terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Adeus ano novo, feliz ano velho

Não vai dar tempo. De limpar os armários, esvaziar as gavetas, encher a despensa, trocar as lâmpadas, pendurar os quadros, pagar as contas, responder os e-mails, retornar as ligações, pisar na areia. Parece que o ano novo vai chegar já misturado ao velho. Parece que o velho só vai deixar de ser velho quando o novo já estiver quase velho. Quando outro chegar também em meio à falta de tempo. E tudo se misturar de novo. Porque as gavetas terão sido esvaziadas, mas estarão cheias de novo. As lâmpadas terão sido trocadas, mas terão queimado de novo. Porque as lâmpadas não param de queimar, assim como a despensa não para de se esvaziar. É sempre tempo de ir ao supermercado. É sempre tempo de ter uma lista de pendências que não finda. É sempre tempo do novo. É sempre tempo do velho.

* * *

Quando eu era (era?) criança, achava que o ano novo e o ano velho se revezavam. Em um ano chegava o novo, no outro chegava o velho. A música se alternava para saudá-los: adeus ano velho, feliz ano novo e adeus ano novo, feliz ano velho. E um dia, na dúvida sobre quem chegaria, perguntei para a minha mãe: esse ano chega o novo ou o velho? Quando ela me explicou que é sempre o novo que chega e as passagens perderam um pouco a graça para mim.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Criança feliz

Ela não se lembra da aula. Não era de música nem de nenhuma outra arte, disso ela tem certeza. Também não era recreação, pois todas as crianças, entre vinte e trinta, estavam sentadas olhando para a lousa. O que aprendem as crianças na escola, aos oito anos de idade?

O que ela lembra é de todos estarem sentados e a professora na frente da classe, em pé, com um cabelo loiro, comprido e escorrido que ela sonhava em ter quando tivesse a idade dela. Queria também aqueles peitos e a cintura fina. Devia ser tão bom ser mulher como se deve.

Também não era aula de matemática porque em quase todas as aulas de matemática ela fingia uma dor de cabeça de tirar lágrimas dos olhos e a professora a deixava ficar quieta na carteira, com a cabeça baixa, apoiada sobre os braços cruzados. Ela às vezes erguia um pouco a cabeça, só um pouco para não correr o risco da professora perceber, e olhava com um dos olhos para a lousa, quem sabe alguma daquelas regras começasse a fazer sentido; mas não. Nunca fizeram.

Então devia ser aula de português, tão natural para ela quanto beber água quando se tem sede. Ou de história e geografia, quem sabe ciências. A professora explicava alguma dessas coisas para as crianças quando ela levantou a mão:

Professora, posso cantar uma música?

A professora com o braço suspenso na frente da lousa, os olhos dos colegas voltados para ela, justo ela, que se avermelhava toda com olhares, ela em pé, caminhando para a frente da classe, sem qualquer explicação ou justificativa:

Criança feliz, feliz a cantar
Alegre a embalar
seu sonho infantil

Oh! meu bom Jesus,
que a todos conduz
Olhai as crianças
Do nosso Brasil

Crianças com alegria
Qual um bando de andorinhas
Viram Jesus que dizia
Vinde a mim as criancinhas

Hoje no céu um aceno
Os anjos dizem amém
Porque Jesus Nazareno
Foi criancinha também


Ela não cantou o refrão de novo. Apresentação única. A professora puxou os aplausos e agradeceu a música enquanto a menina que não aguentava os olhares sobre ela e tinha dúvidas sobre o significado de Jesus Cristo na sua vida voltava para a carteira para continuar a prestar atenção na aula. Ninguém perguntou nada sobre a cantoria, certamente desafinada e desajeitada, a menina era alta e tinha braços e pernas compridas e finas que nunca sabia onde enfiar; ela nunca deu uma explicação sobre esse ímpeto meio lúdico, meio nacionalista, meio religioso, ou só mesmo ímpeto sem qualificação, nem mesmo para a mulher em que se transformou.

domingo, 14 de dezembro de 2014

O reflexo


O vidro que protege a fotografia pendurada na parede do quarto reflete uma escada que não existe. Talvez ela só não tenha acordado. Fecha os olhos. Conta até cinco. Abre-os. A escada que não existe, no quarto ou em qualquer outro cômodo da casa, continua lá, refletida. Ela levanta. Quem sabe a escada não surgiu durante a madrugada? Não duvida de nada, faz tempo já. Levanta, mas volta para a cama sem conferir se a escada surgiu ou não. Prefere fixar-se apenas no reflexo. Talvez seja melhor assim.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Para você

E você de novo, em sonho, em carne e ossos quentes me abraçando numa tentativa de me engolir, única forma, talvez, de não me ter longe. Não é de ter que se trata, mas você me tem porque é de ter que também se trata. Ter esse amor que faz a história não vivida se materializar em sonhos. Acordo com os dedos quentes do teu corpo. Acordo cheia do presente. Acordo sem os quilômetros que (não, por mais que existam em concreto e terra,) nos separam. Acordo grávida. Porque é disso também que se trata.  

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Ajuste final

Morreu. Aos 81 anos.

Brincou.

Estudou.

Trabalhou.

Casou.

Foi fiel.

Criou 3 filhos.

Comprou a casa própria.

Teve sempre um carro na garagem.

Aposentou.

Enviuvou.

Continuou fiel.

Pagou todas as contas.


No velório, a maioria dos presentes disse que o importante mesmo é viver feliz. Aparentemente, acreditam que ela foi.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Recalculando

Vire à esquerda, disse o GPS, mas eu estava na direita, ele disse vire à esquerda em cima do momento de virar, não consegui, não queria causar um tumulto, ainda que pequeno, pode não ser crível, mas não gosto de confusão, e o GPS seria capaz de recalcular meu erro, tão bom poder recalcular rotas erradas, em segundos, com voz limpa e metálica; então virei à direita mesmo, vamos ver onde vai dar, e deu em uma rua onde ainda há uma loja que minha avó frequentava durante a minha infância. Em toda temporada na casa dos avós paternos minha avó me pegava pela mão, e assim me levava pelo ônibus até a loja que vendia, e ainda vende, sapatos femininos. Não consigo me lembrar da minha avó me comprando sapatos, devia comprar para ela, sapatos sem graça de avó nascida no início do século XX, mas a loja era gigante, e não só para meus olhos infantis, posso constatar com olhos crescidos, e tinha cheiro de festa, de férias, de carinho de vó, e eu ali perdida, lembrando de suas mãos calosas de tantos anos em máquinas têxteis, sem escutar o GPS que recalculava a minha rota, sem poder me pegar pelas mãos como minha avó fazia. 

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Barreiras intransponíveis

No primeiro encontro eles se beijaram e ela gostou. Macio e quente, mãos fortes na nuca, nariz ávido. Ela resolveu não ligar no dia seguinte, mas antes da meia-noite o telefone dela tocou. Ele queria mais e ela cedeu.

No segundo encontro passaram seis horas na cama e ela gostou. Peito e coxas rijas. Saliva abundante e doce. Quadril pesado. Ela resolveu não ligar no dia seguinte, mas antes da meia-noite ela recebeu flores. Ele queria mais e ela cedeu.


No terceiro encontro ele preparou o jantar. Massa al dente. Brunello di Montalcino.  Andrea Bocelli. Tiramisù. Tudo porque o sobrenome dela era Pavanelli, ele explicou. E falaram sobre seus trabalhos, ele advogado, ela médica; suas paixões, ele música, ela balé clássico; suas infâncias, ele na capital, ela no interior; seus pais, quando ele mencionou a revolução. Que revolução?, ela não havia entendido. De 64, ele esclareceu. Foi quando ela rejeitou o licor – antes de dizer que não poderia ficar  antes de entrar no táxi – antes de apagar o contato dele do celular  antes de lamentar. E muito.