoço. Tento respirar dentro dos táxis enquanto ordeno itinerários com vontade calada de dizer me leve para algum lugar que não conheço. Por favor! E meus cadernos continuam em branco. E ainda sonho com varandas. E ainda não consegui fazer o supermercado. E ainda sinto medo, tanto medo. 

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Varanda

Fecho os olhos na lentidão da neve em degelo. Sinto o frio escorrer pela minha nudez e você levou meu cobertor. Não sei fazer fogo. Não sei fazer nada útil. Só sei sentar na varanda e olhar a cidade para me aquecer.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Janelas abertas

Sei lá...é algo assim...estranho...uma fome dentro da gente...um estômago antropófago...uma desaprendizagem...uma placa de “vende-se” no peito...sinapses em roda-gigante...um  “e se?” incessante...uma miniatura de mim perdida nas minhas entranhas...sem rota de fuga...sei lá...só sei que dormi com a janela aberta para não perder o nascer de um dia novo. 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Um analgésico, uma cachaça ou Lobo Antunes, por favor...

O carro abalroado dói. O choro da criança dói. A birra da criança dói. A imagem dos reféns no Quênia dói. A notícia que chega da Síria dói. A criança dormindo na rua dói. O lucro dos bancos dói. O preço do metro quadrado dói. O Iphone grudado nos nossos ouvidos e olhos dói. A existência da Segunda Guerra dói. A Iugoslávia despedaçada dói. O esquecimento da Armênia dói. A ganância das grandes corporações dói. O sumiço do silêncio dói. O som da televisão dói. O andamento do Judiciário dói. A falta de educação no trânsito dói. Não ser um camaleão sem consciência da própria camuflagem dói. Não poder tirar o dia pra ler Lobo Antunes dói. Ler Lobo Antunes dói. Tomar suco embalado que dura vinte meses dói. Falta de empatia dói. Fila no hospital dói. Mais um shopping na cidade dói. A fome na África dói. A AIDS na África dói. Mais um carro nas ruas dói. Atendimento de call center dói. Propaganda de celular dói. Ter uma hora de almoço dói. Ter cartão de ponto na empresa dói. Dar um tapa no bumbum do filho dói. Criança espancada dói. Velho abandonado dói. Bicho maltratado dói. O preço da comida dói. Falta de comida dói. A lista dos mais lidos dói. Minha cabeça, minha coluna, meus pés, minhas pernas, meus braços, minhas mãos, meus olhos, meu estômago...salve-me, Lobo Antunes, salve-me.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Nana, nenê

É como se você colocasse seu coração, seus pulmões, seu estômago, seus rins, seus braços, suas pernas, seus pés e suas mãos na cama, os cobrisse e dissesse boa noite. Mas como se isso não bastasse é como se fosse preciso passar a noite ao lado deles para ver se não deixam de se mexer. Porque não há, agora, maior pavor no mundo, além do mundo, do que vê-los sem se mexer. É preciso um sopro dos pulmões ao menos. É preciso que o coração dê um pulinho e que os rins filtrem uma gota que seja. Porque o medo é maior que o mundo. Porque o amor é maior que o mundo. Porque não é amor. É isso, algo para o qual não foi inventada uma palavra. Sinto muito. E não é nada disso porque se fossem seus esse coração, esses pulmões, esse estômago, esses rins, esses braços, essas pernas, esses pés e essas mãos, você não se queixaria se endurecessem. É como se fossem o coração, os pulmões, o estômago, os rins, os braços, as pernas, os pés e as mãos do mundo. Nada antes. Nada mais depois. O Aleph. Ali, hoje, naquela cama, dormindo, depois de você ter lido uma história para ele.