segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Casamento II


- Está zero grau em Nova Iorque.

- E daí? Nós estamos em São Paulo.

- Mas em Nova Iorque está zero grau.

- E daí? Nós nem vamos pra lá.

- Só estou dizendo que lá está zero grau.

- E daí? Nós estamos em São Paulo, derretendo.

- Mas em Nova Iorque está zero grau.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O jogo


- Por outro.

Ela achou melhor esclarecer, logo após ter-lhe dito que estava apaixonada. Ele ainda com os olhos tortos, depois de nove horas de sono. A mão segurando o pão e a faca para a manteiga. Ela em frente a ele, na mesa da cozinha, um copo de suco de laranja na mão direita. A esquerda livre para feri-lo. Tudo como sempre esteve nos últimos três anos. A cachorra embaixo da mesa à espera de uma migalha. O jornal folheado e não lido. Os copos de requeijão. O celular dele acusando mensagens proibidas. E ela perdeu o jogo. Era menos resistente às farsas.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

La vie en rose


E em meio a um buraco na sala, um vento que não sopra, um sorriso que se esconde, um verde perdido, um cinza descoberto, uma janela que não abre, um copo que racha, um vômito que não se segura, uma flor que não desabrocha, uma mensagem proibida, uma morte pelas frestas, um medo destacado, uma piscina quente e verde, uma vida descondensada, uma estrela apagada, um tapete do avesso, um ovo frito e um arroz queimado, é sempre possível fechar os olhos e sonhar com Paris.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

14 anos


O telefone tocou. Eu de camisola no meio da sala. A faxineira no banheiro. “Não, não está tudo bem”. O telefone no chão. Como uma amiga morre sem avisar? Como uma amiga morre tão jovem sem me dar a oportunidade da despedida? Não vi o seu diploma, não acompanhamos nossos casamentos, não vimos nascer nossos filhos, não sofremos nos nossos divórcios, não tomamos mais vinho, não ouvimos mais Chico e Caetano, não terminamos mais uma conversa no meio-fio. Quem vai me ligar rindo ou chorando? Para quem eu vou ligar mais chorando do que rindo? “Não, não está tudo bem”. Minha camisola molhada de sal. O telefone no chão. Na rua os motoristas de uma manhã de segunda-feira. O estacionamento lotado do supermercado. O que se come quando uma pessoa tão jovem morre? Socorro, meu pai. Socorro, minha mãe. Socorro, minha amiga. A hora da estrela e um girassol. Um abraço. O grito da minha mãe. Da mãe dela. O grito de dor de todas as mães. Quem pode decretar a proibição da morte de um filho? E de um amigo? Frio no dezembro paulistano. O balde no meio da sala, minha camisola molhada, meus olhos inchados, meu suor pelas costas, o cheiro de éter, as buzinas do lado de fora, o copo d’água na mão da faxineira. O telefone no chão. Há quatorze anos, o telefone ainda no chão.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Quando não há amanhã


Ela não entendia dessas coisas de lua, sol, estrelas e planetas. Só achava a lua bonita, especialmente quando estava cheia e parecia que ia cair sobre seu quarto. Achava o sol muito quente, preferia quando ele se escondia atrás das nuvens. Gostava das estrelas, as quais demorou para descobrir que não eram pessoas queridas e mortas. Mas gostava de pensar que sua avó poderia estar sorrindo morando em uma delas. A avó tinha mesmo um sorriso brilhante. Os planetas eram uma incógnita, assim como o motivo pelo qual nunca mais viu seu pai. Será que a Terra roda mesmo? Na maior parte do tempo parece tão paradinha. E ele? Por que? Para onde? Preferia pensar na ração para as vacas, na porca que ia parir a qualquer momento, no patinho que não sobreviveu, no final da novela. E nas roupas secando no varal.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Eu grito, tu não gritas, ela grita, ele chora


Era assim, uma zonzeira, um grito se chocando contra os ossos, tentando escapar e escapando, quando um grito não deveria escapar é nunca. Talvez um excesso de glóbulos vermelhos. Talvez um excesso de pensamentos. Ou excesso de medo. Quem sente medo grita. E ela escorregava pelo buraco, pedindo ajuda, enquanto o marido falava ao celular do lado de fora. Espere, ele dizia, mas ela não escutava. Quem sente medo não escuta. Socorro! Mas ele também não escutava. Quem se ama muito não escuta. E o menino perguntava sobre o Lobo Mau. Ele existe, ela queria dizer, mas não conseguia. Era a tal zonzeira. Muita gente nas ruas, muitas pessoas caindo no buraco, algumas agarradas ao celular. Socorro! O Lobo Mau escondido debaixo da cama do menino, mas tudo o que ela tinha era um repelente contra pernilongos. Eu tenho medo, o menino chorava. Ela também, mas não conseguia chorar, a não ser debaixo do chuveiro. Era a tal zonzeira, de endoidecer.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

A verdadeira história do Papai Noel


Papai Noel não existe. Sim, esse velhinho que todo mundo qualifica de bom e que, se existisse, morreria derretido no Brasil no mês de dezembro, é uma invenção. Mais uma.

Ele não fabrica brinquedos. Quem fabrica são empresas gigantes cujos acionistas estão preocupados com os lucros e não com a alegria das criancinhas. Não há sorrisos infantis estampados nas planilhas desses executivos.

Papai Noel também não compra nada. Quem compra são os papais e as mamães que passam o ano todo trabalhando para poder comprar os brinquedos que as crianças vêem na televisão. Muitos papais e mamães se endividam para que o filho possa ter o carrinho que anda na parede e a filha possa ter a boneca que faz xixi e cocô e fala cinquenta e três frases em cinco línguas. E quem leva o crédito é o Papai Noel. Saibam crianças, pelo menos a maior parte das crianças: o que é colocado na árvore vem com sacrifício. Não escorrega do Polo Norte num trenó.

Muitas crianças não ganhariam nada se não fosse pela caridade. Muitas não ganham nada mesmo, nem por caridade. E não porque não sejam boazinhas, mas porque papai e mamãe mal conseguem ganhar para comer. Já ouviram falar em Maslow? Pois é: primeiro a gente come, depois a gente brinca. E nem estou falando do peru e do chester (como é um chester, afinal?).

Então no Natal (o que se comemora mesmo?) ganha quem pode, não quem merece. E crianças merecem tanta coisa boa – só coisas boas, inclusive pacotes com presentes.

Essa é a verdadeira história do Papai Noel, mas eu não consigo contá-la.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Anna Kariênina


E se o mundo acabar daqui a quatro dias, não voltarei a comer a bala de gergelim que derretia na minha boca infantil. E terei visto tantas crianças morrerem antes do tempo, pelas mãos da fome, do caranguejo e da maldade, em São Paulo, Salvador ou Connecticut. Não mandarei desentupir a privada: que a merda fique para os arqueólogos do futuro. Tentarei um café com uma amiga – a vida sem amigos é cinza e fria, como a São Paulo que nos rouba o fruto do trabalho. Não arrumarei o armário da cozinha: que caia com todas as louças: quero ver aos pedaços tudo que  não tem serventia. Beijarei meus filhos mais uma vez – não: mais duas, mais três, mais quatro, mais quantas vezes conseguir. E pedirei desculpas por ser mãe. E perdoarei a minha mãe. E todas as outras. Que Justine me dê sua mão sã. E que todas as Claires se afastem de mim: hoje, amanhã e depois, até o fim. Quero a sanidade de uma mente doente, as mãos de um homem só que se sabe único, uma moqueca com farofa e a voz de Vinícius ao fundo. Não colocarei botox: quero todas as minhas rugas sulcadas pela dor. Talvez pinte os cabelos de amarelo-gualdo. Amarelo-ouro? Amarelo-indiano? Amarelo-urina? Talvez os pinte de preto e morra como ela: linda e forte.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Eu me lembro...


da caixa de bombons recheados de licor de cereja que a criança não deveria comer, mas comeu.

do balanço verde e branco que tuas mãos empurravam, minhas pernas soltas no sonho, meus cabelos enroscados nos dentes. E o teu sorriso.

do açúcar antes do jantar, da boneca que carregava um sorvete na mão, da unha comprida que acariciava meus pés, do teu ronco, do escândalo do teu despertador, do teu silêncio, do teu cheiro iugoslavo, da luz que entrava pela janela do quarto. De uma reza que não era tua.

do medo de viver sem te ver. Este, já passou, mas eu me lembro. 

sábado, 15 de dezembro de 2012

Para isso somos feitos:


para procurar no outro o que não encontramos em nós. Para lembrar do que se perdeu, chorar pelo vivido e não vivido, esquecer mãos que nos amaram, lembrar de quem não nos amou. Vida posta à mesa, com as crianças sorrindo e a tarde à beira-mar, passinhos marcando a areia, um caminho que se apaga a cada onda que tudo, TUDO leva, menos o amor, o silêncio dos sentimentos verdadeiros, o berço que me carregou e te carrega, a vida milagre que de mim saiu e de mim não sairá: os pezinhos, as mãozinhas, a noite com a luz do corredor acesa, o chamado para o carinho que imensamente não cabe em mim.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Casamento


- Sjajkidienfjrjufnfnfjfhjnfnf.

- O quê?

- Jaujdjhdufjnfjfjfddhncncfnh.

- Não te entendo.

- Gsjsoifktnvgigjgglfkkpoplçlfçlv!

- Você não está falando comigo!

- Ffsyudgswuhd!

- Vá pra puta que pariu.

- Vgsg!

 
 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

É Natal


Consumaconsumaconsumaénatalconsumaconsumaconsumaqueremosvocêviciadoconsumaconsumaconsumaumiphonedizquemvocêéconsumaconsumaconsumadolcegabbanacomaetiquetapraforaconsumaconsumaconsumaumtênisquevocênãoprecisaconsumaconsumaconsumaroubeseforprecisoconsumaconsumaconsumajogueoslivrosforaconsumaconsumaconsumameusmartphonecomeupoeiradowindowsconsumaconsumaconsumaumcarrotefazfelizconsumaconsumaconsumaumcelulartefazflutuarpelasruasconsumaconsumaconsumaosupermercadoélugardegentefelizconsumaconsumaconsumaejoguetudoforadaquiummêsconsumaconsumaconsumanósqueremosvocêrastejandoconsumaconsumaconsumaqueremosascriançaschorandoporummaxsteelconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaconsumaénatalporraconsuma.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Respeitável público


A magia do circo não está no mágico que faz uma mulher desaparecer. Nem na família de funâmbulos em cima da corda. Nem nos trapezistas voando debaixo da lona, no cheiro de pipoca, no riso do palhaço, na água dançante, nas piruetas da acrobata. Não. Não está nem mesmo no picadeiro. Olhe ao redor. Isso, aí mesmo: olhe para a plateia e procure o olhar de uma criança voltado para o picadeiro. Qualquer criança e você acabou de descobrir a verdadeira magia do circo.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A sobremesa é para poucos


Porque o sorvete, quando tomado na frente de uma mulher e de um feto destruídos pelo crack, desce quente, amargo, podre, azedo, repulsivo, estragado, avinagrado, acre, nojento, grudento, asqueroso,  salgado, peganhento, putrefato, fedorento, e dói.