segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Casamento II


- Está zero grau em Nova Iorque.

- E daí? Nós estamos em São Paulo.

- Mas em Nova Iorque está zero grau.

- E daí? Nós nem vamos pra lá.

- Só estou dizendo que lá está zero grau.

- E daí? Nós estamos em São Paulo, derretendo.

- Mas em Nova Iorque está zero grau.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O jogo


- Por outro.

Ela achou melhor esclarecer, logo após ter-lhe dito que estava apaixonada. Ele ainda com os olhos tortos, depois de nove horas de sono. A mão segurando o pão e a faca para a manteiga. Ela em frente a ele, na mesa da cozinha, um copo de suco de laranja na mão direita. A esquerda livre para feri-lo. Tudo como sempre esteve nos últimos três anos. A cachorra embaixo da mesa à espera de uma migalha. O jornal folheado e não lido. Os copos de requeijão. O celular dele acusando mensagens proibidas. E ela perdeu o jogo. Era menos resistente às farsas.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

La vie en rose


E em meio a um buraco na sala, um vento que não sopra, um sorriso que se esconde, um verde perdido, um cinza descoberto, uma janela que não abre, um copo que racha, um vômito que não se segura, uma flor que não desabrocha, uma mensagem proibida, uma morte pelas frestas, um medo destacado, uma piscina quente e verde, uma vida descondensada, uma estrela apagada, um tapete do avesso, um ovo frito e um arroz queimado, é sempre possível fechar os olhos e sonhar com Paris.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

14 anos


O telefone tocou. Eu de camisola no meio da sala. A faxineira no banheiro. “Não, não está tudo bem”. O telefone no chão. Como uma amiga morre sem avisar? Como uma amiga morre tão jovem sem me dar a oportunidade da despedida? Não vi o seu diploma, não acompanhamos nossos casamentos, não vimos nascer nossos filhos, não sofremos nos nossos divórcios, não tomamos mais vinho, não ouvimos mais Chico e Caetano, não terminamos mais uma conversa no meio-fio. Quem vai me ligar rindo ou chorando? Para quem eu vou ligar mais chorando do que rindo? “Não, não está tudo bem”. Minha camisola molhada de sal. O telefone no chão. Na rua os motoristas de uma manhã de segunda-feira. O estacionamento lotado do supermercado. O que se come quando uma pessoa tão jovem morre? Socorro, meu pai. Socorro, minha mãe. Socorro, minha amiga. A hora da estrela e um girassol. Um abraço. O grito da minha mãe. Da mãe dela. O grito de dor de todas as mães. Quem pode decretar a proibição da morte de um filho? E de um amigo? Frio no dezembro paulistano. O balde no meio da sala, minha camisola molhada, meus olhos inchados, meu suor pelas costas, o cheiro de éter, as buzinas do lado de fora, o copo d’água na mão da faxineira. O telefone no chão. Há quatorze anos, o telefone ainda no chão.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Quando não há amanhã


Ela não entendia dessas coisas de lua, sol, estrelas e planetas. Só achava a lua bonita, especialmente quando estava cheia e parecia que ia cair sobre seu quarto. Achava o sol muito quente, preferia quando ele se escondia atrás das nuvens. Gostava das estrelas, as quais demorou para descobrir que não eram pessoas queridas e mortas. Mas gostava de pensar que sua avó poderia estar sorrindo morando em uma delas. A avó tinha mesmo um sorriso brilhante. Os planetas eram uma incógnita, assim como o motivo pelo qual nunca mais viu seu pai. Será que a Terra roda mesmo? Na maior parte do tempo parece tão paradinha. E ele? Por que? Para onde? Preferia pensar na ração para as vacas, na porca que ia parir a qualquer momento, no patinho que não sobreviveu, no final da novela. E nas roupas secando no varal.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Eu grito, tu não gritas, ela grita, ele chora


Era assim, uma zonzeira, um grito se chocando contra os ossos, tentando escapar e escapando, quando um grito não deveria escapar é nunca. Talvez um excesso de glóbulos vermelhos. Talvez um excesso de pensamentos. Ou excesso de medo. Quem sente medo grita. E ela escorregava pelo buraco, pedindo ajuda, enquanto o marido falava ao celular do lado de fora. Espere, ele dizia, mas ela não escutava. Quem sente medo não escuta. Socorro! Mas ele também não escutava. Quem se ama muito não escuta. E o menino perguntava sobre o Lobo Mau. Ele existe, ela queria dizer, mas não conseguia. Era a tal zonzeira. Muita gente nas ruas, muitas pessoas caindo no buraco, algumas agarradas ao celular. Socorro! O Lobo Mau escondido debaixo da cama do menino, mas tudo o que ela tinha era um repelente contra pernilongos. Eu tenho medo, o menino chorava. Ela também, mas não conseguia chorar, a não ser debaixo do chuveiro. Era a tal zonzeira, de endoidecer.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

A verdadeira história do Papai Noel


Papai Noel não existe. Sim, esse velhinho que todo mundo qualifica de bom e que, se existisse, morreria derretido no Brasil no mês de dezembro, é uma invenção. Mais uma.

Ele não fabrica brinquedos. Quem fabrica são empresas gigantes cujos acionistas estão preocupados com os lucros e não com a alegria das criancinhas. Não há sorrisos infantis estampados nas planilhas desses executivos.

Papai Noel também não compra nada. Quem compra são os papais e as mamães que passam o ano todo trabalhando para poder comprar os brinquedos que as crianças vêem na televisão. Muitos papais e mamães se endividam para que o filho possa ter o carrinho que anda na parede e a filha possa ter a boneca que faz xixi e cocô e fala cinquenta e três frases em cinco línguas. E quem leva o crédito é o Papai Noel. Saibam crianças, pelo menos a maior parte das crianças: o que é colocado na árvore vem com sacrifício. Não escorrega do Polo Norte num trenó.

Muitas crianças não ganhariam nada se não fosse pela caridade. Muitas não ganham nada mesmo, nem por caridade. E não porque não sejam boazinhas, mas porque papai e mamãe mal conseguem ganhar para comer. Já ouviram falar em Maslow? Pois é: primeiro a gente come, depois a gente brinca. E nem estou falando do peru e do chester (como é um chester, afinal?).

Então no Natal (o que se comemora mesmo?) ganha quem pode, não quem merece. E crianças merecem tanta coisa boa – só coisas boas, inclusive pacotes com presentes.

Essa é a verdadeira história do Papai Noel, mas eu não consigo contá-la.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Anna Kariênina


E se o mundo acabar daqui a quatro dias, não voltarei a comer a bala de gergelim que derretia na minha boca infantil. E terei visto tantas crianças morrerem antes do tempo, pelas mãos da fome, do caranguejo e da maldade, em São Paulo, Salvador ou Connecticut. Não mandarei desentupir a privada: que a merda fique para os arqueólogos do futuro. Tentarei um café com uma amiga – a vida sem amigos é cinza e fria, como a São Paulo que nos rouba o fruto do trabalho. Não arrumarei o armário da cozinha: que caia com todas as louças: quero ver aos pedaços tudo que  não tem serventia. Beijarei meus filhos mais uma vez – não: mais duas, mais três, mais quatro, mais quantas vezes conseguir. E pedirei desculpas por ser mãe. E perdoarei a minha mãe. E todas as outras. Que Justine me dê sua mão sã. E que todas as Claires se afastem de mim: hoje, amanhã e depois, até o fim. Quero a sanidade de uma mente doente, as mãos de um homem só que se sabe único, uma moqueca com farofa e a voz de Vinícius ao fundo. Não colocarei botox: quero todas as minhas rugas sulcadas pela dor. Talvez pinte os cabelos de amarelo-gualdo. Amarelo-ouro? Amarelo-indiano? Amarelo-urina? Talvez os pinte de preto e morra como ela: linda e forte.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Eu me lembro...


da caixa de bombons recheados de licor de cereja que a criança não deveria comer, mas comeu.

do balanço verde e branco que tuas mãos empurravam, minhas pernas soltas no sonho, meus cabelos enroscados nos dentes. E o teu sorriso.

do açúcar antes do jantar, da boneca que carregava um sorvete na mão, da unha comprida que acariciava meus pés, do teu ronco, do escândalo do teu despertador, do teu silêncio, do teu cheiro iugoslavo, da luz que entrava pela janela do quarto. De uma reza que não era tua.

do medo de viver sem te ver. Este, já passou, mas eu me lembro. 

sábado, 15 de dezembro de 2012

Para isso somos feitos:


para procurar no outro o que não encontramos em nós. Para lembrar do que se perdeu, chorar pelo vivido e não vivido, esquecer mãos que nos amaram, lembrar de quem não nos amou. Vida posta à mesa, com as crianças sorrindo e a tarde à beira-mar, passinhos marcando a areia, um caminho que se apaga a cada onda que tudo, TUDO leva, menos o amor, o silêncio dos sentimentos verdadeiros, o berço que me carregou e te carrega, a vida milagre que de mim saiu e de mim não sairá: os pezinhos, as mãozinhas, a noite com a luz do corredor acesa, o chamado para o carinho que imensamente não cabe em mim.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Casamento


- Sjajkidienfjrjufnfnfjfhjnfnf.

- O quê?

- Jaujdjhdufjnfjfjfddhncncfnh.

- Não te entendo.

- Gsjsoifktnvgigjgglfkkpoplçlfçlv!

- Você não está falando comigo!

- Ffsyudgswuhd!

- Vá pra puta que pariu.

- Vgsg!

 
 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

É Natal


Consumaconsumaconsumaénatalconsumaconsumaconsumaqueremosvocêviciadoconsumaconsumaconsumaumiphonedizquemvocêéconsumaconsumaconsumadolcegabbanacomaetiquetapraforaconsumaconsumaconsumaumtênisquevocênãoprecisaconsumaconsumaconsumaroubeseforprecisoconsumaconsumaconsumajogueoslivrosforaconsumaconsumaconsumameusmartphonecomeupoeiradowindowsconsumaconsumaconsumaumcarrotefazfelizconsumaconsumaconsumaumcelulartefazflutuarpelasruasconsumaconsumaconsumaosupermercadoélugardegentefelizconsumaconsumaconsumaejoguetudoforadaquiummêsconsumaconsumaconsumanósqueremosvocêrastejandoconsumaconsumaconsumaqueremosascriançaschorandoporummaxsteelconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaénatalporraconsuma.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Respeitável público


A magia do circo não está no mágico que faz uma mulher desaparecer. Nem na família de funâmbulos em cima da corda. Nem nos trapezistas voando debaixo da lona, no cheiro de pipoca, no riso do palhaço, na água dançante, nas piruetas da acrobata. Não. Não está nem mesmo no picadeiro. Olhe ao redor. Isso, aí mesmo: olhe para a plateia e procure o olhar de uma criança voltado para o picadeiro. Qualquer criança e você acabou de descobrir a verdadeira magia do circo.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A sobremesa é para poucos


Porque o sorvete, quando tomado na frente de uma mulher e de um feto destruídos pelo crack, desce quente, amargo, podre, azedo, repulsivo, estragado, avinagrado, acre, nojento, grudento, asqueroso,  salgado, peganhento, putrefato, fedorento, e dói.  

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Herança


Se é minha imaginação, ela é tão concreta e colorida que se transformou em realidade, mas um dia eu perguntei, “vó, você nunca chora?”, e ela, sentada ao meu lado no sofá, sem tirar os olhos da televisão, respondeu, “quem passa por guerra não chora mais”.

Então é isso que a guerra faz? Seca as pessoas? Esvazia o corpo de água?

Eu olhava para o seu perfil, narigudo e queixudo, como todos os croatas se construíram na minha mente, e pensava como ela podia ter deixado sua pátria com os pais e os irmãos, depois de comer capim para não passar fome (ah, a guerra faz isso também), depois de ver seu pai chorando por ter matado homens como ele, para poder se manter vivo e voltar para a família (ah, a guerra faz isso também), rumo a um país distante e estranho, na esperança vã de ter um pedaço de terra que nunca veio (ah).

Como ela podia ter chegado aqui e passado noites dormindo em estábulos, história que ela contava rindo? Como ela tinha fugido com os pais de um dono de fazenda que os mantinha como escravos? Como tudo isso tinha acontecido numa só vida? Como tudo isso podia ter acontecido na vida daquela pessoa que estava ao meu lado? Como eu tinha derivado daquela pessoa que deixou uma terra e tantos parentes para trás, mas que toda noite rezava na língua materna?

Sim, eles vieram no navio Sofia, em abril de 1925. Sim, foram para o interior de São Paulo de trem. Sim, dormiram no estábulo da fazenda Canaã. São fatos. E ela estava ali, sentada ao meu lado, no sofá, olhando para a televisão, me explicando que quem passa por guerra não chora mais.

Como?

terça-feira, 27 de novembro de 2012

A lagartixa


Assim, medo e cansaço. Um pouco de tristeza talvez. E preguiça. E vontade de deitar e ler e amar e receber os filhos que já tem e os que ainda gostaria de ter. E o medo de perdê-los: não, não, não...medo, não...o pavor. Sim, o pavor, o estremecimento só de pensar em perdê-los. E se o mundo vai mesmo acabar que ao menos eles não sofram. A vontade de dormir e sonhar e viajar e deixar de pensar na existência e sua falta de sentido. Total falta de sentido. Não, não...os filhos fazem sentido. E a literatura. E a arte. O homem sem a arte poderia ser uma mesa. Pensa se a lagartixa é feliz por não se saber lagartixa. Pensa que valter hugo foi premiado e sorri e agradece. A ele. E se pudesse, por algumas horas, deitar com o filho de mil homens no colo. E se pudesse fazer João caminhar pelas ruas de Zagreb, tirá-lo daquele quarto de hotel sufocante. Mas você ainda vai esperar, João. E se pudesse ela estar em Zagreb. E na Vela Luka. E se pudesse esquecer a conta negativa. E se pudesse só mais uma vez visitar Paris. Assim, medo e cansaço. Um pouco de tristeza talvez. E uma xícara de café.  

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Chicolate Chicolino


Hoje você pensa que sou o máximo. Quando vê a Mulher Elástica se transformando em paraquedas para proteger os filhos diz “olha, parece você” (ai, se eu pudesse...). Abre os braços quando chego em casa, beija meu rosto e minhas mãos enquanto diz coisas como “minha lindinha”, “meu amorzinho” e “minha pupuzinha”. Procura proteção no meu colo, pede que eu fique com você na cama e chega a ficar febril quando dorme longe de mim. E um dia, tão próximo para mim e tão longe para você, eu serei uma mulher velha e burra incapaz de te entender. Falarei as maiores besteiras do mundo, me vestirei e dirigirei mal, não servirei para te acolher. Um beijo e um abraço teus serão forçosamente arrancados, e fora da visão dos amigos. Você pensará que sou o maior problema da tua vida, aquela que existe para impedir o exercício da tua liberdade e da tua felicidade. E eu...e eu continuarei como hoje, tão pequenininha na minha capacidade, vivendo por você e pelo teu irmão.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Enquanto isso, na sala de espera...


Local: um dos guichês do Pronto Atendimento do Hospital Sírio-Libanês.

Personagens: recepcionista (R), paciente (P), acompanhante (A).

 

R: Senhora, o seu nome, por favor?

P: Ligia Cristina Souza.

R: Seu CPF?

P: O meu CPF? Nossa, eu não sei o número do meu CPF, e se você visse o estado dele, está se desfazendo, não dá pra ler nada. Eu sinto um calor, você sente esse calor? Olha só, olha a minha mão, estou derretendo. Deve ser falta de marido. O que você acha?

A: Mãe, ela não tem nada a ver com isso. Você tem o seu CPF ou não?

P: Não, filho, ele está derretendo como eu.

R: Senhora, pode então me passar sua data de nascimento?

P: Data de nascimento? Nasci em 31 de outubro.

R: De qual ano, senhora?

P: Ano? Olha, fiz quarenta e nove anos. Faz as contas. Em que ano nasci? Você sabe?

A: Moça, por favor, desculpe a minha mãe. Ela não parece normal, mas é. Só é esquecida. É sério, ela esquece coisas como o ano em que nasceu. Não dá pra acreditar, né? Mas ela esquece.

R: Senhora, se a senhora fez quarenta e nove anos, nasceu em 63.

P: 63? É mesmo? Olha só.

R: Bom, achei seu cadastro. Agora a senhora espera aqui na frente. Vão chamá-la pela senha 3012.

P: Tá bom. Obrigada.

 

Meia hora depois:

- Senha 3012.

...

- Senha 3012.

...

- Senhora Ligia Cristina.

...

- Senhora Ligia Cristina.

...

 

Quarenta e cinco minutos depois:

- Senhora Ligia Cristina.

...

- Senhora Ligia Cristina.

...

 

É, ela deve ter esquecido de esperar. Pelo menos não é nada grave.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

As amigas


Porque agora elas não se juntavam mais para tomar sol e comer brigadeiro de colher. Os biquínis aumentaram de tamanho, o brigadeiro estava proibido e se houvesse tempo para o sol na piscina, havia o barulho das crianças que gritavam e ameaçavam, sem consciência, se afogar. Os olhos se voltavam para tantos filhos que não encontravam mais os olhos das amigas. Mas havia tanto a falar. E tantas contas para pagar. E tantos amores encontrados e perdidos, precisados de amigas. Mais café do que vinho, bolo de fubá e olhares voltados para um passado que cresceu. Rápido demais.

sábado, 17 de novembro de 2012

Café da tarde


Porque algumas tristezas a gente leva para sempre, até o último suspiro, até o caixão, como queiram. O que ela descobriu, enquanto andava pelas ruas numa tarde ensolarada, era isso: até seu último segundo, carregaria aquela tristezinha no peito, cravada no meio do esterno. Pensou em parar para lhe servir um pouco de chá, a tristeza às vezes ficava fria. Depois pensou que não deveria alimentá-la. Mas depois pensou mais um pouco e lembrou-se de aquela tristeza não a abandonaria. Então parou, e pediu dois cafés. Um sem açúcar.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Caminhada


Criança é um ser demoníaco...Adoro esse loucos da Paulista...Tô dentro do Xing Ling, amor...Vai pela Rebouças...Your ego is not your amigo...Sabedoria vem de sabor...Ele é muito egoísta...Compra seis, amor...Southampton...Bibi...Acho que vai chover...Moço, moço...Posso te fazer uma pergunta?...Eu sei, mas não tenho...

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

O tatuador

Suas mãos suavam, por mais que ela tentasse disfarçar. Até que o tatuador entrou na sala de espera e piorou a situação. Além dos olhos verdes e das tatuagens sob os pelos dourados, ele tinha os músculos desenhados. Mas não era só isso. Ele tinha um quê, sabe? Uma aura de quem sussurraria palavras inimagináveis para ela, ao mesmo tempo em que lhe puxaria os cabelos sem machucar. Era um homem que mesmo em silêncio pedia tudo o que ela estava disposta a dar.
Ela explicou que queria tatuar o nome do marido no final das costas, um pouco acima do bumbum, entre as duas covinhas. Isso, exatamente aí, onde a carne fica côncava. Isso, aí, aí mesmo, antes que o bumbum comece a arrebitar. Só que o tatuador tinha umas mãos. Ah, as mãos do tatuador.
Ela chegou em casa com o ideograma da palavra amor tatuado no tornozelo direito:
Seu nome era muito grande, amor, foi a explicação que ela deu para o marido.
João não entendeu muito bem, mas preferiu não questionar. Ela estava tão feliz, tadinha.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

I can´t get to sleep

Porque ele morreu jovem. Porque ele morreu jovem e apaixonado por ela. Porque ele morreu jovem e apaixonado por ela e gostava do Men at Work. Porque ele morreu jovem e apaixonado por ela e gostava do Men at Work e cantava Overkill para ela. Porque ele morreu jovem e apaixonado por ela e gostava do Men at Work e cantava Overkill para ela, ela acredita que recebe um recado dele quando ouve essa música nas rádios. Mesmo que ele tenha cantado para ela há mais de vinte anos.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Não importa o estilo de música que você ouve no metrô...


Não importa se a Louis Vuitton é original ou falsificada...desde que você tenha uma.

Não importa se as prestações estão pagas ou não...desde que você ostente.

Não importa se você tem saúde...desde que a barriga esteja seca.

Não importa se a promoção é merecida ou não...desde que seja sua.

Não importa se você leu ou não Joyce...desde que finja ter lido.

Não importa para qual time você torce...desde que ele esteja ganhando.

Não importa que você esteja brocha...desde que tenha dinheiro e viagra (nessa ordem).

Não importa que você deteste música clássica...desde que vá à Sala São Paulo.

Não importa se já passou dos sessenta...desde que aja como se estivesse nos trinta (ou vinte).

Não importa o que já viveu...desde que aplique Botox.

Não importa se você fala inglês...desde que pronuncie shopping.

Não importa porra nenhuma...desde que você tenha um Iphone 5 (ou 6?).

domingo, 4 de novembro de 2012

Tarde de domingo


O silêncio cortado por um ronco. De gente, cachorro ou gato. Os olhos que lutam para terminar uma frase do livro aberto sobre o estômago cheio. O pio ressacado que entra com o vento pela janela. A lembrança dos bolinhos de chuva com café de uma avó. Os velhos que não existem mais para contar suas histórias sobre o ontem. As perguntas que ficaram sem passado. As perguntas que surgem para o futuro. Mais um domingo que vai. E não volta.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O menino, o Haddad e a guitarra


O menino invadiu uma das salas de um prédio abandonado. A mãe colocou na janela uma foto do Haddad, que está sempre retorcida. Talvez o menino não ache o prefeito eleito tão bonito assim. A mãe deve achar. Eu também acho. E sempre é prazeroso olhar para uma pessoa bonita, ainda que a beleza de um não sirva para o outro. Quem bom. E o menino passa o dia chupando mexerica e jogando os caroços e as cascas na cabeça dos transeuntes lá embaixo e tocando uma guitarra imaginária. Talvez o Haddad não goste das músicas que o menino toca, por isso se retorce.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Fazer o quê?


Não, ela não gostava de pagar as contas e guardar os comprovantes que ela nunca achava quando precisava. Ela não gostava de ir ao supermercado pegar os produtos nas prateleiras, colocá-los no carrinho, tirá-los do carrinho, passá-los na esteira, guardá-los no carrinho, tirá-los do carrinho, guardá-los no carro, tirá-los do carro e colocá-los nos armários para que bocas famintas acabassem com tudo em menos de uma semana. Ela não gostava de juntar sacolas plásticas e não gostava das caixas de papelão. Ela não gostava de chamar o encanador e o eletricista e o marceneiro e o técnico da secadora e o síndico. Ela não gostava de preparar a janta todos os dias. Ela não gostava de trocar as lâmpadas e arrumar os cabos da televisão. Mas ela ia fazendo. São coisas que a gente vai fazendo...

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Sinal fechado


A cidade não está tão vermelha assim, preciso falar com ele sobre a integralização do capital e é melhor que seja hoje, tirar da frente porque a vida não dá descanso mesmo, esse ano está no fim e só vi o mar em janeiro, vale a pena trabalhar tanto se não consigo ver o mar?, e aquilo é uma decoração de Natal?, novembro está aí, Leona Cavalli na Playboy?, quem diria hein, Ofélia?, calor insuportável, por que raios meus antepassados deixaram a Europa?, por causa da guerra, oras!, pelo menos na Europa no verão se trabalha só até o meio da tarde, detesto suar, e essa barriga, como encarar uma praia com essa barriga?, e as moças bonitas no Salão do Automóvel?, queria coragem para fazer uma lipo e uma plástica, mas vai que morro, ou fico como um vegetal, minha vaidade tem limites, saudades da minha avó, melhor não me enfiar na faca, vai que morro, quero ver meus filhos crescerem, ah, se pudesse passar a tarde toda numa livraria com ar-condicionado, o quê?, já invadiram prédios no centro da cidade?, quero invadir um na Paulista, meu aluguel está caro demais, sapatos em promoção. Só um. Talvez dois.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O escolhido de Deus


Oito horas dentro de um elevador, falando bom dia, boa tarde e às vezes boa noite (mesmo que não fosse correspondido), um pouco sobre o tempo e futebol. Política, raramente. O que lhe dava muitas horas para cravar os olhos nos livros. A Cabana, Onze Minutos, O Xangô de Baker Street, Cidade de Deus, Estação Carandiru, Saco de Ossos, Código da Vinci, Madame Bovary, Crime e Castigo, A vida como ela é..., Gabriela, cravo e canela, Capitães da areia. E o melhor de tudo: para proteger os livros, encapava-os com fotos de mulheres nuas. É, Deus era bom demais.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A rachadura


E ela bateu a porta. Nem percebeu a rachadura que se formou no batente. Ele ficou do lado de lá, meio alegre, meio zonzo, meio rindo, meio chorando. Ela fria. Fria e zonza. Fria e zonza e estática. E cansada. Tinha uma chave na mão presa a um chaveiro que compraram juntos em Nova York. Todo mundo compra um chaveiro em Nova York. Ou um ímã de geladeira. Eles compraram os dois. O ímã ela deixou, segurando o papel com a data da próxima consulta dele no neurologista. Precisava acabar com tantas dores de cabeça. Precisava tomar menos café. E dormir mais. E arranjar um emprego. E desistir de alguns sonhos. E trepar menos. Com outras, não com ela.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

As mortes nossas de cada dia


E à meia-noite ela chorou. Pouco, mas chorou. Pelos sorrisos daquele dia, as frases ouvidas, a conversa ao redor da mesa, as gargalhadas, o gozo, os sussurros, os abraços, as lições, o café sem açúcar, o cheiro de banho, a quentura de um bolo recém-saído do forno, a alegria...alegria de um dia que agora, meia-noite e um, só existe na memória. E sua família tem histórico de Alzheimer. E por isso ela chorou. Pouco, mas chorou.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Uma maçã para os meus professores



Interior de São Paulo. Ainda não tínhamos saído da ditadura e a professora de História recém chegada das Minas Gerais disse que não adotaria nenhum livro. Há muita mentira nos livros escritos nos últimos anos, foi mais ou menos o que ela falou para uma classe de pré-adolescentes. Meus olhos se arregalaram. Para sempre, creio eu.
 
 
A de Português nos fazia viajar toda semana pelas páginas da National Geographic. Queria que aprendêssemos a escrever e semanalmente nos pedia um bilhete, além da redação. Podíamos escrever sobre qualquer coisa que nos tivesse acontecido. Ela guardaria segredo se fosse preciso. Eu confessava minhas dores de amor, ela me dava conselhos. Quando eram muitas meninas a sofrer (sim, porque nós sofremos tanto por amor), ela parava a aula, mandava os meninos para o futebol (sim, porque o futebol resolve muita coisa, ou quase tudo, para os meninos), pedia para sair uma pipoca da cozinha e nos ouvia. Comíamos, falávamos,chorávamos e ríamos sentadas no chão da classe. Ela explicava para a coordenadora que essas aulas não eram perdidas. Ela, que reconheceu o erro ao tentar fazer crianças de dez ou onze anos ler Capitães da Areia, que fui ler alguns anos depois. Parem, vocês ficarão com uma impressão equivocada do Jorge Amado. Achei lindo isso.
 
A chegada ao Colegial e a uma nova escola. Eu, que tinha por lema you can always retake a class but you can never relive a party, acordava animada aos sábados para ter aulas de Matemática. O único professor que me fez entender que Matemática não era uma grande decoreba. Em seguida, as aulas de História com o professor que só aumentou minha paixão pela matéria. Ele, que desenhava pessimamente o exército de Napoleão. Eram tantos soldados que da lousa passava para a parede. Ele, que num final de ano, com o programa já cumprido, viu um jornal espalhado numa cadeira e nos deu uma aula sobre a história do Estado e da Folha. Até hoje, não consigo ler esses jornais sem pensar nele. E o professor de Biologia, que estaria à toa numa tarde de sexta-feira e ofereceu uma aula sobre cobras, matéria que não cairia na prova. Alguns alunos tiveram que sentar no chão do anfiteatro. Sim, era sexta-feira. Sim, fora do horário letivo. Sim, a matéria não cairia na prova. E era verão.
 
Na faculdade de Direito, entre tantos interessados apenas no salário no fim do mês, o professor de Direito Civil, responsável pela minha vontade de me tornar professora dessa mesma matéria. Se eu conseguir despertar o amor pelo Direito Civil em pelo menos um aluno, como ele fez comigo, já terá valido a pena. O que ele tinha de especial? Nada. Era apenas consciencioso.
 
E agora, minha mestra querida e respeitada, na árdua e deliciosa tarefa de me ajudar a achar meu caminho na Literatura, minha paixão primeira. Aquela que torna minhas segundas o dia mais esperado da semana, quem diria! (estou envelhecendo)
 
Maraísa, Ângela, Francis, Gian, Edu, Bedone, Noemi. Esses são os Professores que eu faço questão de nomear. Sempre.


sábado, 13 de outubro de 2012

Para Vanessa, minha amiga

Porque algumas noites são assim: você aparece e eu acordo sobressaltada, sem saber se sua morte foi um pesadelo ou sua volta um sonho. Então olho para a casa em que você não me visitou, para meus filhos que você não conheceu, os livros que não sabe que leio e a vida que não sabe que vivo. E fecho os olhos novamente, na tentativa de ver seu sorriso. Sim, porque você sorria, sorria no meu sonho, sempre sorri nos meus sonhos, como sorria quando me via. E sorrindo nos sentávamos para falar das novidades ou de velhas histórias, algumas tão velhas que eu ainda vivo, você acredita, minha amiga? Vindo de você, você me responderia, é claro que eu acredito. Mas eu mudei, minha amiga, deixei um pouco da coragem esquecida em alguma casa que morei, então talvez, talvez, você não acreditasse em mim dessa vez. E fecho os olhos para escutar o que você dizia, porque sempre precisamos de alguém que goste mesmo da gente para nos dizer alguma coisa. Qualquer coisa. Mas você não me disse nada, nunca diz nada, só sorri. E teu sorriso é bom, minha amiga, muito bom. Não diga nada, talvez a gente precise mesmo é de alguém que goste da gente e não nos diga nada. Só sorria, minha amiga, ou não, mas me visite sempre, como nessa noite. Na próxima, tentarei fazer um chá. Ou café? Já não me lembro. 

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Super Avós


A novidade na rua era o videocassete que o vizinho havia trazido dos Estados Unidos, um país mais moderno que o nosso, onde todos podiam comprar tudo que a gente nem imaginava que existia. Bom...a novidade na rua era o videocassete que o vizinho havia trazido dos Estados Unidos junto com um filme: Superman. Ou Super Homem.

Fomos convidados para a sessão com baldes de pipoca. Fomos eu e meus pais. Eu entre eles, de mãos dadas com os dois. No caminho, meu pai me explicou: não conte nada para ninguém, mas o filme que veremos agora conta a minha história. Eu sou o Super Homem. Mas é segredo. Minha mãe calada. Naquela época, eu acreditava que quem cala consente.

Grudei os olhos na pequena e chuviscada tela do aparelho de TV. Nem me lembrei da pipoca. Voltei para casa muda. O que mais me desconcertou foi descobrir que meus avós paternos não eram mesmo os meus avós. E eu gostava tanto deles, principalmente do meu avô. Por mais bacana que aquele homem de cabelo e roupas brancas parecesse ser, eu queria o meu avô. O homem de branco nunca me levaria de cavalinho para lavar as mãos, nem me daria chocolate antes da janta. Fiquei triste por ele. E pela minha avó, tão dedicada preparando a lasanha aos domingos. Eles agiam como se não soubessem. Até o último dia, se comportaram como se fossem os pais biológicos do meu pai. Eu, nunca contei nada para eles. Nunca.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Os dinamarqueses


Na cidade em que cresci, a capital do estado, a menos de cem quilômetros, era o que conhecíamos de maior e mais distante. Até que um dia recebemos no colégio a garota mais loira e mais branca que já havíamos visto, com dois imensos olhos azuis. Vinha da Dinamarca. Nossas mentes não localizaram o país no mapa mundi. Estados Unidos era o que havia de mais alto. Para lá do Atlântico, Portugal e Espanha. França e Inglaterra talvez. Seu dedo cor do frio localizou um pontinho no mapa. Existe país desse tamanho? E dinamarquês é uma língua? E o que vocês fazem lá?

 Era uma família loira. Mais: branca gelada. Uma cor que não conhecíamos. Na Dinamarca quase todos são assim, ela explicou. O país se tornou o sonho de consumo de todos os garotos da escola. Além de loiras com olhos claros, pareciam peitudas. Aquela, pelo menos, era. As meninas, pela primeira vez, sentiram vontade de pintar o cabelo e colocar lentes de contato. E a estrangeira se apaixonou pelo garoto mais moreno da escola, com olhos verdes amarelados, com quem eu queria casar. Eu e mais uma dúzia de meninas. E ele não resistiu a tanta brancura. A existência da Dinamarca era ultrajante.

 Os dinamarqueses eram esquisitos. No recreio, ela e o irmão tomavam suco e comiam cenouras e pepinos crus e ovos cozidos. Levavam sal embrulhado num pedaço de papel alumínio. Nada de salgadinhos fritos em óleo de caminhão. Nem refrigerante. Fincavam a bandeira da Dinamarca na porta de casa. Colocavam uma bandeirinha do país sobre o bolo nas festas de aniversário. Liam muito e jogavam golfe. Mesmo com carro na garagem, sentiam falta de transporte coletivo eficiente.

 Quis o destino que a dinamarquesa e eu nos tornássemos grandes amigas. Com o passar dos anos a entrar na adolescência, ela queria se depilar como as garotas brasileiras, fazer as unhas, pintar os cabelos (!), comprar roupas caras. A mãe e o pai dinamarqueses tentavam explicar para a filha, em português por estarem na minha frente, que alguns valores não deviam ser cultivados. Eram mesmo esquisitos esses dinamarqueses.

 Assim como chegou, depois de uns três ou quatro anos, foi embora com a família loira para Portugal. Trocávamos cartas toda semana. Chorávamos pelo vazio deixado. Minha amiga dinamarquesa. Minha amiga brasileira. As cartas rarearam. Eu não a encontro nas redes sociais. Eu não disse que eram esquisitos esses dinamarqueses?

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

O atropelamento


Pensava na lista do supermercado, na mensalidade não paga, na bronca do chefe, na torneira quebrada, na lâmpada queimada, no uniforme das crianças para comprar, na briga com o marido, na saudade da mãe, na dívida com o banco, no vestido que não servia, na dor nos ombros, nas férias que gostaria de tirar, no ex-namorado, no cachorro doente, na insônia, no jantar para preparar, na condução para pegar, no zíper para trocar, no sorriso que não...e por distração entrou na frente de um ônibus. Ela em pedaços. Na bolsa, a receita para um novo antidepressivo. Ainda tinha esperança a coitada.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Sexta-feira


E ela desviou das cabeças de peixe na calçada, do cheiro da morte, do mendigo que queimava o braço com café quente, da gorda com rosto bexiguento e cabelo loiro boneca que anunciava a próxima sessão pornô – “casal também pode”, da banda que tocava marchinhas de carnaval, da mãe que apertava a mão da criança a ponto de seus olhinhos encharcarem, do nóia com o rosto escondido e o pau de fora, do crente que lhe disse “Jesus te ama” (que bom, que bom...) e da morena elegante com salto agulha e polainas douradas. Fazia frio nessa manhã.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Primavera-verão-outono-inverno


Café quente. E forte. O jornal aberto sobre a mesa da sala. O beijo do filho. O afago do marido. A dificuldade em acordar o cérebro. O ponteiro dá mais uma volta. A manhã escorre. O mau humor da filha. O pão de ontem. A falta do leite. A chave girando na porta. O “bom dia” no ar. As paredes muito brancas. A chuva que não cai. As gérberas murcharam. Suportam pouco tempo o abafamento.  

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Dia das nuvens


Então no dia vinte e um de setembro saíamos todos, em fila indiana puxada pelas professoras, a caminhar pelas ruas ao redor da escola para observar as árvores. Podíamos tocá-las para sentir a textura do caule e das folhas. Poucas tinham flores. Só me lembro bem de uma com pálidas florzinhas rosas. Não sei o nome dessa árvore, mas é bastante comum vê-la por aí. Ou era. Seja qual for, a palidez das flores nunca me atraiu. Prefiro até hoje as primaveras de flores quase roxas. Desses passeios, lembro-me bem de caminhar com o olhar para as nuvens, até que um dia enfiei a cara num tronco, um dos maiores por ali. Doeu. Não consigo me lembrar se algum colega viu.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Receita azul


Rivotril, Trileptal, Seroquel, Lexapro, Prozac, Cymbalta, Anafranil, Cipramil, Tryptanol, Benepax, Alentus, Neurim, Oleptal, Frontal, Lexotan, Lorax, Valium, Diazepam, Dormonid, Stilnox, Brozepax. Ela decidiu escolher laranjas na feira.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Ela é bonita demais


Os pés descalços dançavam no meio da sala. A janela mostrava uma manhã ensolarada. Ela dançava e sorria. Rodopiou com os cabelos compridos despenteados. Havia escovado os dentes e dançava. Rodopiou mais uma vez como se fosse desmaiar. Eu digo e ela não acredita. A calcinha de algodão revelada por debaixo da camiseta levantada pelos braços erguidos. Ela é bonita, bonita. Ela não pensava no calor e na pia com louça suja. Dançava com os olhos fechados e sorria. Mas faz tanta diferença quando ela dança. Dançou, dançou, dançou...até a música acabar.

- Ufa, o marido disparou do quarto.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Era uma vez


Pobres príncipes. Não podem mais ficar pelados em quartos de hotel sem que apareçam com as genitálias quadriculadas nas revistas e jornais. As modelos e atrizes também não, mas nesse caso as bundas e os peitos imperdoavelmente caídos aparecem em detalhes. Ninguém mais vive feliz para sempre. Mas naquela manhã de primavera com temperatura de verão, o que a incomodou mesmo foi o relógio da igreja parado nas doze horas.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Descobertos


E o menino, trôpego ao tentar acompanhar os passos da mãe que o levava pelas mãos, não conseguiu contemplar os maiores peitos que já tinha visto, ao vivo, nas revistas ou na tevê. Eles tentavam escapar do corpete rosa que parecia sufocar a garota encostada no muro da igreja. Péra, mãe. A garota sorriu, o menino quase desatarraxou a cabeça do pescoço. Só voltou o olhar para sua frente quando tropeçou na senhora maltrapilha sentada na outra esquina do quarteirão. Ela esticou as mãos inchadas, o menino não sabia que cascos esverdeados podiam nascer no lugar das unhas. Péra, mãe. Anda, meu filho, anda.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Monólogos do amor



- Vamos pra piscina?

- Ah, não.

- Por quê?

- Tô com preguiça de por biquíni.

- Mas você é linda.

 

*****

- Está com fome?

- Não.

- Quer pedir uma pizza?

- Não.

- Você não me ama mais?

 

*****

- Queria ser uma dessas pessoas que abre a geladeira e inventa um jantar em meia hora.

- Eu também.

- Também queria ser assim?

- Não. Queria que você fosse assim.

 


 

domingo, 9 de setembro de 2012

Donos de casa


E quando, pela quinta vez naquele domingo, ele disse para ela que iria lavar a louça acumulada em três dias e nove refeições, ela quebrou todos os copos, todas as travessas e todos os pratos sujos.

- Pronto. Agora você só precisar lavar os talheres e as panelas.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Recortes


A tampa do Yakult furada com garfo só para ver a cara dos meus irmãos com seus potinhos vazios enquanto o meu ainda estava cheio. A professora pediu um cartaz sobre o acidente em Chernobyl e o terremoto no México. Vovô não viu, já estava morto. Antes dele, eu só tinha enterrado o Pitoco. Terça e quinta eram dias de dormir mais tarde. Papai tinha aula de inglês. Ele se emocionava com as Diretas Já. Mamãe chorou quando morreu o Tancredo. E quando atiraram no Papa. Eu chorava porque queria levar Ana Maria para o lanche. Mamãe nunca deixou. Mas aos domingos nos levavam ao Mc Donald´s. Para o meu pai os lanches tinham sabor de isopor. Ele me deixou de castigo quando fiquei de recuperação em Matemática. E proibiu minha tentativa de namoro aos doze anos. Demorou, mas descobri que ele mentiu quando me disse que era o Super Homem.