A barata ia
passando pela sala a caminho da cozinha quando seus olhares se cruzaram: só
preciso de um pouco de açúcar. A mulher balançou os ombros, os olhos ainda cravados
no inseto: que leve o que puder carregar. O som da tevê ao fundo, alguém ensinando
uma receita prática com queijo e goiabada. A barata mostrou-se interessada, a
mulher percebeu nos olhos do bichinho: não tenho mais queijo e goiabada, há
muito tempo. As anteninhas se abaixaram. Não tenho mais crianças que gostem
desse doce, a mulher tentou explicar, mas a barata já estava caminhando de
novo. Ei!, a mulher precisava continuar; mas a barata já estava na despensa,
equilibrando-se debaixo de um quilo de açúcar.
sexta-feira, 27 de dezembro de 2013
quinta-feira, 26 de dezembro de 2013
Dia de Natal
Às vezes, penso
que escrevo para este pé.
(António Lobo Antunes)
Porque um
coração de mãe vive rasgando, milimetricamente sendo rasgado, diariamente,
mente, mente, mente, as perninhas magrelas sendo ajeitadas na prancha pelos
bombeiros, uma estrada vazia, um carro amassado com as rodas para cima, uma
mulher tremendo no canteiro, e as perninhas, as perninhas na prancha, as
perninhas amarradas, as perninhas que não poderiam ser machucadas, deus?, é dia
de natal, deus?, as crianças deveriam ganhar abraços, beijos, presentes e
comida quentinha, as perninhas vistas de longe mas o suficiente para aparecerem
no meu sonho, na salada do meu almoço, no sabonete na pia, nas linhas de um
caderno em branco.
segunda-feira, 23 de dezembro de 2013
A grande prisão
Poder ver o
mundo só a partir dos próprios olhos é como viver numa prisão
E se, num só
dia, algumas poucas horas para uma vida inteira, ela pudesse ver o que vê
aquela mulher com o cabelo per-fei-ta-men-te penteado? Como é o mundo de uma
mulher que não tem um único, nem mesmo um meio fio de cabelo fora do lugar? E
os óculos feitos para aquele formato de rosto que não escorregam pelo nariz?
Nenhuma glândula capaz de produzir uma gota de suor. Unhas milimetricamente
pintadas e brilhantes. O ouro certo nas orelhas e dedos certos. A mulher
conduzida por um motorista que deixou Bangladesh com os pés ainda tão pequenos,
apedrejado pelos coleguinhas na nova escola: FOB! O menino largado na fronteira pelo exportador, sem importador
que por ele quisesse ser responsável. Como seria? Por um só dia.
segunda-feira, 16 de dezembro de 2013
Temperos
Segunda-feira. O
telefone toca às dez da manhã, pontualmente, como nos últimos dez anos: filha,
vou fazer peixe, quer vir almoçar com o papai? Eu não como peixe, papai,
lembra?, mas eu vou e como a salada e o arroz e o feijão. Então vou caprichar
no tempero do feijão, minha filha, com coentro e linguiça. E pontualmente, como nos últimos dez anos,
ela chega à casa paterna ao meio-dia, carregando a salada, o arroz e o feijão com coentro e linguiça. Além da pescada branca, o peixe preferido do pai.
...
Gostou do peixinho, minha filha?
Muito, papai.
E ele a serve de uma fatia de pudim de leite, que ela deixou pronto no domingo.
sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
Descanso
Um dia de cama
desarrumada e roupas sujas no chão. Descanso para a escova de cabelo e a bolsa
de maquiagem. Perfume da pele. Tempo para beijar e abraçar bem apertado, doído até; quem sabe um
sorvete que pingasse no sofá ou no tapete para testemunhar que ali, numa tarde preguiçosa, o
amor respirou.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2013
Prometo dizer a verdade
Invejei o sono
dele desde a primeira vez em que dormimos juntos. Dezenove anos e dez meses. O
dia ainda não havia me deixado e já ouvia a respiração ao lado, profunda e
compassada, como se nunca nada fosse capaz de aborrecê-lo. Dezenove anos e dez meses
com uma respiração sempre com...pas...sa...da...men...te indolor. Tantas noites
me contorci na cama para terminar com a cabeça sufocada entre os joelhos envoltos
nos meus braços. E ele respirava. Naquela noite, eu só precisava ouvir um grito
dele, desesperado e derradeiro, com um pedido de desculpas. Eu queria aquele
grito, precisava daquele grito: estava cansada dos seus silêncios. E se não o salvei
foi porque o arrependimento veio com o mesmo atraso inócuo do pedido de desculpas.
Que me levem a
júri, me condenem, me encarcerem, me batam, me pisem, me arranquem a pele. O
meu alívio é saber que o mundo não o carrega mais.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2013
Apelação
Nove badaladas na
Sé cinza, garoenta e fedida. Dois pombos roliços disputam o mesmo buraco no
beirado do Palácio da Justiça. Um desembargador precisa de um café quente,
forte e sem açúcar: uma pauta com duzentos e cinquenta julgamentos e uma noite mal
dormida por causa da tosse da esposa. Um jornaleiro que deseja boa sorte a quem
passa por ali não sabe que a sorte só estará de um lado. O desembargador que
dormiu mal ainda não sabe se responsabilizará o médico que apertou demais o
fórceps no parto da mulher cujo nome ele nem mesmo lembra. A mulher que tentou
engravidar por cinco anos e saiu da maternidade com os braços vazios. A mulher
que está no fundo da sala de julgamento, mas que ele não conhece.
terça-feira, 10 de dezembro de 2013
Pequena prece
Se acreditasse
em Deus, talvez meu único pedido a ele (Ele?) fosse para que me ajudasse a não
acreditar em mim. Não nos meus desejos e sentimentos. Não, não é isso. É a
descrença naquilo que a minha pessoa pode e está. Que me restasse apenas a
crença no que sou. E o que sou ninguém vê, ninguém toca, ninguém escuta, ninguém
alcança. O que sou é vapor. E nada além disso me interessa.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
Filhos do acaso
Lá vem ela
de novo, as veias cinzas e gordas dos pés quase rasgando a pele, um saco
plástico transparente sobre camadas de roupas escuras da sujeira das ruas, os
cabelos duros como pelos de ratazanas, a pele do rosto sulcada e em cada sulco
o cheiro da indigência: mijo, merda e feijão podre. Ela me estende a mão, a
náusea se enrola na minha língua, ela me chama de filha, o que eu não sou - minha mãe tem a pele clara e limpa e cheirosa e não anda pelas ruas com as mãos estendidas - mas
poderia ter sido. Por que eu não poderia ter sido?
terça-feira, 3 de dezembro de 2013
Um momento de Luciana Gerbovic, por Juliana Giantin OU [...]
O que se é só se pode
encontrar no que não é dito, nas culpas deixadas dentro, nos castigos que se
vão escolhendo.
(Nuno Camarneiro, em Debaixo de Algum Céu)
Mamãe, faz meu
tetê, mamãe, também quero tetê, mamãe, já fez meu tetê?, mamãe, quero fazer
xixi no vaso, mamãe, cadê as minhas petas?, mamãe, fiz xixi no chão, mamãe, e o
meu tetê?, mamãe, quero tetê já!, mamãe, ele pegou as minhas petas, mamãe, ele
me empurrou, mamãe, ele me bateu primeiro, mamãe...
Nesse momento
ela se sente presa numa teia de aranha estridente, olha para a porta do
elevador, para as janelas enredadas, corre para o banheiro e tranca a porta. O
grito na iminência de escapar pelos vãos dos dentes, por isso o esforço para manter
a boca fechada.
Eu me lembro da
minha mãe assim, como Luciana, trancada no banheiro, pedindo um momento de paz
para mim e minha irmã dois anos mais nova. Eu me lembro do dia em que ela
demorou para abrir a porta, eu e minha irmã nos enfrentando por causa de uma
boneca, uma puxando o cabelo da outra, ela me jogando contra a parede, eu
revidando e empurrando-a contra a escada, ela caindo, eu gritando, ela
chorando, minha mãe abrindo a porta, minha irmã gritando, eu chorando, minha
mãe berrando, minha irmã lá embaixo, eu correndo em círculos, minha irmã gemendo,
minha mãe descendo, eu atrás, minha irmã indo para um hospital com alguma coisa
quebrada que não consertou mais.
[...]
Eu, minha mãe e
meu pai também presos numa teia, só que silenciosa. E venenosa. Uma célula
assassinada a cada minuto.
Minha irmã num
caixão e minha mãe conseguiu me dizer não foi sua culpa, com um abraço duro. O
abraço do meu pai foi macio, porém mudo.
[...]
Vivi anos sem palavras.
Era como uma tartaruga presa num aquário sem água. Éramos. Ainda sou, agora
trancada numa UTI infantil em busca de cura e sorrisos – oi, tia Juliana!
Obrigada, Doutora Juliana!; cada fracasso um novo tombo na escada.
[...]
Sua irmã teria
orgulho de você, minha mãe conseguiu me dizer uma vez, ao me ver chegando de um
plantão de setenta e duas horas. Não, ela não teria. Se eu não a tivesse
empurrado, ela não teria uma irmã médica, mas pintora. Ao menos uma tentativa
de artista plástica.
É insuportável
chegar ao extremo do silêncio, meus quadros ficam pela metade, como o corpo da
minha mãe. Pinceladas inacabadas, como o sorriso do meu pai quando foi embora
de casa. Ele, que ainda tenta me ver todo Natal: não vai dar, pai. É nessa
época que conheço o mundo fora do aquário. Passaportes carimbados e passagens
sem acompanhantes.
[...]
Não consegui ter
filhos. Há muito silêncio dentro de mim. Não o silêncio que minha mãe procurava
naquela tarde. Não o silêncio que Luciana procura trancada no banheiro, mas o
outro:
[...]
aquele que a
apavora.
Aquele em que
Luciana pensa quando os meninos finalmente silenciaram, que a faz sair correndo
do banheiro com o coração paralisado por uma mente materna cruelmente
imaginativa – uma criança embaixo de uma estante, uma rede de proteção que não
funciona e um filho despedaçado no ar - aquele que minha mãe sentiu e que
Luciana julga ser incompatível com o ato de respirar. Mas minha mãe respira.
Tantas mães respiram. Eu respiro.
Luciana podia
ter aproveitado mais a quietude no banheiro, até um banho com água bem quente
seria possível, os meninos apenas tinham encontrado o programa favorito na tevê,
sentados lado a lado como dois amigos, incapazes de entender a mãe parada na
sala, com o pavor nos olhos por causa de um silêncio que ela mesma havia pedido.
domingo, 1 de dezembro de 2013
Mentiras de domingo
Esqueci um documento impresso na gaveta do escritório, foi o
que ele disse para ela no domingo à tarde. Ela enxugava a louça do almoço
quando ele a beijou na testa. Volto logo foi a última frase dele antes de
fechar a porta.
Ela largou tudo por terminar na pia e foi se olhar no
espelho. O culote crescia a cada dia, e a cada dia mais mole. Dobras na
barriga. Unhas descascadas e cabelos brancos esperando uma folga para o
cabeleireiro. Estava feia. E chata. Só reclamava do salário que não dá conta
dos boletos. E da culpa de não ficar tão perto dos três filhos como queria. E
do cansaço do final de semana, com filhos, faxina e tanta comida para fazer. E
do cansaço do resto da semana. O eterno cansaço de uma vida adulta.
Ele iria demorar, ela sabia, e pela primeira vez, na frente
daquele espelho, sentiu-se feliz por ele.
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
Manchas
O café derramado na página cinco do livro. Literatura portuguesa
faz a alma verter as águas do Tejo. Ela se despedaça, como a luz de Lisboa,
para em seguida se juntar e expandir. A leitura de um fole. Ela não se importa
com as páginas molhadas e amarronzadas. São as marcas de uma manhã que ela
classifica de feliz.
segunda-feira, 25 de novembro de 2013
A invenção da segunda-feira
Sabe o que é? A
gente se cansa. Uns dias mais, outros menos, mas a gente se cansa de ver,
ouvir, falar, sentir, tentar, agir e gozar tão pouco. E então a gente vai pro
banco da praça, debaixo de chuva, a praça vazia de pessoas, só alguns
passarinhos cantando nas árvores, como a gente canta no chuveiro, sabe, para
desanuviar? Porque até passarinho cansa. Meu cachorro não se levanta algumas
manhãs, só me olha, nossos desânimos cruzados, e se mantém deitado. Sinto muito
por você ter consciência, ele diz. Hoje, por exemplo, ele não se levantou.
domingo, 24 de novembro de 2013
Você
Na impossibilidade de se extrair o pus do mundo, com os dedos
vermelhos ela espreme uma espinha em frente ao espelho rachado. Você vive como
se não fosse morrer, ela com a morte colada às orelhas. É por isso que ela
chora e você não entende. A morte gri-ta!: vamos todos acabar com vermes no cu.
Num mundo de putas e banqueiros, foram elas que tiveram os filhos ofendidos.
Você não entende porque não é justo – ao menos para ela. E daí? E daí? E daí?!
- de quem é essa voz? Ela tenta tapar os ouvidos, não sabe para onde ir –
porque não há para onde ir. Entra no banho e as vozes não derretem com o vapor. Outro vidro rachado e mais um amanhã como tantos hoje.
sexta-feira, 22 de novembro de 2013
Chuva de verão
A pomba veio
para o peitoril tentando se esconder da chuva. Já estava molhada. Ela, com uma
xícara de café recém-feito nas mãos, achou a pomba feia. Molhada, ficava tão
magrela. Mas os olhos se cruzaram. O castanho dela e o arroxeado da pomba. Ela
pensou em oferecer um café, um chá, mas parece que uma pequena cobertura
bastava para o aquecimento da pomba. E para o dela, nem café, nem chá, nem bolo
de fubá saído do forno.
quinta-feira, 21 de novembro de 2013
Extinções
Ele quer viver
uma aventura sozinho, anuncia com um dinossauro nas mãos, enquanto o mais novo
pergunta se ele é um papagaio. Não, sou um dinossauro, já disse! Você não tem
cauda, não pode ser um dinossauro. É claro que tenho: se sou um dinossauro, eu
tenho cauda. Você não tem, então não pode ser um dinossauro. Eu tenho porque eu
sou. Ei, você é meu pai? Não, sou o Homem de Ferro. Então eu sou o Batman. Não,
você é o Lanterna Verde. Não, se sou verde eu sou o Hulk.
[...]
Sobramos na
sala, eu e o dinossauro caído. Extintos. Não se coloca pessoas na vida impunemente.
terça-feira, 19 de novembro de 2013
To do list
E da
lista dos afazeres, ela não apagava nada, nenhum deles, mesmo aqueles que não
faria num futuro próximo ou nem tão próximo. Só para lembrar que não tomou a
vitamina B12 que lhe foi recomendada pela vizinha (ou irmã?), não se matriculou
num curso de japonês, não comprou uma coleira nova para o cachorro, não
pesquisou sobre uma viagem para a Índia, não comprou um CD da Cesaria Évora,
não assinou o jornal, não fez o curso de cozinha rápida e prática, não foi ao
dermatologista, não se inscreveu num site de relacionamento amoroso, mas comprou uma rede e a instalou na varanda do apartamento.
Que bom.
terça-feira, 12 de novembro de 2013
Maratona e saudade numa tarde de verão
Sempre chega um
tempo, um tempo qualquer para uma sucessão de atos, que a gente só sabe que
chegou quando já foi. E chegou o tempo de eu não ter mais tempo para os almoços
com minha avó. As noites de sábado só terminavam nas manhãs de domingo e os
almoços viravam cafés da manhã e as tardes eram preenchidas com lembranças e telefonemas
prometidos na noite anterior e eu ainda não conhecia a agonia do início do que
se determinou semana útil (?) e não pensava sobre a impossibilidade de se voltar
para o ponto em que havíamos deixado a corrida. Eu não sabia que corríamos. Numa
tarde à toa, quando também não sabia que tardes à toa correm, eu te liguei só para
dizer que te amava. Você suspirou surpresa, agradecida e tímida disse que também
me amava. É claro que sim, você lambia as solas dos meus pés infantis. Mas o
que eu devia mesmo ter feito era ter te levado para tomar um sorvete numa tarde
quente como a de hoje.
segunda-feira, 11 de novembro de 2013
Caleidoscópio
Na maioria das
vezes são estrelinhas amarelinhas como os piscas-piscas de dezembro que ela
tanto gosta. Às vezes raiozinhos verdes e rosas, ah, a Estação Primeira que
tanto deseja ver de perto a ponto de tocar. Mas agora são figuras triangulares
e circulares, olha, parece uma flor, laranjas, tão difícil aparecer essa cor,
amarelas, verdes, azuis...Ela ri sozinha na cama, lembra do avô que lhe trazia
aqueles tubos de presente, como chamam mesmo? Os olhos fechados não vêem as
orelhas do cachorro em sinal de interrogação, ele deve pensar que ela é boba,
mas não, não é não.
sexta-feira, 8 de novembro de 2013
Bendita sois vós
Padre?...Como começa? Padre, eu pequei? Ou...venho pecando? Só
sei rezar o Pai-nosso, e não rezo desde que minha mãe morreu: treze anos e
quatro meses. E ela me ensinou essa oração com tanta paciência...mas eu não
rezo, só entro na igreja para casamentos e batizados, como muita carne sem me
preocupar com o sofrimento do animal, não compro orgânicos, uso desodorante
aerossol, não reciclo, imprimo os e-mails que gosto, não dou caronas, detesto transporte
público e amo como se fosse gente o carro com ar-condicionado que comprei em
sessenta parcelas. E se tivesse dinheiro comprava um casaco bem peludo, de pelo
de bicho mesmo, que nem um de coelho que vi outro dia. Ah, comprava. O que mais
é pecado, padre? Hein? Eu adoraria ver os peitos da minha vizinha caírem só pro
meu namorado não olhar mais pra eles. Ficaria feliz se as coxas dela virassem
duas rolhas. Não entendo porque meu chefe é chefe e o salário dele não é o meu.
Já cuspi no copo d’água que ele me pediu pra buscar no meio de uma reunião, eu
e ele sentados um ao lado do outro, mas quem teve de levantar fui eu, como eu
pedia pra minha mãe, coitada, que se levantava do sofá e me trazia o copo
cheio, toda sorridente, enquanto eu não perdia uma cena sequer da novela. O
senhor entende do que estou falando, padre? Quem tira a bunda da cadeira quando
o senhor sente sede? Perdão, padre, perdão, não é disso que se trata. Passo o
dia elaborando planilhas e calculando impostos pra no fim do mês não sobrar nem
pra um casaco de pelo de coelho. Minha coluna não suporta mais apoiar meu pai.
Meus olhos não sustentam mais a visão daquele homem torto do sofá para a cama e
da cama para o sofá. E eu acabei de fazer trinta anos, padre. Culpa da minha mãe que se casou com alguém tão
mais velho. E me deixou aqui, eu e ele. Ou melhor, só eu. Ele não morre? Como
são feitas essas escolhas, padre? Alguém assinala um xis vermelho na vítima
para que a Morte a encontre sem dificuldade? Por que colocaram essa marca na
minha mãe antes dos cinquenta anos? Será que não era pro meu pai, não tem
possibilidade de erro? Viu, padre? O que vocês farão comigo? Quantos Pais-nossos?
Ave Maria não adianta que eu não sei, esqueci, não achava graça na Maria cheia
de graça, dizia benditos sóis,
imaginando mais de um a iluminar a Terra, era uma confusão na minha cabecinha,
minha mãe ria e me corrigia, mas eu não guardava, tantos sóis ali brilhando, a
quentura da minha mãe ao meu lado na cama e eu me perdia e me esqueci, por isso
minha remissão não pode vir com a Ave Maria, padre, invente outra coisa. Chibatadas,
talvez. Cem. Mil. Eu vim aqui pra isso, peito e costas nus, não podia criar um
filho agora, o senhor não entende, não é? Acha que a vida começa na concepção,
um espermatozoide invadindo um útero, mas e aqueles meninos que vi no caminho
pra cá, carcaças enroladas em cobertores, olhos perdidos em cachimbos, babas
escorrendo de bocas congeladas em sorrisos idiotas, já começaram a viver, padre?
E suas mães e seus pais, já terminaram? As crianças internadas com câncer, abraçadas
a bonecas carecas como se isso diminuísse a dor, vão sentir o vento no rosto quando?
E a vida do meu pai, paralisado num gemido, já acabou? Quando começa e quando
termina? A vida acontece nos descansos da dor, é isso? Alguém tinha que
decidir, padre, fui eu. Porque só eu sei o quanto aguento carregar no meu útero.
Foi rápido e o médico sorriu: será como
se nada tivesse acontecido. Como se nada tivesse acontecido...Agora é a sua
vez, padre, de sentenciar, mas eu já disse: nada de Ave Maria, pois os sóis
ainda giram dentro de mim.
terça-feira, 5 de novembro de 2013
Made in China
Um amor feito na
China, para não durar, como as cadeiras que fazem desabar quem nelas senta pela
décima vez. Ou as malas que espalham roupas e frascos de perfume na quinta
viagem. Só ela – ingênua ou desesperada? – não percebeu. E não adianta tentar
consertar, sua boba. Compre outra cadeira e outra mala. Você nem escuta, não é?
E caminha na chuva – cena tão clichê – sem perceber as crianças descobertas na
calçada agarradas a mamadeiras cheias de Coca-Cola. O veneno se espalha pelas
veias – delas e dela – , galerias e marquises, nem todos conseguem se esconder.
Só a senhora com chapéu turquesa e quatorze anéis em oito dedos sorri.
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
Dicionário
O hoje que
poderia ser nunca. Ou para sempre. Certo e errado. Branco e preto. Amor e ódio.
Pinguins no norte. Renas no sul. Derrube cada tijolo colocado em você até hoje.
Tente tocá-los: eles não existem. Sol e chuva. Frio e calor. Há balas no meu
jardim. E flores na minha geladeira. Não há jardim, mas azeitona. Não é uma
geladeira, mas uma gurumela. Xurumim. Pitiburu. Curutuco. Eu e você: eles. Eles:
nós. Tenho escamas. Nasci amanhã. Morrerei ontem.
quinta-feira, 31 de outubro de 2013
Bons dias
É preciso
comprar uma flor. Sorrir para um desconhecido. Segurar a porta do elevador para
quem entra. Ou sai. Dar licença. Desejar bom dia, boa tarde, boa noite. Não buzinar. Ou não buzinar tão logo o
semáforo esverdeie. Tomar café. Ou chá. Escolher um amigo e dizer-lhe eu te
amo. Imaginar-se no lugar da faxineira. E dos presidentes (qualquer um). Comer
doce. Ou gordura, mesmo que pouco. Ler
uma poesia sem querer entendê-la. Enxergar-se em outro corpo. Enxergar-se sem
corpo algum. Enxergar-se dentro de um caixão, duro, seco, mor-ti-nho. E se perguntar: e
daí?
quarta-feira, 30 de outubro de 2013
Vitrine
O sapato vermelho envernizado brilhava
como um planeta. Ela chegou tão perto que gelou a ponta do nariz na vitrine.
Virou a cabeça pequena e delicada para a esquerda, depois para a direita, numa
tentativa frustrada de ver o planetinha em trezentos e sessenta graus. Olhou
para seus pés metidos em sapatilhas desbotadas, sorriu um sorriso que me fez pensar
que ela saltitaria; mas não. O sorriso também descoloriu e ela me deixou ali.
segunda-feira, 28 de outubro de 2013
Depois do meio...
Sim, você era
desafinado e arranhava o violão, mas eu gostava. Você ali, numa ponta do sofá,
eu na outra, com os dedos dos meus pés quase encostados na tua perna. Você
ficava nervoso, avermelhava, sorria para mim como quem se desculpa. Eu gostava,
seu bobo, não precisava daquele sorriso. No auge da tua tensão eu beliscava tua
coxa com o dedão e o segundo dedo só para ouvir você dizer pô, isso é sério. Eu
sei que era. Você fez uma música para mim: Depois do meio. Como eu não acharia isso sério? Sabe o que vem
depois do meio?, foi a tua pergunta afogada. Eu sei, eu entendi, mas você não
deixou a música escrita em nenhum papel, e isso é ainda mais sério.
sexta-feira, 25 de outubro de 2013
Delas ou do café da tarde
Quatro da tarde,
hora do bolo, das mulheres em volta da mesa, só elas, talvez as crianças.
Quatro da tarde, a força feminina ocupa todos os cantos das casas, do mais alto
ao mais baixo. Do mais à esquerda ao mais à direita. Quatro da tarde, quando
elas são donas das paredes e de cada uma de suas células. Quando as risadas estão livres das lágrimas. O
ar faz uma reverência quando elas, só elas (talvez as crianças), estão em casa.
O sol começa a perder o brilho e a quentura para o bolo e as risadas na mesa.
Diz até amanhã, elas não escutam. Às quatro da tarde, a certeza do dia seguinte
não interessa.
quinta-feira, 24 de outubro de 2013
Fome
Olha, aquela nuvem parece um
dinossauro.
E aquela um pão de mel recheado com
doce de leite.
E Deus?
...
E Deus?
Olha, acho que ele comeu um pedaço
do pão de mel.
terça-feira, 22 de outubro de 2013
Aqui na terra como no céu
Eu não entrei
aqui para rezar, mesmo porque não sei. Mesmo porque não creio num Deus e me
deprimo com os rostos dos santos. Não quero ser santa, só procuro um silêncio
capaz de desfragmentar meus pensamentos. Esqueci a ordem dos fatos: você me chamou
de leoazinha antes ou depois de me beijar? Para uma menina com uma flor com voz
de Cortázar no meu ouvido foi antes ou depois da minha nudez? Eu ri quando você
pronunciou Nounouse, lembra? Ou chorei? E sonhamos com uma Paris aonde nunca
chegamos. Choro com a imagem da Torre Eiffel e não gosto mais de ursinhos de
pelúcia. Aqui é escuro. Talvez eu precise aprender a rezar.
quarta-feira, 9 de outubro de 2013
Vapor
É que o vapor da
água quente me faz bem, fico numa tentativa de transformar em gotículas essa
agonia de não saber se trocaram o curativo na testa do meu filho porque passei
o dia fora cuidando de problemas alheios para pagar o convênio médico. E outras
contas mais. Mas o que se liquefez foi a minha ilusão de que os adultos são donos
do próprio coração. Não eu, que tenho um coração que dorme com tosse em duas
caminhas. Não eu, que tenho um coração esmagado por um cansaço que eu
desconhecia. Minha mãe parecia ser mais sorridente cuidando do nosso almoço. Tento
respirar dentro dos táxis enquanto ordeno itinerários com vontade calada de
dizer me leve para algum lugar que não
conheço. Por favor! E meus
cadernos continuam em branco. E ainda sonho com varandas. E ainda não consegui
fazer o supermercado. E ainda sinto medo, tanto medo.
sexta-feira, 4 de outubro de 2013
Varanda
Fecho os olhos
na lentidão da neve em degelo. Sinto o frio escorrer pela minha nudez e você
levou meu cobertor. Não sei fazer fogo. Não sei fazer nada útil. Só sei sentar
na varanda e olhar a cidade para me aquecer.
quarta-feira, 2 de outubro de 2013
Janelas abertas
Sei lá...é algo
assim...estranho...uma fome dentro da gente...um estômago antropófago...uma
desaprendizagem...uma placa de “vende-se” no peito...sinapses em roda-gigante...um “e se?” incessante...uma miniatura de mim
perdida nas minhas entranhas...sem rota de fuga...sei lá...só sei que dormi com
a janela aberta para não perder o nascer de um dia novo.
segunda-feira, 23 de setembro de 2013
Um analgésico, uma cachaça ou Lobo Antunes, por favor...
O carro
abalroado dói. O choro da criança dói. A birra da criança dói. A imagem dos
reféns no Quênia dói. A notícia que chega da Síria dói. A criança dormindo na
rua dói. O lucro dos bancos dói. O preço do metro quadrado dói. O Iphone grudado nos nossos ouvidos e olhos dói. A existência da
Segunda Guerra dói. A Iugoslávia despedaçada dói. O esquecimento da Armênia
dói. A ganância das grandes corporações dói. O sumiço do silêncio dói. O som da televisão dói. O andamento do
Judiciário dói. A falta de educação no trânsito dói. Não ser um camaleão sem
consciência da própria camuflagem dói. Não poder tirar o dia pra ler Lobo
Antunes dói. Ler Lobo Antunes dói. Tomar suco embalado que dura vinte meses
dói. Falta de empatia dói. Fila no hospital dói. Mais um shopping na cidade
dói. A fome na África dói. A AIDS na África dói. Mais um carro nas ruas dói. Atendimento de call center dói. Propaganda de celular dói. Ter uma hora de almoço dói. Ter cartão de ponto na
empresa dói. Dar um tapa no bumbum do filho dói. Criança espancada dói. Velho
abandonado dói. Bicho maltratado dói. O preço da comida dói. Falta de comida
dói. A lista dos mais lidos dói. Minha cabeça, minha coluna, meus pés, minhas
pernas, meus braços, minhas mãos, meus olhos, meu estômago...salve-me, Lobo Antunes, salve-me.
sexta-feira, 20 de setembro de 2013
Nana, nenê
É como se você colocasse seu coração,
seus pulmões, seu estômago, seus rins, seus braços, suas pernas, seus pés e
suas mãos na cama, os cobrisse e dissesse boa noite. Mas como se isso não
bastasse é como se fosse preciso passar a noite ao lado deles para ver se não
deixam de se mexer. Porque não há, agora, maior pavor no mundo, além do mundo,
do que vê-los sem se mexer. É preciso um sopro dos pulmões ao menos. É preciso
que o coração dê um pulinho e que os rins filtrem uma gota que seja. Porque o medo
é maior que o mundo. Porque o amor é maior que o mundo. Porque não é amor. É
isso, algo para o qual não foi inventada uma palavra. Sinto muito. E não é nada
disso porque se fossem seus esse coração, esses pulmões, esse estômago, esses
rins, esses braços, essas pernas, esses pés e essas mãos, você não se queixaria
se endurecessem. É como se fossem o coração, os pulmões, o estômago, os rins,
os braços, as pernas, os pés e as mãos do mundo. Nada antes. Nada mais depois.
O Aleph. Ali, hoje, naquela cama, dormindo, depois de você ter lido uma
história para ele.
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