quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Bons dias

É preciso comprar uma flor. Sorrir para um desconhecido. Segurar a porta do elevador para quem entra. Ou sai. Dar licença. Desejar bom dia, boa tarde, boa noite. Não buzinar. Ou não buzinar tão logo o semáforo esverdeie. Tomar café. Ou chá. Escolher um amigo e dizer-lhe eu te amo. Imaginar-se no lugar da faxineira. E dos presidentes (qualquer um). Comer doce. Ou gordura, mesmo que pouco.  Ler uma poesia sem querer entendê-la. Enxergar-se em outro corpo. Enxergar-se sem corpo algum. Enxergar-se dentro de um caixão, duro, seco, mor-ti-nho. E se perguntar: e daí?

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Vitrine

O sapato vermelho envernizado brilhava como um planeta. Ela chegou tão perto que gelou a ponta do nariz na vitrine. Virou a cabeça pequena e delicada para a esquerda, depois para a direita, numa tentativa frustrada de ver o planetinha em trezentos e sessenta graus. Olhou para seus pés metidos em sapatilhas desbotadas, sorriu um sorriso que me fez pensar que ela saltitaria; mas não. O sorriso também descoloriu e ela me deixou ali. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Depois do meio...


Sim, você era desafinado e arranhava o violão, mas eu gostava. Você ali, numa ponta do sofá, eu na outra, com os dedos dos meus pés quase encostados na tua perna. Você ficava nervoso, avermelhava, sorria para mim como quem se desculpa. Eu gostava, seu bobo, não precisava daquele sorriso. No auge da tua tensão eu beliscava tua coxa com o dedão e o segundo dedo só para ouvir você dizer pô, isso é sério. Eu sei que era. Você fez uma música para mim: Depois do meio. Como eu não acharia isso sério? Sabe o que vem depois do meio?, foi a tua pergunta afogada. Eu sei, eu entendi, mas você não deixou a música escrita em nenhum papel, e isso é ainda mais sério.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Delas ou do café da tarde


Quatro da tarde, hora do bolo, das mulheres em volta da mesa, só elas, talvez as crianças. Quatro da tarde, a força feminina ocupa todos os cantos das casas, do mais alto ao mais baixo. Do mais à esquerda ao mais à direita. Quatro da tarde, quando elas são donas das paredes e de cada uma de suas células.  Quando as risadas estão livres das lágrimas. O ar faz uma reverência quando elas, só elas (talvez as crianças), estão em casa. O sol começa a perder o brilho e a quentura para o bolo e as risadas na mesa. Diz até amanhã, elas não escutam. Às quatro da tarde, a certeza do dia seguinte não interessa.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Fome

Olha, aquela nuvem parece um dinossauro.

E aquela um pão de mel recheado com doce de leite.

E Deus?

...

E Deus?


Olha, acho que ele comeu um pedaço do pão de mel.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Aqui na terra como no céu

Eu não entrei aqui para rezar, mesmo porque não sei. Mesmo porque não creio num Deus e me deprimo com os rostos dos santos. Não quero ser santa, só procuro um silêncio capaz de desfragmentar meus pensamentos. Esqueci a ordem dos fatos: você me chamou de leoazinha antes ou depois de me beijar? Para uma menina com uma flor com voz de Cortázar no meu ouvido foi antes ou depois da minha nudez? Eu ri quando você pronunciou Nounouse, lembra? Ou chorei? E sonhamos com uma Paris aonde nunca chegamos. Choro com a imagem da Torre Eiffel e não gosto mais de ursinhos de pelúcia. Aqui é escuro. Talvez eu precise aprender a rezar. 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Vapor

É que o vapor da água quente me faz bem, fico numa tentativa de transformar em gotículas essa agonia de não saber se trocaram o curativo na testa do meu filho porque passei o dia fora cuidando de problemas alheios para pagar o convênio médico. E outras contas mais. Mas o que se liquefez foi a minha ilusão de que os adultos são donos do próprio coração. Não eu, que tenho um coração que dorme com tosse em duas caminhas. Não eu, que tenho um coração esmagado por um cansaço que eu desconhecia. Minha mãe parecia ser mais sorridente cuidando do nosso almoço. Tento respirar dentro dos táxis enquanto ordeno itinerários com vontade calada de dizer me leve para algum lugar que não conheço. Por favor! E meus cadernos continuam em branco. E ainda sonho com varandas. E ainda não consegui fazer o supermercado. E ainda sinto medo, tanto medo. 

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Varanda

Fecho os olhos na lentidão da neve em degelo. Sinto o frio escorrer pela minha nudez e você levou meu cobertor. Não sei fazer fogo. Não sei fazer nada útil. Só sei sentar na varanda e olhar a cidade para me aquecer.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Janelas abertas

Sei lá...é algo assim...estranho...uma fome dentro da gente...um estômago antropófago...uma desaprendizagem...uma placa de “vende-se” no peito...sinapses em roda-gigante...um  “e se?” incessante...uma miniatura de mim perdida nas minhas entranhas...sem rota de fuga...sei lá...só sei que dormi com a janela aberta para não perder o nascer de um dia novo.