quarta-feira, 27 de maio de 2015

Des-can-sar

Muitos. Centenas, talvez milhares, de soldados marchavam no meu ouvido direito na mais recente madrugada. Como era mesmo o comando para os soldados pararem a marcha que aprendi na escola? Pelotão!, sentido!, só me lembro desse comando no meio de uma quadra esportiva repleta de crianças aprendendo a marchar. Crianças aprendendo a marchar? Que aprendi na escola? Estatelei os olhos no teto: as marchas, o orgulho da bandeira, a mão no peito, o hino, o uniforme de gala, a ordem, a obediência pela obediência, aulas de educação moral e cívica: nada, além da aversão, ficou em mim: pude voltar ao sono, não sem assombro. 

terça-feira, 26 de maio de 2015

Segredo

Na sala de espera, ele, barba recém-surgida no rosto com uma boca cheia de dentes tortos e amarelos e óculos sobre olhos desgovernados, soltava urros a cada dois ou três minutos que passei a contar no relógio. Não ficava sentado mais do que quatro. Levantava, urrava, escancarava a boca pálida e tentava correr com pernas que se entrelaçavam. A mãe ia atrás e o colocava de volta na cadeira. Mais urros e tentativas de fugas. Numa das vezes em que se levantou veio até mim, olhos ardentes, óculos tortuosos, boca aberta num sorriso e braços prontos para um abraço. Eu, em pé, do outro lado da sala, sorri de volta. Ergui os braços. A mãe se pôs entre nós: deve ter te achado bonita.


Ela não tinha como saber que não é pela beleza que atraio os loucos. Mas também não expliquei. 

* * * 

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Freud

Sempre sonho que não conseguimos casar. Entro na igreja, caminho pela nave, mas minhas pernas travam antes de chegar ao altar. Entro na igreja, nós dois radiantes, caminho pela nave, chego ao altar, mas não conseguimos juntar as mãos. Ou juntamos as mãos e antes do sim alguém vira nuvem. Há sempre uma força inconsciente que nos impede de realizar o casamento e acordo ofegante. E é sempre você, não há exceções em mais de vinte anos. No de hoje, eu esqueci de agendar a igreja. Você apareceu, dentro de um carro, de terno, ao lado da sua mãe, prontíssima para te entregar a mim num vestido prata, e eu, no meio da rua, não reconheço a rua, de bermuda e camiseta, descabelada, levando as mãos à cabeça, tentando explicar que não tinha reservado a igreja, ao mesmo tempo em que tentava explicar que não, de jeito nenhum, esse esquecimento não era falta de amor, nem de vontade, nem de desejo, era só... não sei, a força do meu inconsciente. 

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Abre-te, gergelim

Entrou, fechou a porta com a chave, deixou a bolsa no sofá e sentou-se na poltrona com o tecido recém-trocado, de couro branco para veludo vermelho, de frente para a porta. A porta por onde ela poderia sair, com mala, ou malas, ou sem nada, só a bolsa com os documentos. Não queria trocar de nome, rosto, número do RG e CPF, passado. Queria, com o mesmo corpo, sair por aquela porta, sem data para voltar, ainda que soubesse que voltaria. Lá fora encontraria as antigas ilusões. Já os sonhos estavam pregados naquelas paredes e para eles ela (ainda) não queria dizer adeus. Só um até logo. Só umas férias, um tempo para transformar o ódio em tristeza, esse ódio duro que não deixava as lágrimas caírem enquanto ela olhava para a porta, que não – esqueça isso, minha querida – se abriria sozinha para ela sair. 

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Paracetamol

Uma dor de cabeça da porra que trava tudo. Não entendo o que acontecerá com as novas regras, se virarem regras, se forem mesmo novas, da aposentadoria. Quantos anos mais desperdiçando a segunda, a terça, a quarta, a quinta e a sexta? Não as minhas, mas tantas por aí. A fila de um quilômetro na porta de uma agência de empregos às oito horas de uma manhã fria. Dentre tantos homens e mulheres, jovens e velhos, estou ali, apreensiva, talvez desesperada. Não estou hoje, posso estar amanhã. E se a criança ficar doente? E se o patrão reclamar da falta? Puta não pode falar, mas patrão pode. Não entendo nada com esta maldita dor de cabeça, destruindo meu crânio a machadadas. Um homem acordava no meio da rua, às oito horas e dez minutos dessa mesma manhã fria. Debaixo do corpo um edredom fino e molhado. Por cima um pano que já foi cobertor. A fome dele é a mesma que a minha. O sono. O medo do dia. E da noite, sempre maior. Ele olha para os lados como eu. Espreguiça como eu. Senta-se na cama como eu. E eu? Passo ao lado, de nada adianta passar e sentir o estômago se retorcer num choro. Não paro, não volto, não falo, nada ofereço. Eu, tão mais suja que aquele passado de cobertor. E essa dor de cabeça! 

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Contagens

Quatro e vinte e dois. Madrugada de inverno, apesar do outono. O poeta já escreveu que na verdadeira escuridão da alma são sempre três da manhã, a minha hoje se atrasou. Talvez o frio. Minha cabeça dói. Calculo prazos. Reescrevo mentalmente memorandos e petições; que desperdício para a verdadeira escuridão da alma; mas continuo revendo os trabalhos que conseguirei e não conseguirei entregar. Quem me desprezará? Não posso acender o abajur e continuar com o livro que me consome (será isso?) se alguém dorme ao meu lado. Escuto a respiração. Não saio da cama, não me animo a construir outro ninho. Os livros na cabeceira, aquele especial que está me roubando da prática em que não me encaixo. Contas para pagar. A vida é besta. É? E se eu fosse para debaixo da cama, como as crianças nos filmes? E se contasse carneirinhos? Pensei em filhotes de golden retriever. E se me lembrasse dos momentos alegres da minha vida que está chegando aos quarenta? O primeiro choro dos meus filhos. As flores nas salas de aula. A primeira vez em que vi a Torre Eiffel. Todas as vezes em que sentei no chão para rir. Até eles aparecerem: então abraço os joelhos, fecho os olhos, respiro fundo e conto meus mortos. 

terça-feira, 12 de maio de 2015

Mr. H.

A quentura do salão no fim do dia, quando eu chegava e ele já estava lá: um livro aberto sobre o colo, o cachimbo em uma das mãos, os óculos escorregando pelo nariz, as pernas cobertas por uma manta de lã xadrez bege e marrom. Queria entrar feito pluma trazida pelo vento para que ele não me percebesse e eu pudesse admirá-lo naquela posição por, não sei, mais tempo, tempo que nunca seria suficiente. Mas nunca consegui entrar feito pluma onde quer que fosse e ele então tirava os olhos do livro, ajeitava os óculos e levantava a cabeça para me ver. Sorria. Um sorriso discreto, mas tão aconchegante quanto a cena à minha frente. Eu sorria de volta um pedido de desculpas, sem nada falar, só um aceno com a mão que ele retribuía com uma quase imperceptível reverência. E tantas vezes meus pés quiseram correr em sua direção, meus braços desejaram enlaçar seu pescoço, meus olhos procuraram o título do livro em seu colo e minha boca ansiou por dizer alguma palavra, uma que fosse, “oi”, por exemplo, ou “obrigada” – um agradecimento seria mais verdadeiro; mas não. Continuei entrando com meu silencioso pedido de desculpas, até sobrarem apenas o cachimbo e um livro fechado sobre a poltrona. 

segunda-feira, 11 de maio de 2015

A merda

E a última coisa que te contei foi que eu tinha te traído. É estranha essa história de traição. Como você era meu namorado, supostamente ninguém mais poderia me beijar. Ninguém, além de você, poderia tocar meu corpo e saber de algum segredo meu. Porque se eu gostava de você, e gostava mesmo (você era muito legal, uma das pessoas mais legais que conheci), não devia sentir desejo por outra pessoa. Foi assim que aprendemos e apreendemos, não? Mas você, naquele sábado, precisava dormir cedo porque ia trabalhar no domingo, e me deixou em casa. E éramos jovens. E era sábado e havia uma festa em algum lugar. E eu não precisava trabalhar no domingo. E você me deixou em casa e eu fui para a festa. Porque era sábado e eu era jovem e não trabalhava no dia seguinte. E na festa havia um cara. Um menino. Um rapaz, sei lá, vinte e poucos ou vinte e muitos. Moreno como gosto. Grande. E ele veio falar comigo e eu falei. E falamos. E ele quis me beijar e eu beijei. Beijamos. E ele sentiu bem o meu corpo. Eu o dele. E pronto, tchau. E no dia seguinte, que merda, você veio. E eu com aquela mentira inchando dentro do meu estômago, feito bola de sabão que explodiu quando te contei. Teus olhos tão escuros se quebrando em mim. Que merda eu fiz? E se contei era porque gostava tanto de você, entende? E de mim, e de nós. E porque não sei guardar mentiras. Que merda eu fiz, você indo embora sem nada dizer, ou dizendo só “vou pensar e volto”. E voltou uma semana depois, a voz cortando a garganta para explicar que me entendia, mas que me entender não bastava. Essa história de xícaras quebradas que mesmo depois de coladas não voltam a ser as mesmas. Eu tentando colher os cacos, quem sabe a nossa xícara ficasse mais bonita com os pedaços colados, mas você foi antes que eu terminasse de recolhê-los. E te vi de costas, eu ainda ajoelhada à procura de caquinhos. Você se virou: somos muito jovens, vai ficar lindo o nosso mosaico ... já volto! E quando voltou, azulado dentro de um caixão, eu estava com a xícara colada nas mãos. Que merda eu fiz? 

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Alguém e ninguém


Sonhei com um pássaro de plumas amarelas esverdeadas, gordo, achei que fosse pelúcia, mas ele pousou no meu braço que descansava debaixo de tantos galhos entrelaçados e adormeceu feito um gato. Eu precisava descrever para alguém as maravilhas daquele pássaro que ronronava sobre o meu braço, as penas macias tocando minha pele já quente de sol, mas não havia ninguém ao meu lado quando acordei com um cheiro doce-enjoativo no estômago. Quer dizer, havia, mas era o corpo de alguém que não estava lá, alguém que há tanto tempo procuro que já perdi a noção do tempo, não me assustarei se nossos cabelos já estiverem todos brancos quando nos encontrarmos novamente. E, até lá, é provável que eu tenha me esquecido do pássaro, mas não de vomitar. 

domingo, 3 de maio de 2015

Ainda te espero


As últimas palavras que te escrevi foram “te espero”. E esperei.  Não sentada. Nem roendo as unhas com o estômago embrulhado para um presente que pelo visto nunca será dado; mas esperei. Pintei as unhas, apesar de ter quase certeza do seu desprezo por unhas coloridas. Mas me senti bonita, entende?, com as unhas em fogo. Vesti meu melhor sorriso, encontrado debaixo de pó no fundo de uma gaveta, só para te esperar. Li um livro-pérola. Escutei jazz. Pensei em palavras que gosto e coloquei-as numa ordem capaz de te agradar.  Passei tempo tentando lembrar de coisas que te fazem sorrir: uma comida, uma paisagem,  uma ideia, um lugar, e não me lembrei de nada. Pensei em te perguntar. Estou mais prática, queria te mostrar isso. Mas você não veio e não lamento: gosto de olhar para as minhas unhas caprichadas e o sorriso, aquele esquecido, continua no meu rosto.

sábado, 2 de maio de 2015

A tevê do meu pai


Meu pai assistia a todos os esportes pela tevê. Todos. Adorava. Torcia. Futebol, tênis, basquete, vôlei, golfe, boxe, ginástica, patinação, ciclismo, natação, surfe, handebol, hipismo, judô, karatê, sentava na poltrona e ficava, torcedor discreto, sorriso plácido, sem cerveja e sem petiscos. Um dia começou a reclamar: os esportistas não eram mais os mesmos, acabou a paixão, acabou a garra, acabou o amor, é muito dinheiro, muito corpo, muita meta, muita performance, rankings, os olhos dele cansados à procura de algo que não víamos, levantava e ia até a cozinha abrir a geladeira para nada pegar, voltava bufando, sentava e logo levantava, uns resmungos engasgados, até desligar a tevê e esperar pela segunda-feira. Um dia parou de reclamar. Um dia deixou de ligar a tevê. E um dia mandou o aparelho embora, ninguém sabe para quem e para onde.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

O fim da história


Por que, pai, você não me contou a história até o fim, se aquela era uma das histórias que têm um fim? Eu era tão novinha e sofria a dor do primeiro amor quando você disse que amor não era para causar dor, que quando a gente ama o mundo fica mais colorido, cor de rosa brilhante, e que nem de droga a gente precisava, bastava amar, e eu, que nem bebia, já disse que era tão novinha, imaginei um mundo onde pôneis passariam voando em cores psicodélicas e rodas-gigantes com luzes piscantes rodariam pelas ruas ao lado dos carros e dos pedestres, eu que nem sabia da existência de drogas alucinógenas, imaginei assim a visão de quem ama, só por causa do modo como você me falou do amor, pai, e me disse que era assim que via o mundo desde que havia conhecido a minha mãe, que tudo era um grande barato porque você a amava (e era correspondido, claro). E a história acabou assim, sem que você me contasse que o amor poderia também ficar rosa sem brilho, e depois rosa desbotado, depois quase branco, e branco, e cinza, e cinzas.